domingo, 20 de fevereiro de 2011

Cinema

A linguagem abjeta do cinema
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Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro


A opção ética no nosso cinema foi assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida.

Colagem de Luiz Rosemberg Filho

Ser um burocrata-palhaço é fácil pela similaridade com a nossa odiosa classe política. Falta-lhes, entretanto, conteúdo humano, mas isso pouco importa, pois são políticos modernos que lidam com a tragicômica tecnologia moderna. O que os faz avançar é um constante retrocesso à barbárie, cabendo ao burocrata-palhaço servir como instrumento policial a inventar papelotes, carimbinhos e firulas no seu eterno disfarce “cinzento” de caça à inteligência.

E como o nonsense é o que predomina no país, sempre errando, de vez em quando acertam. Mas o que vem a ser o burocrata-palhaço? Definiremos o palhaço e o resto fica por conta de cada um. Em 1988, em Os Meios de Comunicação Como Extensão do Homem, McLuhan afirmava com maestria: “O palhaço é um homem integral que arremeda o acrobata numa mímica elaborada da incompetência”. Heroificados por partidos medíocres coligados com o poder, chegam sempre a algum tipo de repartição pública, onde aperfeiçoam a mesmice para que nada seja alterado.

Falta-nos, hoje, plenitude a uma apropriação poética da desintegração do real. A opção ética no nosso cinema foi logo assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida. Ou seja, cobriu-se a falta de sensibilidade concreta e real com o dinheiro. E muitas foram as aberrações que vieram em nome do sucesso a qualquer preço.

Mas onde estão hoje esses virtuosos do capital? Resposta: bem acolhidos na TV, formatando clichês e inventando peruas que se dizem atrizes vindas do prostíbulo do BBB: o Big Bunda Brasil. O realismo forte de Os Fuzis deu lugar a uma zona de bonecas responsáveis pela irresponsabilidade de sons e imagens sem qualquer concepção dramática, a verbalizar o óbvio na dessubjetivação do espectador.

Queríamos pensar o Brasil, Poe, Baudelaire ou Fernando Pessoa. Queríamos desafiar contradições, risos, silêncios e os nossos muitos demônios. Queríamos avançar no saber para ultrapassar a nós mesmos. O suporte da solidão num confronto permanente nos tornou mais fortes frente à decrepitude agonizante dos nossos velhos e novos inimigos. Lamentamos não terem apreendido nada com os trágicos anos de chumbo. Mas o ameaçador não é o passado e sim o presente. Esse duplo de ontem e de hoje ameaçando o futuro.

Colagem de Luiz Rosemberg Filho

Mas... o eterno esperto se acha engenhoso, isento de responsabilidade a defender a mesmice que sempre os beneficiou na eterna sem-vergonhice da nossa trágica política cultural que, desde o regime militar, vive a enxugar gelo. O próprio Celso Furtado, citado como exemplo inquestionável de economista, como Ministro da Cultura foi um tremendo enxugador de gelo, quando justificou até a interdição de um delicado filme de Godard.

Ou seja, desde o regime militar vive-se por todos os lados golpes de humilhação e castração. E onde não existe gozo, o baixo e o sujo tornam-se referências. Lamentavelmente, a televisão virou o nosso único campo perceptivo de uma história de esquecimentos. Inseriu-se no cinema para nos fazer ainda mais idiotas como realizadores e espectadores. Basta que se veja os “filmes” de sucesso: um desacordo total com o cinema de Humberto Mauro, Mario Peixoto ou Glauber Rocha, para nos limitar ao trabalho com a linguagem e o saber.

E o que passa do bom cinema brasileiro na TV é pouco ou quase nada. E quando raramente acontece é madrugada. Claro que se aliaram às companhias estrangeiras e solidificaram a melancolia, a burocracia e a barbárie. Só os bem comportadinhos, adesistas, histéricos e idiotas filmam. Sensibilidade e investigação linguística estão fora da “grade” – terminologia imunda da TV.

Ora, não escolhemos o cinema para sofrer ou morrer. Não cultuamos a depressão ou a tristeza, e sim a vida satisfeita para todos. Fomos sempre críticos em relação à burocracia, mas sabemos reconhecer seus avanços (quando avançam) e conquistas. Também nunca subestimamos a força dos velhos inimigos, e sempre os confrontamos com argumentos cabíveis. Já até os defendemos quando achávamos que não eram tão baixos e oportunistas de plantão. Não temos uma visão infantil nem apaziguadora dos tantos mal-entendidos como propostas veladas em defesa para que nada mude. Fizemos e fazemos apesar desse fascismo também velado que nos domina da TV ao Cinema-Espetáculo. Mas... a quem serve a TV e o Cinema-Espetáculo?

Nossa triste história está repleta de tais situações ou malabarismos linguísticos e de posicionamentos de concepções. O que torna mais abjeta a história do cinema e a nossa própria história. Toda vez que se tenta alguma mudança ou que se projeta alguma possibilidade para muitos, alguns pensadores duvidosos, policiais e militares ganham as ruas, incentivadas ou metonimizadas para nada acontecer. Situações a que a imprensa única atendeu sempre. A voz do dono.

Particularmente, não somos personagens de bastidores e louvamos a imprensa quando alguma liberdade se expressa, não somente para o óbvio, mas para tematizações mais do que necessárias e que, no cinema, só aparecem depois, nos bastidores! Como agora, com as possíveis alterações nas leis de incentivo ao cinema, que têm sido ativadas por situações parcimoniosas, deixando o cinema mais vitimado do que compensado. No passado, ainda contávamos com o Sindicato Nacional da Indústria, ativo em suas responsabilidades, com as associações e outros movimentos. Hoje, contamos com os malabarismos dos peões da mídia e pouco mais. Que, na sofreguidão do sugar, se embaralham nas tetas, temendo secar.

Nosso cinema periférico, carente e dependente, não pode abrir mão de decisões menos óbvias do governo para o setor. Principalmente, como proteção e fomento. E nossa infraestrutura está pronta para uma independência que, no futuro, será um forte suporte do próprio governo e em nossa sustentabilidade. Como profissionais e como um mercado rentável econômico e cultural.

E se o Brasil em sua essência carece de reformas, estas leis de incentivo se tornam fundamentais, bastando, para atendê-las, reinverter os “argumentos” estampados e bem grafados em matéria de O Globo, indiscretamente escrita para os mesmos de sempre. O dono e a voz! E nem precisamos discutir ou repetir o já defendido ao longo dos anos em simpósios e escritos: a defesa do cinema, do mercado e da cultura, e de nossa autonomia e identidade. Com liberdade, independência e sem evasões econômicas e culturais.

Os sabujos, conhecedores de mitos e oferendas, conhecem também feudos, monarquias e burguesias. O que Marx define em 18 Brumário. Estes sabujos são os nossos Napoleões brasileiros, que varreram o país como Napoleão varreu a Europa. Conhecemos bem o “liberalismo” desses Napoleões. E em nossas lutas pelo cinema o que se conseguiu foi graças aos movimentos como este da Ancine, definindo as ações para uma autonomia de necessidades. Com o que possuímos de melhor: recursos, capacidade e mercado. Ações de um rigor temático, histórico e cultural.

Nenhum governo, portanto, pode ser insensível às intenções humanas e nobres da Ancine, as de avançar numa área digna e imprescindível como a do cinema e do audiovisual, quando as companhias estrangeiras decidem, diretamente, os seus interesses na administração do cinema brasileiro. Nossa infraestrutura é política, econômica e cultural. E é com ela que vamos lutar! E toda realidade só existe quando questionada e testada como existência, a do nosso cinema expropriado, que traduz mitos, poderes e as prepotências nas culturas das metrópoles, becos e guetos subproletarizados, hoje dominados por tropas de ocupação (onde efetivos armados limpam a área para o controle dos meios de produção, enquanto a exploração e a exclusão não chegam).

No Brasil, a defesa do nosso cinema precisa acompanhar discussões como as de Jean Claude Carrière na França. Que em reuniões do GATT acusou os Estados Unidos de estarem liquidando o cinema no mundo, que sangra como diversão, cultura, controle e remessa de lucros e deixa um rastro e uma identidade esfacelada. O cinema brasileiro ainda precisa de um olhar atento e sério sobre ele. Mais atento e substancial do que o cinema 3D. Um olhar humano de afeto, dimensão e significações. E sem negligenciar o mercado, um dos melhores do planeta, esquecido e controlado pelos meios de produção de teles e celulares. Cujo mercado tornou-se a sala de espera e de exibições para nada. A do mercado, a partir de entendimentos produzidos como lixo.

Os incentivos são sim recursos públicos originários de uma renúncia fiscal, mas estes recursos foram parar nas mãos de empresas estrangeiras. Um erro que precisa ser corrigido com a máxima urgência! O cinema guarda toda uma possibilidade de ação política, econômica e cultural em favor do povo e da Nação, e todos temos que cumprir essa tarefa. E despertar o pequeno e grande público para acompanhá-la.

15/1/2011

Fonte: ViaPolítica/Os autores

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