sábado, 31 de agosto de 2013

Medicina Cubana



Um olhar para a saúde pública cubana

José A. de la Osa



Para uma aproximação das transformações produzidas na saúde pública cubana nos últimos 50 anos, é essencial conhecer, como ponto de partida, o contexto imperante antes do triunfo da Revolução, em 1959. Para isso, bastaria citar as palavras contidas na célebre alegação de Fidel Castro, La historia me absolverá, diante do tribunal militar que o julgou em 1953 pelos sucessos do Moncada. Disse Castro:


A sociedade se comove diante da notícia do sequestro ou o assassinato de uma criatura, mas permanece indiferente diante do assassinato maciço que se comete com tantos milhares e milhares de crianças que morrem todos os anos por falta de recursos, agonizando entre os estertores da dor e cujos olhos inocentes, já neles o brilho da morte, parecem olhar para o infinito como pedindo perdão para o egoísmo humano e para que não caia sobre os homens a maldição de Deus [...]

Essa era a situação prevalecente quando triunfou a Revolução: um quadro sanitário caracterizado por tétano, difteria, sarampo, tosse ferina, poliomielite, tuberculose e outras doenças. As crianças contraíam gastrenterite e doenças respiratórias, que eram as primeiras causas de morte. A taxa de mortalidade infantil, sem registros estatísticos confiáveis, era superior a 60 por cada 1.000 nascimentos, e a expectativa de vida era de apenas 60 anos, para uma população de cerca de seis milhões de habitantes.

Cuba atingiu em 2010 uma taxa de mortalidade infantil de 4,5 por cada 1.000 nascimentos, a mais baixa das Américas.

A taxa de mortalidade infantil, que mede o número de óbitos de crianças durante o primeiro ano de vida - o mais crítico para a sobrevivência de um ser humano -, é expressão da qualidade com a qual o país atende e protege suas crianças, sua saúde, sua segurança material, sua educação e sua socialização. É, por isso, um indicador demográfico internacional que mostra de forma sintética esses avanços.

Entre os fatores que contribuíram para esses resultados favoráveis, está, em primeiro lugar, a vontade política do governo revolucionário de oferecer atendimento sanitário gratuito para todos os cidadãos, com especial esmero para as mães e seus filhos; a existência de um alto grau de escolaridade da população; e um programa nacional de vacinação com uma cobertura de praticamente 100% das crianças.

O porquê das baixas taxas de mortalidade infantil

Atendimento para gestantes e para crianças. Como média, realizam-se 12 controles de saúde para as mulheres grávidas. Na primeira consulta, são indicados exames de laboratório, incluídos os de sorologia (sífilis) e HIV, realizados no casal; 99,99% das mulheres dão à luz em maternidades. As grávidas com risco de ter crianças prematuras são imunizadas, entre a 28ª e a 38ª semanas de gestação, com "maturação pulmonar" para prevenir a doença da membrana hialina que gera dificuldades respiratórias no recém-nascido.

Dependendo da situação social das gestantes, elas ingressam em um Hogar Materno (Maternidade) onde recebem apoio nutricional e um amplo programa de educação para a saúde. As mulheres em idade fértil com risco de ter anemia recebem gratuitamente um suplemento de ferro e ácido fólico e, durante a gravidez, um suplemento vitamínico para prevenir a anemia. As mulheres com diabetes também são atendidas por especialistas em endocrinologia, com a finalidade de que cheguem ao parto com o diabetes controlado. Todas as grávidas, sem exceção, realizam o exame de diagnóstico de malformações congênitas (ultrassom, no primeiro trimestre e, depois, entre as 20ª e 22ª semanas, o de alfafetoproteína), e as grávidas maiores de 37 anos podem realizar a amniocentese para a detenção da síndrome de Down, fundamentalmente. Nas primeiras consultas, as grávidas são avaliadas por um mestre em Assessoramento Genético.

Tudo isso sustenta-se num sistema de saúde acessível a todos, universal e gratuito; um alto desenvolvimento educacional da população e o direito reprodutivo da mulher para escolher livremente o número de filhos que deseja ter.

A atenção com as crianças começa desde o nascimento, com uma amostra de sangue do cordão umbilical e do calcanhar para determinar a possível existência de doenças endocrinometabólicas e genéticas que, diagnosticadas a tempo, podem ser tratadas com sucesso: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, galactosemia, déficit de biotinidase e hiperplasia adrenal congênita. De forma programada, as crianças sadias são vistas na Consulta de Puericultura em média 12 vezes ao ano. Também são examinadas por um geneticista. Nesse período, são imunizadas contra 13 doenças passíveis de prevenção.

O desenvolvimento de um programa nacional de vacinação permite manter o país livre de 15 doenças transmissíveis, como a poliomielite, difteria, tétanos do recém-nascido, sarampo, rubéola, síndrome pós-parotidite, febre tifoide, tuberculose meníngea, tose ferina, raiva humana, paludismo autóctone, vírus do Nilo Ocidental, febre amarela, chagas e cólera.

Há também o controle de outras 10 doenças, levando em consideração seus baixos níveis de incidência: meningite meningocócica, meningite e pneumonia, heomophilus influenzae tipo b, leptospirose, hepatite B, brucelose, parotidite, tétanos do adulto, Aids infantil e sífilis congênita. Na atualidade, 9 das 15 vacinas administradas à população são produzidas em centros científicos cubanos, e as restantes são adquiridas de empresas farmacêuticas no exterior.

Sobre o sistema assistencial

No começo de 1960, apenas três meses depois de formados, mais de 300 médicos partiram para cumprir o Serviço Rural com uma mochila nas costas, um estetoscópio, alguns poucos instrumentos cirúrgicos e os medicamentos elementares que cada qual conseguiu. Eles respondiam, dessa forma, às solicitações, sugeridas nas assembleias de estudantes de Medicina, de que apresentassem solução para as condições sanitárias adversas da época.

Esses ares dos "novos tempos na Revolução" completaram-se depois com a renúncia expressa do exercício privado da Medicina e, também, com a extensão para dois anos ou mais do Serviço Médico Rural, com a vigência do espírito de superação científica, com o impulso da medicina e da estomatologia preventivas e com o cumprimento dos altos princípios do internacionalismo em saúde, que aumentaram nesses 50 anos de Revolução.

Em Cuba, hoje, para uma população de pouco mais de 11 milhões de habitantes, existem 13 Institutos de Pesquisa que oferecem serviços assistenciais, ensino e pesquisa; 146 Hospitais gerais e especializados; 11.466 Consultórios Médicos de Família; 131 Clínicas Estomatológicas; 122 Asilos para as Terceira Idade; 231 Casas de Avô; e 141 Maternidades, fundamentalmente criadas em zonas distantes para aproximar as grávidas dos serviços com salas de parto.

Educação e saúde

Para elevar os níveis de saúde da população, os esforços da Revolução começaram com a Campanha Nacional de Alfabetização em 1961, que abriu o caminho para a educação sanitária; e a aplicação, desde 1960, de uma política social que permitiu estabelecer a equidade no acesso a serviços, que foram progressivamente ampliados com postos médicos rurais, maternidades e policlínicas que iniciaram o atendimento primário no país, para priorizar a assistência aos grupos mais vulneráveis da sociedade.

Talvez o primeiro grande aporte da Revolução para a saúde pública - que possibilitaria os ambiciosos programas educativos desenvolvidos nas Ciências Médicas - tenha sido a introdução do conceito de universalização da docência médica, ao integrar os estudantes de Medicina e Enfermagem durante seu processo de aprendizagem com as unidades assistenciais docentes, o que permitiu, também, atingir a massificação dos programas de formação dos recursos humanos na esfera sanitária.

No período compreendido entre 1959 e 2010, formaram-se no país mais de 100 mil médicos, dos quais, no final do primeiro trimestre de 2011, encontravam-se em pleno labor 73.025. Desse total, 43.088 são mulheres. São milhares também os formados em Estomatologia, Licenciatura em Medicina, Tecnologia da Saúde. O país conta com 13 Universidades médicas e 17 Faculdades de Medicina.

Foram criados também centros científicos para o atendimento sistemático das atividades da ciência, cujas pesquisas respondessem às necessidades do país, no curto e no longo prazos. Foram traçados os lineamentos gerais e se asseguraram os recursos materiais e humanos para o sucesso dessas tarefas. Lembremos que, no momento em que triunfou a Revolução, o país contava com uns seis mil médicos, 50% dos quais emigraram para os Estados Unidos alentados pelas políticas governamentais desse país.

Nos anos seguintes, determinou-se que era necessário ampliar e aperfeiçoar o sistema nacional de saúde criado, assim como o sistema de atendimento médico e hospitalar; desenvolver a medicina preventiva; continuar a impulsionar a medicina rural; aumentar os estudos de medicina do trabalho e sua aplicação no tratamento de doenças profissionais; elevar o nível da cultural sanitária do povo, e enfatizar a prevenção do meio ambiente e dos bens naturais.

Foram ainda formulados os orçamentos metodológicos que configuraram a Escola Cubana de Medicina, estabelecendo a prevenção como conceito primordial do sistema sanitário no cuidado da saúde, com o fim de eliminar os restos da velha medicina que olhava a doença e não o doente.

Já há muitos anos, a mortalidade geral em Cuba não é consequência das chamadas "doenças da pobreza", mas, como nos países altamente desenvolvidos, das doenças do coração, do câncer e dos acidentes cerebrovasculares. A expectativa de vida dos cubanos atinge hoje quase 80 anos.

Desenvolvimento científico e solidariedade

A estratégia de desenvolvimento em saúde seguida pela Revolução nesses anos contribuiu também, de maneira eficaz, para fomentar uma área científica dedicada à pesquisa e à elaboração de produtos medico-farmacêuticos, obtidos por via da engenharia genética e a biotecnologia, assim como uma moderna indústria de medicamentos.

Em relação aos fármacos que produz e comercializa o Centro de Engenharia Genética e Tecnologia, citaremos, como exemplo, o Heberprot-P, que favorece a cicatrização das úlceras diabéticas; a Heberpenta, vacina pentavalente produzida conjuntamente com o Instituto Finlay, para a imunização ativa de crianças contra a difteria, o tétano, a tosse ferina, a hepatite B e a Haemophilus influenzae tipo b; a Heberbiovac HB, vacina recombinante contra a hepatite B; a Quimi-Hib, vacina contra a Haemophilus influenzae tipo b; o Heberon Alfa R, Interferon-Alfa 2b humano recombinante, para o tratamento de infecções do vírus papiloma humano e outras; a Heberkinase (estreptoquinase recombinante), indicada para o infarto miocárdico agudo.

Também foram produzidos equipamentos médicos avançados como o Sistema Ultramicroanalítico (Suma) do Centro de Imunoensaio, que é utilizado há mais de 25 anos com notáveis resultados para o diagnóstico e a prevenção de malformações congênitas. Só o programa cubano de hipotireoidismo congênito tem facilitado, de 1986 até hoje, o diagnóstico de 788 crianças com esse transtorno, que conduz ao retardo mental profundo, chamado "cretinismo", se não for detectado a tempo. Além disso, por meio do Programa de Alfafetoproteína, ao longo de 28 anos, têm-se estudado mais de 3,6 milhões gestantes com 7.868 malformações graves detectadas, para uma incidência de 2,22 a cada 1.000.

Recentemente, foi realizado um estudo social nacional que incluiu 366.864 pessoas com deficiências maiores: físico-motoras, visuais, auditivas, mentais e deficiências das funções e estruturas dos órgãos (insuficiência renal crônica), fundamentalmente.

Os avanços das técnicas de análise clínica, com o emprego do Suma, possibilitam na atualidade a montagem de uma nova rede de laboratórios, em todos os municípios do país, para realizar o diagnóstico maciço preventivo, em pessoas supostamente sãs, de diversas doenças como o câncer de colo do útero, de cólon e próstata, diabetes, insuficiência renal e várias doenças infecciosas como dengue, lepra e Aids.

Historicamente, desde o triunfo da Revolução, a ação da colaboração médica cubana internacional foi marcada, fruto do magistério de Fidel Castro, pelo atendimento humano e solidário em resposta a necessidades de saúde de países que sofreram catástrofes e desastres naturais, com falta de pessoal de saúde para oferecer atendimento à população, ou por falta de condições de instalações médico-sanitárias para levar a assistência até lugares distantes.

Nessas ocasiões, são mais de 40 mil os trabalhadores da saúde que prestam seu serviço em 68 países do mundo, em praticamente todos os continentes.

Menção especial merecem as ações de colaboração dos médicos cubanos nos programas da Aliança Bolivariana para os povos de nossa América (Alba), particularmente a Operação Milagre para doentes com problemas de visão, que, desde 2004 até hoje, beneficiou mais de dois milhões de pessoas de 34 países de nossa América, considerada por muitos "o maior programa de solidariedade médica da história"; e os estudos para a identificação de doenças genéticas e deficiências, realizados também na Venezuela, na Bolívia, em São Vicente e Granadinas, no Equador e na Nicarágua, que permitem aos governos desses países brindar o atendimento que demandam as pessoas carentes de assistência médica e material.

As transformações e a experiência acumuladas desde o triunfo da Revolução em 1959 no âmbito científico, assistencial, de recursos humanos e materiais não ficam circunscritas ao país. Cuba compartilha o que tem, dentro e fora de suas fronteiras, como expressão da essência humanista da Revolução e exemplo da possibilidade de que prevaleça um mundo mais solidário e justo.

Esse é o motivo pelo qual, apesar da topografia dos lugares onde se encontram as brigadas médicas cubanas, em geral lugares mais inacessíveis, essas mantêm entre si semelhanças e algumas diferenças, sendo o denominador comum do trabalho de médicos, enfermeiras e técnicos nos lugares onde prestam serviço, certamente, visão social e vocação irrenunciável de lutar para aliviar a dor dos mais necessitados, entrega sem limites e disposição de compartilhar, também, o saber científico com os outros, imersos no rosto triste da pobreza num mundo onde prevalece ainda a injustiça.

Referências

ÁLVAREZ, J.; DE LA OSA, J. A. Senderos en el corazón de América: apuntes sobre salud y ciencia en Cuba. Madrid: Sangova, 2002. [ Links ]

CASTRO, F. La historia me absolverá. Havana: Ediciones Políticas, 1967. [ Links ]

CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DE CUBA. Havana: Editorial Política, 1982. [ Links ]

CUBA. MINSAP. Dirección Nacional de Estadística. Anuario Estadístico, Havana: MINSAP, 2010. [ Links ]

TESES E RESOLUÇÕES do Partido Comunista de Cuba. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1978. [ Links ]
José A. de la Osa é jornalista especializado no campo científico. Foi docente na Faculdade de Comunicação da Universidade de Havana. @ - delaosa@enet.cu

(Carta Maior)

Pessoa

Poema em linha reta – Fernando Pessoa

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
(…)
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa )

Fernando Pessoa
(Magia da Poesia)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Informação

Guerra da informação: 'EUA detêm um poder avassalador'
Em entrevista à Carta Maior, o renomado Nicolas Arpagian analisa os mecanismos da espionagem globalizada, seus instrumentos legais, características modernas, seus meandros tecnológicos, o conceito de guerra moderna e, sobretudo, a supremacia absoluta dos Estados Unidos no campo das tecnologias da informação. Arpagian é professor no Instituto de Altos Estudos de Segurança e Justiça (INHESJ), e na Universidade de Paris 10, especialista reconhecido em temas de cyber-segurança e segurança militar moderna. Por Eduardo Febbro, de Paris.

Eduardo Febbro

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Paris - A proteção dos dados pessoais e a democracia não são bons aliados. O caso de Edward Snowden, o agenda da NSA norte-americana que revelou a espionagem dos Estados Unidos e a colaboração de atores privados do porte de Google, Microsoft ou Facebook, segue expandindo suas verdades e mostrando os limites dos sistemas democráticos. Espionagem global dos indivíduos por meio do sistema Prisma, detenção, em Londres, do companheiro do jornalista do Guardian que revelou os documentos de Snowden, Glenn Greenwald, destruição forçada dos discos rígidos do Guardian por parte dos serviços secretos britânicos, intimidações, ameaças, em suma, as democracias tiraram do armário seus melhores dispositivos legais para justificar a espionagem ou impedir a difusão de informações suplementares.

Em entrevista à Carta Maior, Nicolas Arpagian analisa os mecanismos desta espionagem globalizada, seus instrumentos legais, características modernas, seus meandros tecnológicos, o conceito de guerra moderna e, sobretudo, a supremacia absoluta dos Estados Unidos no campo das tecnologias da informação. Professor no Instituto de Altos Estudos de Segurança e Justiça (INHESJ), e na Universidade de Paris 10, especialista reconhecido em temas de cyber-segurança e segurança militar moderna, Nicolas Arpagian é também autor de vários ensaios sobre as tecnologias da informação: “A Cyber-segurança”, “A Cyber-guerra, a guerra digital começou”, “Segurança privada, disputa pública”, “O Estado, o medo e o cidadão”.

Em que se caracteriza a espionagem moderna e como a praticam hoje, de modo geral, a NSA norte-americana por meio do dispositivo Prisma?

A ideia consiste em associar as indústrias da tecnologia da informação, ou seja, Microsoft, Yahoo, Google ou Facebook, com a segurança nacional dos Estados Unidos. Estamos diante de mutuários privados que exploram e que, para empregar uma terminologia petroleira, refinam as informações particulares de pessoas e de empresas. Em resumo, tudo o que confiamos hoje à internet. Para captar o alcance de tudo isso é preciso levar em conta o fato de que mesmo as administrações públicas europeias recorrem ao uso de gmail para se comunicar. A administração norte-americana exige então desses atores privados que lhe entreguem informação sob a égide das autoridades.

O curioso neste caso reside no fato de que o dispositivo de espionagem Prisma é legal.

Sim, de fato. O Prisma deriva de uma lei adotada em um país democrático como os Estados Unidos. Mas claro, não é novo. Desde os anos 60, os Estados Unidos, de uma maneira ou outra, leva a cabo estas práticas. Com o Prisma se oficializou e se estruturou um mecanismo através do qual as empresas devem obedecer a decisões legais. Este dado é chave porque a nacionalidade da empresa envolvida tem uma importância capital. Aqui precisamos entender bem o que significa uma empresa global que responde, no entanto, a regras nacionais. Uma empresa, seja qual for o seu tamanho, seja ou não uma multinacional, assume o fato de que pertence a uma nacionalidade. Por exemplo, a lei norte-americana se aplica às empresas cujo capital majoritário, ou seja, 51%, está em mãos norte-americanas, e isso seja qual for sua localização.

Assim, a filial francesa ou argentina da IBM, do Google ou da Microsoft estão submetidas ao direito dos EUA a partir do momento que seu acionista principal é de nacionalidade norte-americana. Isso põe em questão a ideia de direito internacional porque os norte-americanos conseguiram que seu direito doméstico seja aplicado para além de suas fronteiras. A situação é paradoxal porque, ao mesmo tempo em que empresas como Google, Facebook, Microsoft ou Yahoo vivem da confiança de seus clientes também estão sob a autoridade de um Estado que lhes pede satisfação.

Todos esses dispositivos respondem, porém, a uma forma de guerra. Talvez não haja bombas – ainda que existam os drones -, mas há sim uma estratégia agressiva de penetração de territórios e de coleta de informação.

Efetivamente. Esses dispositivos fazem parte do conceito de soberania nacional. E aqui é preciso ampliar, enriquecer, a noção de guerra mais além do enfrentamento armado. Aqui se agrega também uma lógica de competição econômica. A informação coleta por meio de empresas como Yahoo, Google, Facebook ou Microsoft nos leva muito mais além do horizonte militar para desembocar na pesquisa de informações econômicas. Estamos então em um campo ampliado da guerra apoiado em uma lógica de segurança nacional. Todas as informações são úteis: as econômicas, as políticas e as militares. A particularidade do uso ofensivo das tecnologias da informação reside em que não se estabelece mais a diferença entre o mundo civil e o mundo militar. Nosso aliado político e militar é também nosso inimigo ou nosso competidor econômico.

Os Estados empregam as tecnologias da informação para consolidar seus tecidos econômicos. Além disso, hoje existem sistemas capazes de tratar o conjunto dessas informações e, com certeza, de explorá-las. O elemento determinante para tratar essa massa de informações, ou seja, o chamado Big Data, é o filtro que se empregará para dirigi-las para a rota que se desejar. Isso explica por que empresas como o Google trabalham com muitos linguistas para saber quais são as expressões que as pessoas utilizam mais comumente. Os avanços são tais que o Google é capaz de estabelecer a diferença entre uma pessoa que busca a palavra “jaguar” porque está interessada nos animais, e outra que busca a mesma palavra, mas é um aficionado por automóveis. E neste campo os Estados Unidos detém um poder avassalador porque a maioria dos atores centrais das tecnologias da informação está em sua zona de influência. Os demais países estão em desvantagem.

A mola desta estratégia é a sacrossanta luta contra o terrorismo.

Este argumento é o mais utilizado porque é o que exige menos explicações e permite a instauração de um regime exorbitante de direito comum que permite sair das regras estabelecidas. A luta contra o terrorismo é o espantalho, é a justificação suprema. Quando vemos a amplitude da espionagem nos damos conta de que esse argumento não basta. Quando se espiona particulares que não têm nenhuma relação com o terrorismo o argumento deixa de ser verossímil.

Estamos de fato diante de uma potência colossal. Os Estados unidos detém um poder inigualável na história da humanidade.

Na verdade, a potência norte-americana corresponde exatamente a tudo o que confiamos a esta sociedade da informação: confiamos nossos entretenimentos, nossos processos industriais e econômicos, nossos correios e partes inteiras da organização de nossa vida pessoal, profissional e coletiva. Neste contexto, quem detiver o poder neste campo é o dono do jogo. Os Estados Unidos souberam criar uma série de atores econômicos que se tornaram indispensáveis. O Google, por exemplo, é um ator em escala planetária que nos segue por todas as partes e a cada momento. Um exemplo: por meio de análise exaustiva de nossas correspondências chega-se a uma visão extremamente precisa dos centros de interesse de um indivíduo e de suas orientações. Esses atores têm uma relação de proximidade com a administração norte-americana. Nisso reside o extraordinário poder dos EUA. Não há dúvida alguma então de que, mediante o controle das tecnologias da informação, os Estados Unidos contam com um elemento de poder considerável. Esse poder é, ao mesmo tempo, político, diplomático, militar e tecnológico porque, justamente, todas as tecnologias da informação tem um lugar preponderante nos sistemas de organização dos demais países. Mas quem comanda essas tecnologias é Washington. Além dos investimentos públicos do governo, os norte-americanos podem ser apoiar nas empresas privadas de seu país. Hoje não há nenhum poder equivalente a este em escala planetária.

E a Europa? Os europeus não são mais que meros figurantes desta dança, são simples clientes do sistema norte-americano, no mesmo nível que qualquer outro país, rico ou pobre, desenvolvido ou não.

Os europeus não puderam ou não souberam desenvolver atores de grande dimensão no campo das tecnologias da informação. A Europa, por facilidade ou conforto, se viu como simples usuária das soluções norte-americanas. A França, por exemplo, sabe fabricar submarinos nucleares, aviões de caça e tanques, mas não tem presença nas tecnologias da informação. No entanto, essas tecnologias são essenciais porque irrigam todos os setores. Isso nos demonstra que o poder não está onde pensávamos, ou seja, nas mãos de quem sabe construir equipes, mas sim no campo da informação. Se os sistemas de informação que controlam as armas modernas não funcionam, ou funcionam com tecnologias inadequadas, esse ator se torna um gigante imóvel: toda a força acumulada não lhe serve para nada porque o sistema nervoso responde de forma aleatória.

Apesar do enorme escândalo de espionagem, e do que isso significa em termos de violação das liberdades e dos direitos civis, o mundo segue igual. Os usuários parecem ter se resignado a que suas vidas passem pela radiografia de um grande espião universal.

É isso mesmo. Não se constata nenhuma mudança, nenhuma mobilização dos usuários, não há queda de audiência no Google ou no Facebook. A opinião pública parece ter assimilado e aceito a espionagem. A resposta ao escândalo tem sido a passividade. Não se vê hoje uma resposta organizada. No entanto, para os Estados Unidos o golpe é duro porque não foi um inimigo exterior que lhe desferiu um golpe, mas sim um de seus próprios agentes, Snowden. Em um universo eminentemente tecnológico, Snowden agregou uma dimensão emocional imprevista a este nível de coleta de informação estratégica.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(Carta Maior)

Brasil

Ando às tontas com a conjuntura brasileira. Na economia, os índices lembram uma gangorra. Os investidores trafegam em areia movediça.

O Banco Central, frente ao dólar, lembra meu avô com seu cão Nero. Preso no quintal, este se inquietava quando da casa se aproximava uma visita. Os latidos prenunciavam a abertura do portão. Tão logo meu avô dava as boas vindas ao visitante, Nero, assanhado, livrava-se da coleira que o prendia ao canil e avançava sobre o estranho. Meu avô cobria o animal de safanões, desdobrado em desculpas.

A trégua era pouca. De novo, vinha Nero acelerado, rosnando, avançando sobre o estranho que lhe despertava o ciúme.

O dólar sobe, o Banco Central se empenha em abatê-lo, os investidores estrangeiros dão sinais de abandonar o barco Brasil, o governo acena com benesses e discursos otimistas.

Como denunciou o papa Francisco, se a Bolsa cai, acende-se nas elites o alarme da inquietação. O ouro transformado em pó de mico. Se, em consequência, a miséria aumenta, quem se importa, exceto os que não têm ações e sofrem a fome? Dois pontos a menos na Bolsa causam mais preocupação na mídia que duas mil pessoas levadas à morte por dia por falta de nutrientes básicos.

Enquanto a economia navega ao sabor de ventos imprevistos, o governo se arma de medidas "contracíclicas” a fim de manter acorrentado o dragão da inflação. Como meu avô se esforçava com Nero. "Qualquer desatenção, faça não. Pode ser a gota d’água”, alerta Chico Buarque. Tudo de olho nas eleições de 2014, o Norte que imanta a bússola Brasil.

Até maio tudo parecia sob controle, com altos índices de aprovação bafejando o ego do governo. Até que as ruas transbordaram de manifestantes. A nação, deitada em berço esplêndido, acordou.

Houve melhorias em 10 anos de governo do PT? Sem dúvida. Aí estão os Índices de Desenvolvimento Humano dos Municípios divulgados pelo IPEA; a queda significativa do valor da cesta básica; o aumento da renda e da longevidade dos brasileiros.

Vejam nossas ruas: entupidas de carros facilitados por créditos abundantes e prestações que quase se estendem ao Juízo Final.

Tudo parecia o país de Alice, uma maravilha! A desoneração da linha branca permitiu, a grande número de famílias brasileiras de baixa renda, adquirir geladeira, fogão, máquina de lavar e outros eletrodomésticos.

No interior do Nordeste o jegue deu lugar à moto e, na Amazônia, o remo ao motor de popa. Qual fênix livre das cinzas da pobreza, o brasileiro criou asas e alcançou melhores condições de vida. Os aeroportos, repletos, perderam o glamour de espaço reservado à elite. Chinelos de dedos são vistos nas salas de espera e, fora do país, o comércio aprende meia dúzia de palavras em português para bem receber esses turistas que, por semestre, despejam bilhões de dólares nos balcões das lojas.

Alice se transformou em bruxa? O que sucedeu? Se tudo ia bem, por que tantos protestos?

O governo subestimou o senso crítico do povo. Não criou canais de diálogo com os movimentos sociais (tolerados, mas não valorizados), nem com a base aliada. Súbito, viu Nero insatisfeito soltar-se da corrente.

O que deseja essa gente? Simples, caro Watson. Em países desenvolvidos, como Inglaterra, Holanda e Suécia, primeiro o governo assegurou à população bens coletivos, como transporte, educação e saúde. A "linha pública” precedeu a linha branca.

No Brasil, enveredou-se pela via contrária. Temos geladeiras, mas há que tomar cuidado para não beber muita água gelada. Pode irritar a garganta e causar rouquidão. O SUS, nosso sistema público de saúde, tem a (des)qualidade de nossos ônibus urbanos, e os planos privados de saúde se equivalem a uma matrícula mensal em escola particular.

O governo alegava falta de recursos para atender às demandas dos bens coletivos. O povo, paciente, acreditou. Até que o Brasil se transformou num imenso parque desportivo: Copa das Confederações; Copa do Mundo; Olimpíadas e Paraolimpíadas. Como na história infantil de "João e o pé de feijão”, estádios fabulosos brotaram como por encanto do chão. Até o Maracanã mereceu nova reforma, para gáudio das empreiteiras.

Ora, como não há dinheiro para ampliar o metrô, qualificar a educação e tornar acessível aos pobres o bom atendimento de saúde?

O rei está nu e a base aliada não sabe agora com que roupa comparecerá nas eleições de 2014. O governo federal vacila, ou melhor, oscila entre permanecer refém da promíscua aliança consagrada pelo "toma lá, dá cá” e as reformas de estruturas –política, tributária, agrária etc.– pelas quais a nação clama há um século e, em resposta, escuta apenas promessas que jamais se tornam realidade.

Pior que um bando de vândalos sair pelas ruas quebrando o patrimônio público e privado é usar recursos públicos para alimentar a ganância insaciável da especulação financeira e dos que mamam nas tetas do Estado graças às licitações fajutas e às obras faraônicas onde a corrupção grassa sem que os olhos da fiscalização enxerguem e o braço da punição alcance.

[Frei Betto é escritor, autor de "Aldeia do Silêncio” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org - twitter: @freibetto.
Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
(Adital)

Carta da Vó

Carta da vó: as mudanças no Brasil

por Frei Betto*

 Carta da vó: as mudanças no Brasil

Querido neto,

Daqui das alturas celestiais, olho espantada e surpresa as mudanças no Brasil. Nunca pensei que essa garotada fosse trocar as baladas pelas ruas, o consumismo pelos protestos, a democracia delegativa pela democracia participativa.

Pegos de calça curta, o governo federal e o Congresso deram início ao debate e aprovação de questões engavetadas há décadas: reforma política, projeto que classifica as práticas de corrupção ativa e passiva de crime hediondo, voto secreto, exigência de ficha limpa para funcionários do legislativo, 75% dos royalties do pré-sal para a educação e 25% para a saúde. O projeto sobre a Cura Gay foi arquivado, assim como a PEC 37. O diálogo com os movimentos sociais deverá se iniciar. E governos estaduais e prefeitos reduziram tarifas de transportes públicos.

Como as velhas raposas da política brasileira não têm mesmo vergonha na cara, adotaram o Passe Livre nos jatinhos da FAB e embarcaram parentes e amigos rumo a festas de casamentos e jogos de futebol. Tiveram que ressarcir os cofres públicos e, agora, espero que haja transparência no uso de aviões pertencentes ao poder público.

Os campeões de aprovação em pesquisas de opinião pública despencaram e o jogo eleitoral de 2014 embaralhou.

Espero que essa juventude tão ousada não fique apenas nos protestos, mas tenha também propostas, projetos, programas. E crie condutos políticos para revolucionar o país, de modo a aprimorar a democracia participativa.

Enganam-se os partidos pensando que são os únicos condutos políticos. Democracia não é sinônimo de partidocracia. É governo do povo, para o povo, com o povo. E é isso que as ruas demonstram: o anseio de um governo que sirva ao povo e atenda as suas justas reivindicações, e não aos interesses do agronegócio e do capital financeiro. Que faça finalmente a reforma agrária, sem a qual o Brasil digno e livre não terá futuro.

É preciso organizar a esperança. Tornar essa garotada viciada em utopia, como ocorreu com a sua geração que tinha 20 anos na década de 1960. Vocês não queriam apenas mudar o cabelo, a moda e a sexualidade. Queriam mudar o Brasil e o mundo. Para o bem ou para o mal, toda realidade é fruto de sonhos.

Peço ao bom Deus que não permita que essa juventude que inundou as ruas do Brasil seja tomada pelo cansaço, pela decepção e pela desesperança. Espero que não seja cooptada pelo sistema, como ocorreu com a esquerda europeia após a queda do Muro de Berlim, nem pelo pragmatismo da chamada governabilidade, que levou partidos progressistas do Brasil a se atrelarem ao caciquismo das velhas raposas que ainda hoje fazem da política brasileira seu galinheiro.

Minha esperança é que a reforma política venha a aposentar todos esses carreiristas que jamais governaram em defesa dos direitos dos pobres e mudar todas essas instituições que garantem a eles imunidade e impunidade.

Bênçãos de sua vó Zina.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais.

** Publicado originalmente no site Adital.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Alice

Cortem-lhe a cabeça! Ou... No fundo da toca do coelho
em Cinema por Daniele Pendeza

Alice no País das Maravilhas, através dos tempos e das telas de cinema.


Desde 1865 o livro Alice no País das Maravilhas é uma história que segue encantando e influenciando todas as gerações (minha afilhada não se chama Alice por acaso!). E por este motivo é que encontramos tão vasta produção que tenta espelhar a obra de Lewis Carroll, ou simplesmente se baseia em alguns fatos e personagens marcantes para reconstruir as peripécias de Alice em outros ambientes: somente para o cinema e televisão, são aproximadamente 22 adaptações da obra ou produções que trazem referências ao original.

Esta grande e psicodélica aventura teve início em um passeio de barco que o autor realizou junto das três jovens filhas de um amigo seu: Lorina, Edith e Alice. Muito inventivo, o senhor Charles Lutwidge Dodgson (conhecido artisticamente como Lewis Carroll) criava histórias para entreter as moças, que permaneciam encantadas... E foi assim que nasceu Alice Debaixo da Terra, sendo o título substituído por Alice no País das Maravilhas dois anos mais tarde e sofrido o acréscimo de mais personagens e capítulos, para só então ser publicado. Seis anos depois, em 1871, acontece a estréia de Alice no País do Espelho, uma espécie de continuação das loucas viagens da pequena Alice (apesar de esta publicação ter feito grandioso sucesso na Inglaterra, é a menos lida no resto do mundo, talvez por ser muito mais complexa, não alcançou a mesma surpreendente fama do País das Maravilhas).

Introvertido e tímido, Carroll era um apaixonado por matemática (a maioria de seus escritos tratam das exatas), além de ter sido um aficionado por fotografar (em especial crianças), o que lhe rendeu muitos adjetivos referentes à pedofilia. Do mundo infantil, temos apenas essa referência, sendo que suas narrativas das aventuras de Alice nada tem de infantes. Aí você me pergunta: Como assim? Pois acreditem! Alice não foi criado para ser um conto de entretenimento infantil, e sim um livro que beira ao subversivo.


Por trás de tantos seres imaginários e um grande amontoado de acontecimentos ilógicos, podemos encontrar várias interpretações “adultas” para este livro que é praticamente o início do Surrealismo na Inglaterra. Partindo do princípio que muitas das personagens e até acontecimentos apresentados no livro vieram diretamente do cotidiano de Carroll, de dentro de seu círculo social e de sua Inglaterra, os fatos das entrelinhas já passam a ser mais claros. Mesmo com algumas modificações criativas (por exemplo, o personagem Dodô é inspirado na gagueira do próprio autor), ainda assim podemos encontrar a realidade escondida no subliminar maquiado pela história fantástica dentro da toca do coelho.

Comecemos pelos poemas que Alice recita, muito engraçadinhos e bem colocados dentro do contexto da história, eles são uma sátira aos poemas enfadonhos que as crianças da época eram obrigadas a decorar. Outro fator muito citado quando se compromete a analisar esta fantasiosa narração, é justamente a passagem de Alice para a adolescência, sua insatisfação com a situação, sempre atrás de um jardim mais florido, cansada das mudanças que seu corpo sofre a todo tempo (vide a bela conversação com a Lagarta).

Ainda citando a Lagarta, esta personagem tão enigmática é praticamente a personificação da consciência confusa de Alice. “Quem é você?” Extremamente filosófica esta pergunta vem a perturbar e levar a um enfrentamento de si mesma, à busca do equilíbrio para o seu corpo através da reflexão (momento da retirada dos pedacinhos do cogumelo).


Em outro momento, também podemos ver problemas sociais retratados nesta narrativa aparentemente nonsense, como por exemplo, o fato de Alice ter de controlar seus impulsos frente à Rainha de Copas para não ter sua cabeça decapitada. Esta que usa da repressão para manter seu reino em ordem, ameaças e represálias para ter suas vontades realizadas, sendo, inclusive, superior a seu próprio marido o Rei de Copas. Devassa também é a Duquesa, a qual está sempre rodeada de pimenta, sempre em sobressalto (a pimenta é tida como um “adjetivo” da corrupção), junto ao seu adorável Cheshire Cat (expressão idiomática que significa “hipócrita”), sorridente e bajulador, dizendo o que as pessoas querem ouvir, para então poder livrar seu lindo pescoço do machado, além de ganhar uns afagos pela sua sagacidade.

Nem tudo é corrupção, o Coelho Branco nos dá o exemplo (dentre pouquíssimos, assim como na vida real) de alguém que está sempre preocupado em chegar na hora certa e cumprir com suas obrigações, mesmo que isso vá em contradição com todo o caos que o cerca (inclusive dá algumas dicas para Alice, já na corte, para que ela mantenha sua cabeça no lugar).

Mas, porém, contudo... as adaptações cinematográficas e televisivas não abordam esses fatores “maduros” da obra de uma forma profunda (em alguns casos podemos ver momentos mais salientes, mas nada de grande relevância). O lugar comum das produções de Alice é o foco no lado meigo e divertido da história, realmente voltando-a para o público infantil. Assim como as duas maiores produções de Alice no País das Maravilhas nos mostram...

Em primeiro lugar temos a animação da Disney de 1951, a mais conhecida e que talvez tenha alcançado um público maior de espectadores até então, incluindo crianças, jovens e adultos, esta adaptação é conhecida e de certa forma presente até os dias de hoje. Não é deveras fiel, sendo que algumas cenas foram acrescentadas pelos seus diretores, fazendo com que os amantes do livro não se sentissem exatamente “em casa” ao apreciarem a obra.



Em segundo lugar, e muito mais recente, temos a produção de Tim Burton, que deu o que falar por ser um de seus piores trabalhos e uma adaptação (neste caso sim, com o termo muito bem colocado) nonsense. Neste filme temos Alice já com 17 anos, tendo uma segunda jornada no País das Maravilhas, numa redescoberta de si (ela tem que se lembrar de quem era, lembrar da jovem Alice que havia visitado o País das Maravilhas anos antes) e tendo que lutar contra o mal (Rainha Vermelha) para a volta do bem (Rainha Branca) ao seu lugar de direito. Uma nova visão de Alice e ao mesmo tempo uma simplificação do universo complexo que Lewis Carroll havia criado, esta produção merecia o nome de “Alice, o Retorno” (ou qualquer outro título que se refira à continuações mal feitas), pois de nada é fiel ou faz jus ao livro. E apesar de ter arrecadado mais de US$ 200 milhões apenas nos três primeiros dias de exibição do filme nos EUA (imagino que isto se deva ao fato de ter-se gerado grande expectativa pela estréia da produção e/ou pelo apresso que o diretor tem do seu fiel público), apesar de seu lindo figurino e fotografia, além de cenários fantásticos, Tim Burton não foi capaz de dar vida a esta nova visão do clássico, deixando muito a desejar. “Out of his head!!!”

Apesar de estas duas produções serem as mais conhecidas dentro da grande mídia, ainda temos muitas outras criações e recriações a partir do livro que são mais fiéis e envolventes, mesmo quando faltam efeitos especiais ou até mesmo cores, e que apesar disto, conseguem nos levar fundo através da toca do coelho...




danielependeza
Artigo da autoria de Daniele Pendeza.
Musicista, aficcionada por livros e cinéfila de plantão..
Saiba como fazer parte da obvious.

Cubanos

Cubanos chegam e já diagnosticam a doença do Brasil



Eles desembarcaram há apenas quatro dias.

Ainda nem começaram a trabalhar. Mas alguma coisa de essencial já foi diagnosticada entre nós, apenas com a sua presença.

Uma foto estampada na Folha de S. Paulo desta 3ª feira sintetiza a radiografia que essa visita adicionou ao diagnóstico da doença brasileira.

Um médico negro avança altivo pelo corredor polonês que espreme a sua passagem na chegada a Fortaleza, 2ª feira.

O funil do constrangimento é formado por jovens de jaleco da mesma cor alva da pele.

Uivam, vaiam, ofendem o recém-chegado.

Recitam um texto inoculado diuturnamente em sua mente pelas cantanhêdes, os gasparis e assemelhados.

Centuriões de um conservadorismo rasteiro, mas incessante.

É força de justiça creditar a esse pelotão a paternidade da linhagem, capaz de cometer o que a foto cristalizou para a memória destes tempos.

“Escravo!” “Escravo!” “Escravo!”.

Ecoa a falange cevada no pastejo da semi-informação, do preconceito e das tardes em shopping center.

Foi programada para cumprir esse papel, entre outros, de consequências até mais letais para a democracia e a civilização entre nós.

Um desembarque que em outros países seria motivo de festas, homenagens e bandas de música.

Aqui é emoldurado pelo espetáculo deprimente de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país em que vive, o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.

Para que agora sabotasse a assistência cubana aos seus segmentos mais vulneráveis, aos quais ela se recusa a atender.

Os alvos da fúria deixaram família, rotinas e camaradagem para morar e socorrer habitantes de localidades das quais nunca ouviram falar.

Mas que a maioria dos brasileiros também sequer desconfia que existam.

Com o agravante de que ali talvez jamais pousem seus pés. Coisa que os cubanos farão. Por três anos.

E que graças a eles, agora saberemos que existem.

Se o governo for safo – espera-se que seja – fará do Mais Médico uma ponte de conexão de nós com nós mesmos.

O futuro da democracia agradecerá.

Os pilares dessa ponte, de qualquer forma, são os que transitam agora altivos diante da recepção que indigna o Brasil aos olhos do mundo.

Perfis médicos ainda improváveis entre nós, apesar do Prouni e das cotas satanizadas pela mesma cepa mental adestrada em compor corredores e funis.

Nem sempre físicos, como agora.

Mas permanentemente intolerantes, na defesa da exclusão e do privilégio.

Formados em uma ilha do Caribe desguarnecida de recursos, por uma escola de medicina que contorna a tecnologia cara, apurando a excelência do exame clínico – aquele em que o médico demora uma hora ou mais com o paciente, rastreando o seu metabolismo – eles passarão a cuidar da gente brasileira pobre e anônima. (Leia a excelente entrevista de Najla Passos com a doutora Ceramides Carbonell sobre a formação de um médico em Cuba).

Campos Alegres de Lourdes, Mansidão, Carinhanha, beira do São Francisco, Cocos, Sítio do Quinto, Souto Soares... Quem conhece esse Brasil?

É para lá que eles vão. E para mais 3.500 outras localidades.

Um Brasil esquecido, em muitos casos, mantido na soleira da porta, do lado de fora do mercado e da cidadania.

Que sempre esteve aí. Mas que agora, pasmem, terá um sujeito interessado em ouvir o que sua agente tem a dizer, esforçando-se por entender pronúncias que até nós, os locais, muitas vezes teríamos dificuldade de discernir.

O ‘doutor de Cuba’ de fala estrangeira e jeito parecido com a gente vai examinar, apalpar dores, curar vermes, prescrever cuidados, encaminhar cirurgias, ouvir e confortar.

Com remédios, atenção e esperança.

Houve um tempo em que essas expedições a um Brasil distante do mar eram feitas por brasileiros, e de classe média.

Protagonistas de um relato épico, de nacionalismo não raro ingênuo. Mas que aproximava e treinava o olhar do país sobre ele mesmo.

Coisa que a hiper-conexão disponível agora poderia fazer até melhor.

Não fosse a determinação superior de afastar e dissimular, o que muitas vezes se alcança destacando o pitoresco.

Em detrimento do principal: as questões do nosso tempo, do nosso desenvolvimento, as escolhas que elas nos cobram. E os interesses que as bloqueiam.

Tivemos a Coluna Prestes, nos anos 20.

Os irmãos Villas Boas, apoiados por malucos como Darcy Ribeiro e entusiastas como Antonio Calado, fizeram isso nos anos 40/50 e início dos 60, quando foi criado o Parque Nacional do Xingu.

Trouxeram a boca do sertão para mais perto do olhar litorâneo e urbano.

Desbastavam distancias a facão.

Na raça, traziam horizontes, aproximavam rios, tribos, desafios e, de alguma forma, semeavam um espírito de pertencimento a algo maior que a linha do mar e a calçada de Copacabana.

A utopia geográfica, se por um lado borrava os conflitos de classe, ao mesmo tempo colidia com o país real que os esperava em cada socavão, de trincas sociais, fundiárias, étnicas e econômicas avessas à neblina da glamorização.

Paschoal Carlos Magno, a UNE e o CPC, o Centro Popular de Cultura, fariam o mesmo nos anos 60, antes do golpe militar.

As famosas ‘Caravanas do CPC’ rasgaram o mapa do sertão, a exemplo do que fizeram as Caravanas da Cidadania, de Lula, nos anos 80.

Desceriam o São Francisco nas gaiolas lendárias para garimpar e irradiar a cultura popular em lugares onde agora, possivelmente, um doutor cubano irá se instalar.

Caso de Carinhanha, um dos mais belos entardeceres do São Francisco.

Onde foi que a seta do tempo se quebrou?

Por que já não seduz a grande aventura de nossa própria construção terceirizada, por décadas, aos mercados autoregulados?

Uma leitora de Carta Maior, Odette Carvalho de Lima Seabra, resume em comentário enviado ao site o núcleo duro do problema.

“ A geração dos nossos jovens doutores”, escreve, “ jamais compreenderá de que se trata. Foram criados nos shopping centers. A escola secundária limitadíssima no seu alcance humanístico os fez também vítimas sem que o saibam que são. Uma revolução que durou vinte anos e cujo sentido era o de esvaziar de sentido a vida de todos nós deixou no seu rescaldo, esse bando de jovens, como são os nossos doutores, muito alienados. É tempo de aprender com os cubanos”, conclui Odette.

Colocado nos seus devidos termos, o impasse readquire a clareza histórica de que se ressente a busca de soluções.

Entre indignado e estupefato, o conservadorismo nega aos visitantes cubanos outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.

Ética médica, solidariedade, internacionalismo e humanismo formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos.

À esquerda, no entanto, cabe também evitar simplificações.

Se quiser enxergar a real abrangência das tarefas em curso, é preciso admitir que não estamos diante de uma batalha entre anjos e demônios.

Os médicos do Caribe não nascem bonzinhos. Tampouco endemoninhados, os dos trópicos.

Eles são formados assim. Por instituições.

A escola, por certo, mas a mídia, sem dúvida, que a completa pelo resto da vida.

É vital que o governo, lideranças sociais e os intelectuais compreendam o fundamental em jogo.

Se quisermos colher frutos duradouros com o ‘Mais Médicos’, o passo seguinte do programa terá que ser a reforma universitária brasileira.

Que reaproxime universidade e a juventude das grandes tarefas coletivas do nosso tempo.

As diferenças entre a formação do cubano hostilizado na chegada a Fortaleza, e aqueles que o ofendiam não são apenas de ordem técnica.

Mas, sobretudo, de discernimento diante do mundo.

A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar um outro.

Nem considerar despropositado que parte de seu ganho se transforme em fundo público de reinvestimento.

O oposto das convicções dos que o agraciavam com o corolário de sua própria servidão.

Esse talvez seja o aspecto mais chocante da visita que acaba de chegar.

E, sobretudo, o mais instrutivo.

Ela escancara a doença social que corrói o nosso metabolismo. E adverte para as limitações que irradia.

Na sociedade que estamos construindo.

Na mentalidade que vai se sedimentando. No risco que ela incide sobre o todo.

Para que o ‘Mais Médicos’ um dia possa ser dispensável, o Brasil precisa se tornar ele próprio um grande ‘Mais Solidariedade’.

Como faz Cuba desde 1959, com todos os seus erros, acertos e percalços.

Postado por Saul Leblon às 05:15

(Carta Maior)

Paraguai

A guerra no Papel: História e Historiografia da Guerra no Paraguai (1864-1870)     Escrito por Mario Maestri  




Apesar de ter sido livrada sobretudo por tropas das mais diversas províncias do Brasil, com forte destaque para o Rio Grande do Sul, e constituir o mais importante confronto militar lutado pelas forças armadas do Brasil, a chamada guerra do Paraguai sempre ocupou espaço menor na historiografia brasileira. A historiografia daqueles sucessos foi sempre uma espécie de reserva de caça dos militares-historiadores do exército de terra do Brasil, fortemente influenciados pelos interesses imperialistas do Estado brasileiro.



Mesmo em sua expressão mais refinada, alcançada pelo general Tasso Fragoso, fundador da chamada História Militar Crítica entre nós, aquela historiografia encontrava-se e encontra-se epistemologicamente impedida de superar as visões nacional-patrióticas sobre os fatos que analisa, devido a seus pressupostos e objetivos nacionais implícitos. O militar-historiador serve-se das artes de Clio para fins exclusivos, como o capelão militar prometia as benções de deus apenas para suas tropas. Em um sentido mais lato e essencial, os fatos históricos relativos à guerra do Paraguai foram sempre fenômenos desconhecidos entre nós.



Fora raras exceções, jamais tivemos a rica produção revisionista sobre aqueles sucessos que, no Uruguai, na Argentina e no próprio Paraguai, construíram-se a partir sobretudo da leitura que intelectuais federalistas contemporâneos aos fatos realizaram da verdadeira guerra social, civil e estatal que ensanguentou o sul da América, apresentada restritamente como confronto nacional.



No Brasil, a única crítica consistente à narrativa nacional-patriótica da guerra e de seus objetivos foi a esboçada, em forma sumária e restrita, pe

alt

los positivistas ortodoxos, mais de uma década após o fim do conflito. Nos anos seguintes, sequer foram traduzidas ao português as grandes obras uruguaias, argentinas e paraguaias críticas à visão promovida pelos Estados vitoriosos. Foi singular o autismo da historiografia brasileira sobre aqueles fatos.



Apenas em 1979, mais de um século após o fim do conflito magno, o ensaio de divulgação histórica Genocídio americano: história da guerra do Paraguai apresentou no Brasil leitura crítica daquele confronto de grande repercussão influenciada pela historiografia revisionista. Em seu trabalho, J. J. Chiavenato abraçou a tese de guerra realizada por encomenda quase direta da Inglaterra, já impugnada largamente em importantes estudos revisionistas platinos.



O enorme sucesso de público de Genocídio americano deveu-se parcialmente ao fato de o livro de ter sido lançado nos momentos iniciais da “abertura lenta, gradual e segura” promovida pela ditadura militar brasileira. Sua denúncia do massacre da população paraguaia e dos crimes do exército imperial foi recebida e recolhida também como parte da luta pela desconstrução da retórica ditatorial nacionalista antipopular.



No Brasil, nos anos seguintes àquela publicação, sob os ventos da maré conservadora mundial, a negação dos tropeços, hiatos e insuficiências da reportagem jornalística de J.J. Chiavenato resultou essencialmente na modernização-recuperação-restauração das envelhecidas e superadas teses da historiografia nacional-patriótica.



Comumente, esses trabalhos de cunho restauracionistas conheceram amplo movimento de legitimação científica promovido pela grande mídia, pelas principais editoras, pela própria academia, enquanto os raros estudos nacionais acadêmicos de cunho científico e viés revisionista foram mantidos literalmente no desconhecimento.



Devido a essa operação ideológico-cultural, as fraturas nas representações brasileiras nacional-patrióticas sobre o grande conflito de 1864-70 do Prata, produzidas inesperadamente, em 1979, por trabalho de divulgação histórica surgido à margem da produção historiográfica acadêmica, encontram-se hoje soldadas.



O presente livro reúne artigos sobre a história e a historiografia da guerra do Paraguai que pretendem contribuir para a solução desse verdadeiro impasse vivido por nossa historiografia.



MAESTRI, Mário. A guerra no Papel: História e Historiografia da Guerra no Paraguai
(Correio da Cidadania)

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Medicina e Cuba


Médicos Cubanos: Avança a integração da América Latina
 Beto Almeida, Diretor da Telesur,
Patria Latina – Papo do Dia
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu


O que brilha com luz própria, ninguém pode apagar
Seu brilho pode alcançar a escuridão de outras costas
Que pagará este pesar do tempo que se perdeu
Das vidas que nos custou e das que nos podem custar
O pagará a unidade dos povos em questão
E a quem negar esta razão, a história condenará
Canción por La Unidad Latinoamericana
por Pablo Milanés


Não faltaram emoção, lágrimas e dignidade na chegada dos 176 médicos cubanos, que desembarcaram neste sábado à noite em Brasília, para um trabalho indispensável em municípios brasileiros, mais de 700, ainda sem qualquer assistência médica.

Chegada do 1º grupo de médicos estrangeiros ao Brasil em 2013
Quando aqueles cidadãos cubanos, muitos deles negros, muitas mulheres, com bandeirolas brasileiras e cubanas nas mãos, pisaram o solo brasileiro, ali estava o retrato do enorme progresso social, educacional e sanitário alcançado pela Revolução Cubana. Mas, também, uma prova concreta de que a integração da América Latina está avançando; não é só comércio, é também saúde.

O Brasil coopera com Cuba na construção do Complexo Portuário de Mariel - sua mais importante obra de infraestrutura atualmente - e Cuba coopera com o Brasil preenchendo uma lacuna imensa: a falta de médicos.

Complexo portuário de Mariel em Cuba - Vista Aérea
A campanha conservadora contra a integração latino-americana sofrerá um revés tremendo quando o programa Mais Médicos, começar a apresentar seus efeitos concretos. Esses resultados terão a força para revelar o teor medieval das críticas feitas pelas representações médicas e pela mídia teleguiada pela publicidade da indústria farmacêutica.

Volumosa desinformação

Tendo em vista o volume de desinformação que circulou contra a vinda de médicos estrangeiros, mas contra os médicos cubanos em especial, é obrigatório travar a batalha das ideias, primeiramente, em defesa da Revolução Cubana como uma conquista de toda a humanidade.

Cercada, sabotada, agredida, a Revolução Cubana, que antes de 1959, possuía os mais tenebrosos indicadores sociais, analfabetismo massivo, mortalidade infantil indecente, desemprego e atraso social generalizado, consegue libertar-se da condição de colônia, e, mesmo sem ter uma base industrial como a brasileira, por exemplo, e passa a exportar médicos, professores, vacinas, desportistas. Exporta, principalmente, exemplos!

Esse salto histórico da Revolução Cubana deixa desconcertada a crítica, seja a emanada pela mídia colonizada pelas lucrativas transnacionais fabricantes de fármacos ou equipamentos hospitalares, seja a crítica oligárquica difundida pelas representações médicas. Os que questionam a qualidade da formação profissional dos médicos cubanos são desafiados a responder por que a mortalidade infantil em Cuba é das mais baixas do mundo, sendo inferior, inclusive, àquela registrada no Estado de Washington, nos EUA?

Cuba e a libertação africana

Vale lembrar que Cuba possuía, antes de 1959, pouco mais de 6 mil médicos, dos quais, a metade deixou o país porque não queria perder privilégios, nem concordava com a socialização da saúde. Apenas cinco décadas depois, é esta mesma Cuba que tem capacidade de exportar milhares de médicos para socorrer o povo brasileiro de uma indigência grave construída por um sistema de saúde ainda determinado pelos poderosos interesses das indústrias hospitalar, farmacêutica e de equipamentos, privilegiando a noção de uma medicina como um negócio, uma atividade empresarial a mais, não como um direito, como determina nossa constituição.

Já em 1963, quando a Revolução na Argélia precisou, iniciou-se a prática de cubana de enviar brigadas médicas aos povos irmãos. Ensanguentada pela herança da dominação francesa, a Revolução Argelina encontrou em Cuba a fraternidade concreta, quando ainda não havia na Ilha um contingente médico tão numeroso como o existente atualmente. Predominou sempre na Revolução Cubana a ideia de que em matéria de solidariedade internacional comparte-se o que se tem, não o que lhe sobra. Foi exatamente ali na Argélia que se estabeleceram laços indestrutíveis entre a Revolução Cubana e os diversos movimentos de libertação da África. A partir daí, Cuba participou com brigadas militares e médicas em diversos processos de libertação nacional do continente. De tal sorte que, em 1966, a primeira campanha de vacinação contra a poliomielite realizada no Congo, foi organizada por médicos cubanos!

Os CRMs não sabem que a poliomielite foi erradicada em Cuba décadas antes de ser erradicada no Brasil?

Será o Revalida capaz de avaliar a dimensão libertadora da medicina cubana?

Quando Angola foi invadida por tropas do exército racista da África do Sul, baseado nas supremas leis do internacionalismo proletário, Agostinho Neto, presidente angolano, também médico e poeta, solicita a Fidel Castro ajuda militar para garantir a soberania da nação africana. Uma das mais monumentais obras de solidariedade foi realizada por Cuba que, ao todo, enviou a Angola, cerca de 400 mil homens e mulheres para, ao lado dos angolanos e namíbios, expulsar as tropas imperialistas sul-africanas tanto de Angola como da Namíbia. E sob a ameaça de uma bomba atômica, que Israel ofereceu à África do Sul, argumentando que as tropas cubanas tinham que ser dizimadas porque pretendiam chegar até Pretória...

Na heroica Batalha de Cuito Cuanavale - que todos os jornalistas, historiadores, militantes deveriam conhecer a fundo - lá estavam as tropas cubanas, mas lá estavam também as brigadas médicas de Cuba, que se espalharam por várias pontos de Angola. A vitória de Angola e da Namíbia contra a invasão da África do Sul, foi também a derrota do regime do apartheid. Citemos Mandela: “A Batalha de Cuito Cuanavale foi o começo do fim do apartheid. Devemos o fim do apartheid a Cuba!”.

Qual exame Revalida será capaz de dimensionar adequadamente o desempenho de um médico cubano em Cuito Cuanavale, com sua maleta de instrumentos numa das mãos e na outra uma metralhadora, livrando a humanidade da crueldade do apartheid? Como dimensionar o bem que o fim do apartheid, com a decisiva participação cubana, proporcionou para a saúde social da História da Humanidade?

As crianças de Chernobyl em Cuba

O sentido de solidariedade internacionalista está tão plasmado na sociedade cubana que, quando aquele terrível acidente ocorreu na Usina Nuclear de Chernobyl, em 1986, o estado cubano recebeu, das organizações dos Pioneiros - que congregam crianças e adolescentes cubanos - a proposta de oferecer tratamento médico às crianças contaminadas pela radioatividade vazada no desastre.

Crianças vítimas de Chernibyl (Ucrânia) tratadas em Cuba
Um documentário realizado pelo extinto Programa Estação Ciência, dirigido pelo jornalista Hélio Doyle, exibido com frequência TV Cidade Livre de Brasília, registra como Cuba compartilhou seus recursos médicos e hospitalares, mas, sobretudo, sua fraterna solidariedade com cerca de 24 mil crianças russas que foram levadas para tratamento na Ilha, nas instalações dos Pioneiros, em Tarará.

Destaque-se, primeiramente, que a ideia partiu dos Pioneiros. Segundo, que Cuba não se colocava na condição de doadora, mas apenas cumprindo um dever solidário. Lembravam que o povo soviético havia sido solidário com Cuba quando os EUA iniciaram o bloqueio contra a Ilha cortando a cota de petróleo e do açúcar, suspendendo o comércio bilateral, na década de 60. A URSS passou a comprar todo o açúcar cubano, pelo dobro do preço do mercado internacional, e a abastecer Cuba de petróleo, pela metade do preço de mercado mundial. São páginas escritas, em outra lógica, solidária, fraterna, socialista. É de se imaginar o quanto os dirigentes das representações médicas brasileiras poderiam aprender com aquelas crianças cubanas que ofertaram tratamento às 3 mil crianças russas, um contingente menor que o de médicos cubanos que virão para o Brasil?

Impublicável

A cooperação entre Brasil e Cuba em matéria de saúde não está iniciando-se agora. Durante o governo Sarney, recém restabelecidas as relações bilaterais, em 1986, foram as vacinas cubanas contra a meningite que permitiram ao nosso país enfrentar aquele surto. Na época, a mídia teleguiada também fez uma sórdida campanha contra o governo Sarney, primeiro por reatar as relações, mas também por comprar grandes lotes da vacina desenvolvida pela avançada ciência de Cuba.

De modo venenoso, tentou-se desqualificar as vacinas, afirmando serem de qualidade duvidosa, tal como agora atacam a medicina cubana. Na época, foram as vacinas cubanas que permitiram controlar aquele surto e salvar vidas. Mas, também trouxeram, por meio do exemplo, a possibilidade de que aprendêssemos um pouco dos valores e das conquistas de uma revolução.

Afinal, por que um país com poucos recursos, com uma base industrial muito mais reduzida, conseguia não apenas elevar vertiginosamente o padrão de saúde de seu povo, mas, também desenvolver uma tecnologia com capacidade para produzir e exportar vacinas, enquanto o Brasil, com uma indústria muito mais expandida, capaz de produzir carros, navios e aviões, não tinha capacidade para defender seu próprio povo de um surto de meningite?

São sagradas as prioridades de uma revolução. E é por isso, que, ainda hoje, a sexta maior economia do mundo, se vê na obrigação de recorrer a Cuba para não permitir a continuidade de um crime social configurado na não prestação de atendimento médico a milhões de brasileiros.

Mais recentemente, quando a Organização Mundial da Saúde convocou a indústria farmacêutica internacional a produzir vacinas para combater um tenebroso surto de meningite que se espalhou pela África, obteve como resposta desta indústria o mais sonoro e insensível NÃO.

Cinturão da meningite que atingiu a África debelada pelo fornecimento
de vacinas pela cooperação Brasil Cuba
Os preços que a OMS podia pagar pelas vacinas não eram, segundo as transnacionais farmacêuticas, apetitosos. Milhões de vidas africanas passaram correr risco, não fosse a cooperação entre dois laboratórios estatais, o Instituto Bio Manguinhos, brasileiro, e o Instituto Finley, cubano. Essa cooperação permitiu a produção, até o momento, de 19 milhões de doses da vacina que a África necessitava, a um preço 90% menor que o preço do mercado internacional.

Onde foi publicada esta informação? Apenas na Telesur e na imprensa cubana. 
A ditadura dos anúncios da indústria farmacêutica, que dita a linha editorial da mídia brasileira em relação ao programa Mais Médicos e à cooperação da Medicina de Cuba, simplesmente impediu que o grande público brasileiro tomasse conhecimento desta importantíssima cooperação estatal brasileiro-cubana.

Os médicos cubanos e o furacão Katrina

Para dimensionar a inqualificável onda de insultos que os médicos cubanos vêm recebendo aqui na mídia oligárquica, lembremos um fato também sonegado por esta mesma mídia, o que revela suas dificuldades monumentais para o exercício do jornalismo como missão pública.

Quando ocorre o trágico furacão Katrina, que devasta Nova Orleans, deixando uma população negra e pobre ao abandono, dada a incapacidade e o desinteresse do governo dos EUA naquela oportunidade, em prestar-lhe socorro, também foi Cuba que colocou à disposição do governo estadunidense - malgrado toda a hostilidade ilegal deste para com a Ilha - um contingente de 1300 médicos, postados no Aeroporto de Havana, com capacidade de chegar prestar ajuda à população afetada pelo furacão. Aguardavam apenas autorização para o embarque, e em questão de 3 horas de voo estariam em Nova Orleans salvando vidas.

Devastação causada pelo furacão Katrina em Long Beach - Mississipi
Foto Wikipedia - (Clique na imagem para visualizar melhor)
Esta autorização nunca chegou da Casa Branca. A resposta animalesca do presidente George Bush foi um sonoro NÃO à oferta de Cuba, o que tampouco foi divulgado pela mídia oligárquica, provavelmente para protegê-lo do vexame de ver difundido seu tosco caráter, que tal recusa representava. Os EUA estão sempre prontos para enviar militares e mercenários pelo mundo. Mas, são incapazes de prestar ajuda ao seu próprio povo, e também arrogantes o suficiente para permitir uma ajuda de Cuba à população pobre e negra afetada pelo furacão.

Uma Escola de Medicina para outros povos

Também não circulam informações aqui de que Cuba, após o furacão Mity, que devastou a America Central e parte do Caribe, decide montar uma Escola Latino-americana de Medicina, que, em pouco mais de 10 anos de funcionamento, já formou mais de 10 mil médicos estrangeiros, gratuitamente. Entre eles, 500 jovens negros e pobres dos EUA, moradores dos bairros do Harlem e do Brooklin. Eles me revelaram que se tivessem continuado a viver ali, eram fortes candidatos a serem presa fácil do narcotráfico. Frisavam que, estar ali em Cuba, formando-se em medicina, gratuitamente, era uma possibilidade que a maior potência capitalista do mundo não lhes oferecia.

Campus da ELAM - Escola Latino Americana de Medicina
Há, estudando na ELAM, cerca de uma centena de jovens do MST, filhos de assentados da reforma agrária. Isto significa que Cuba compartilha com vários países do mundo seus modestos recursos. Também estudam lá cerca de 600 jovens do Timor Leste, sendo que existem 40 médicos cubanos trabalhando já agora no Timor.

O tipo de exame Revalida seria capaz de dimensionar esta solidariedade cubana com a saúde dos povos?

Ampliar a integração em outras áreas

Também não se divulgou por aqui, que Cuba montou três Faculdades de Medicina na África, (Eritreia, Gâmbia e Guiné Equatorial), em pleno funcionamento, com professores cubanos. Toda esta campanha de insultos contra Cuba e os médicos cubanos, abre uma boa possibilidade para discutir e conhecer mais a fundo todas estas conquistas da Revolução Cubana, mas, especialmente, para que as forcas progressistas reflitam sobre quantas outras possibilidades de cooperação existem entre Brasil e Cuba, em muitas outras áreas.

Mas, serve também para reavaliar a posição de certos parlamentares médicos da esquerda no Brasil que se opõe, inexplicavelmente, ao Programa Mais Médicos, alguns chegando, ao absurdo de terem apresentado projetos de lei proibindo, pelo prazo de 10 anos, a abertura de qualquer novo curso de medicina no Brasil.

Qualificar o debate sobre a integração

Enfim, um debate democrático e qualificado em torno do programa Mais Médicos, da presença de médicos cubanos aqui no Brasil e em mais de 70 países, e também, sobre as conquistas da Revolução Cubana, deve ser organizado pelos partidos e sindicatos, pelo movimento estudantil, pelos movimentos sociais, pela Solidariedade a Cuba, pelas TVs e rádios comunitárias, como forma de impulsionar a integração da America Latina, que, neste episódio, está demonstrando o quanto pode ser útil à população mais pobre. A TV Brasil pode cumprir uma função muito útil, pode divulgar documentários já existentes sobre o trabalho de médicos em regiões inóspitas e adversas em diversos países.

É preciso expandir esta integração, avançar pela educação, pela informação, não havendo justificativas para que o Brasil ainda não esteja conectado com a TELESUR, por exemplo, que divulgado amplo material jornalístico informando que 3 milhões e meio de cidadãos latino-americanos já foram salvos da cegueira graças a Operação Milagro, pela qual médicos cubanos e venezuelanos realizam, gratuitamente, cirurgias de cataratas em vários países da região.

TELESUR -Logo do Canal Capibaribe (Brasil)
Enquanto o povo argentino, por exemplo, já pode sintonizar gratuitamente a TELESUR e informar-se de tudo isto, o povo brasileiro está impedido, praticamente, de receber informações que revelam o andamento da integração da America Latina. Mas, com a chegada dos médicos cubanos, a integração será cada vez mais pauta da agenda do debate político nacional e receberá , certamente, um impulso político e social, notável, pois o povo brasileiro, saberá , com nobreza e humanismo, valorizar e apoiar o programa Mais Médicos. Alias, é exatamente isto o que tanto apavora a medicina capitalista.

Há 70 mil engenheiros estrangeiros no Brasil hoje!

Segundo dados recentes do Ministério do Trabalho, existem hoje trabalhando no Brasil cerca de 70 mil engenheiros estrangeiros. Nenhuma gritaria foi feita. Neste caso, trata-se de petróleo e outros projetos, muito lucrativos para as multinacionais. Mas, quando se trata de salvar vidas, acendem-se todas as fogueiras do inferno da nova inquisição contra uma cooperação que é lógica e indispensável, solidária e humanitária. Por que é aceitável a importação de telefones, equipamentos médicos, remédios, cosméticos, roupas, caviar, bebidas, vacinas e não se aceita a cooperação de médicos de Cuba, sendo este o único país em condições objetivas de apresentar-se prontamente e de maneira eficaz com profissionais experimentados. Será que as representações médicas brasileiras possuem sequer uma remota ideia de que estão proferindo insultos a esta bela história da medicina socialista de Cuba?

Quem pagará a conta da demora?

A presidenta Dilma tem inteira razão em convocar os Médicos Cubanos, algo que já poderia ter sido feito há mais tempo, amenizando a dor e o sofrimento de milhões de brasileiros abandonados por um sistema de saúde e por uma mentalidade de parcelas das representações médicas que, por mais absurdo que pareça, ainda tentam justificar este abandono. Aliás, com a determinação da presidenta Dilma está absolutamente revelada a importância da integração da América Latina, não havendo justificativas para que esta modalidade de integração nas esferas sociais, não avance também para outras áreas, como a educação, por exemplo.

Foi exatamente com o método cubano denominado “Yo, si, puedo”, que Venezuela, Bolívia, Equador são países declarados pela UNESCO como “Territórios Livres do Analfabetismo”, sempre com a participação direta de professores cubanos.

Muito em breve, será a Nicarágua, que vai recuperar aquele galardão, que já havia conquistado durante a Revolução Sandinista, mas depois perdeu, na era neoliberal.

Por quanto tempo o Brasil terá apenas projetos pilotos, em apenas 3 cidades, com o método de alfabetização cubano, que, aliás, já tem absoluta comprovação e reconhecimento mundiais? Que espera a sexta economia do mundo em convocar ainda mais a cooperação cubana para erradicar o analfabetismo? Quem pagará a conta desta injustificável demora?

Dra. Milagro Cárdenas Lopes - médica cubana
Termino com a declaração da Dra. Milagro Cárdenas Lopes, cubana, negra, 61 anos “Somos médicos por vocação, não nos interessa um salário, fazemos por amor”, afirmou. Em seguida, dirigiu-se com seus companheiros para os ônibus organizados pelo Exército Brasileiro, que cuida de seu alojamento. Sinal de que a integração está escrevendo uma nova página na história da América Latina.
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[*] Beto Almeida (Carlos Alberto Almeida), membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato, é jornalista premiado com a Medalha Félix Elmuza pela União dos Jornalistas de Cuba (UPEC); atualmente atua como membro da Junta Diretiva da La Nueva Televisión Del Sur (Telesur) e da Comissão de Justiça e Paz da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Também é correspondente da Radio de Madres Plaza de Mayo na Argentina.
Postado por Castor Filho às 19:26:00
(Redecastor)

Marina

Marina, quatro anos depois



Há quatro anos, no dia 19 de agosto de 2009, Marina Silva deixou o PT.

É cedo ainda, do ponto de vista de tempo histórico, para sentenças definitivas.

Por ora, cabe dizer, como já disse uma vez Carta Maior, que a agenda ambiental do PT não ganhou com a saída de Marina Silva.

E Marina ainda precisa provar que a ruptura fortaleceu a agenda ambiental no país.

Neste domingo, Marina concedeu entrevista à Folha.

Entrevista magra, possivelmente descarnada pela edição do jornal.
Mas generosa o suficiente para ressaltar seu time de economistas.

Entre os quais avultam medalhões neoliberais, como Eduardo Giannetti da Fonseca, do conservador Insper, e André Lara Resende, formulador tucano do Plano Real, que hoje se dedica a buscar uma ponte entre o arrocho ortodoxo e a agenda verde do não crescimento.

Na edição da 2ª feira, nada menos que dois colunistas do diário da família Frias cobriram de elogios a presidenciável que mais cresceu com os protestos de junho.

Aspas para trechos das colunas de Vinicius Mota e Valdo Cruz, desta 2ª feira:

“Marina Silva deu mostras de ter amadurecido na entrevista publicada ontem nesta Folha. O discurso da ordem não se restringiu à crítica dos protestos violentos (...) Na eleição de 2010, Marina já acenava à chamada ortodoxia econômica, no meio de um palavreado confuso e contraditório. Parece que a fase de dúvidas passou. Sem entrar no mérito da convicção da ex-ministra, há boas razões práticas para abraçar a causa (liberal)”. (VM)

“Por mais que o petismo diga que Marina Silva não mete medo, a candidata verde passou a preocupar, sim, os responsáveis pela missão de reconduzir Dilma Rousseff a um segundo mandato. Seus recentes movimentos na direção de economistas como André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, deixaram desconfiados estrategistas da dona do Planalto”. (VC)

A inflexão saudada pelo entusiasmo conservador reflete a dificuldade histórica de uma agenda ‘neutra’ sobreviver na luta política, mesmo sendo ela a versátil bandeira verde.

Que agrega desde rótulos espertos de detergentes de limpeza, a militantes sinceros da resistência à destruição da natureza.

Carta Maior não menospreza a gravidade da questão ambiental submetida à hegemonia predatória e imediatista dos mercados desregulados.

Mas tem insistido em que o ambientalismo precisa decidir se quer ser um rótulo, uma tecnologia ou cerrar fileiras na luta por uma nova sociedade.

Quer ser um guia de boas maneiras para o engodo do 'capitalismo sustentável'? Ou um projeto alternativo à lógica desenfreada da exploração da natureza e do trabalho?

A 'Rede' de Marina nasceu como um flerte com a trama evanescente da 'terceira via’.
Nem de esquerda, nem de direita. Nem situação, nem oposição.

Há um tipo de neutralidade que só enxerga os erros da esquerda.

E costuma rejuvenescer o cardápio da direita, sempre que esta se ressente de atrativos para retomar a disputa pelo poder.

Não será propriamente inédito se vier a ocorrer de novo.

A bandeira do 'não crescimento' evolui nessa direção.

Não por acaso, é empunhada agora por Lara Resende – cuja fortuna pós-Real, a exemplo da de outros sábios banqueiros do PSDB, permite-lhe dedicar-se a cavalos de corrida e a divagações antidesenvolvimentistas.

Elide-se nessa poeira de sofisticação a essência predatória do sistema de produção de mercadorias.

Não crescimento em si é o que estamos assistindo há cinco anos, na maior crise do capitalismo desde 1929.

Nada na experiência histórica sugere que a qualidade da vida no planeta melhora quando o sistema congela, a ponto de dispensar o ecoliberalismo de responder a perguntas como: não crescimento para quem, como e a que custo?

Em vez de respostas, o que subsiste à passagem do tropel modernoso é a pertinência das perguntas históricas dirigidas às velhas utopias centristas.

Quem decidirá o quê e quanto a sociedade vai produzir, ou deixar de produzir?

Que tipo de Estado é necessário para viabilizar o planejamento de uma suficiência bem distribuída?

Quais critérios definirão o rateio sustentável dos recursos entre nações e dentro de cada nação?

Como serão superadas as desigualdades históricas acumuladas até o presente?

São perguntas quase rudimentares.

Mas suficientes para evidenciar que a tese do não crescimento responde aos desequilíbrios sociais e ambientais, tanto quanto a panaceia do crescimento é sinônimo de justiça social.

E que as duas protagonizam fugas da questão essencial do nosso tempo.

A democracia.

Quem e como se fará o controle de um Estado capaz, aí sim, de ordenar a sociedade e a produção num rumo sustentável?

Distinguir entre 'consumismo' e sociedade justa e extrair consequências práticas disso é mais que obrigação do ambientalismo consequente.

E da esquerda autêntica também.

Nunca é demais reiterar aquilo que desespera o conservadorismo: a década de governos do PT tirou 50 milhões de brasileiros da miséria.

Isso mudou a ossatura política do país.

Talvez de forma irreversível, no que diz respeito à plasticidade da produção e da demanda.

Mas esse novo protagonista, como fica cada vez mais evidente, ainda é um personagem inconcluso da nossa história.

Sua identidade política está em disputa na luta impiedosa dos dias que correm.

É disso que se trata quando se busca sofregamente eviscerar em praça pública o PT e suas principais lideranças.

Não o PT, o aparelho: mas o risco de a sua criação histórica evoluir a ponto de arrastar o próprio criador.

O caricato Joaquim Barbosa é a bigorna estridente encarregada de dar suporte às marretadas dos que sabem exatamente o risco que representa essa mutação.

O conjunto explica a ‘dosimetria’ hipócrita da mídia.

Ou será que a destinação de espaço --e a contundência— na cobertura do suposto mensalão, pode ser comparada ao empenho editorial e investigativo destinado agora ao escândalo do metrô tucano?.

Colunistas da indignação seletiva, súbito, recolhem-se como roedores às tocas da conveniência.

Mas, e Marina e sua Rede, que papel cumprem ao fazer vista grossa desse divisor escancarado da disputa política atual?

Não há na pergunta a intenção de ofender, mas a exortação a refletir.

A arguição de fundo indaga o que o projeto da Rede entende por sociedade sustentável e justa.

Não se avoque condescendência com quem está começando.

Marina, mais que ninguém conhece os antecedentes dessa história.

Nos anos 70, Chico Mendes (1944-1988), associado às pastorais da terra, vinculou então, pioneiramente, a defesa da floresta à luta contra a miséria e a opressão.

Rompeu-se ali uma tradição preservacionista europeia, branca, elitista e excludente.

No limite, ela preconizava o ostracismo de populações pobres para salvar paisagens.

A ecologia do não-crescimento tem suas raízes aí.

Desde o estirão percorrido por Chico Mendes, o aprofundamento estratégico da interação entre desenvolvimento, justiça social e sociedade sustentável ficou a dever dentro do PT.

Mas em que mesmo avança Marina Silva, quatro anos depois da ruptura com o partido?

Pode-se chamar de ‘amadurecimento’, como o faz a Folha, o ensaio de adesão a um neoliberalismo, cujo empenho específico em evitar que a humanidade seja jogada a um ponto de não retorno no século 21, foi empurrá-la à maior crise do capitalismo desde 1929?

Nada justifica que o tema ambiental continue engavetado na prateleira dos desafios remotos da esquerda.

O colapso financeiro e a multiplicação de eventos climáticos extremos evidenciam a exaustão econômica, social e civilizacional de uma época.

Mas há uma determinação clara do conjunto.

A supremacia do capital financeiro, elidida, astutamente, nas reflexões dos banqueiros do não-crescimento.

É ela que condiciona o cálculo econômico do nosso tempo, com a ganância intrínseca a uma lógica dissociada de compromisso com o mundo real.

Taxas de retorno incompatíveis com a exploração sustentável dos recursos naturais – de ciclo mais lento e mais longo – tornaram-se o paradigma de um regime global de extorsão de lucros.

A voragem do capital fictício encontra na ganância dos acionistas um roteador à altura.

Seu padrão de retorno torna incompatível o convívio entre produção e direitos sociais.

Entre a exploração de matérias-primas e a regeneração dos sistemas naturais.

O conjunto sugere que a dissociação entre socialismo democrático e ambientalismo consequente configura-se uma contradição nos seus próprios termos.

A atrofia de um desarma e derrota o outro.

Significa também que a assimilação da agenda ambiental pelo neoliberalismo , antes de configurar uma alternativa ao teor destrutivo do capital nos dias que correm, reforça o sopro da barbárie que já respira entre nós.

Quatro anos depois, Marina oscila à beira desse precipício, enquanto o jornalismo isento grita: 'Pula! Pula! Pula!

A ver.

Postado por Saul Leblon
(Carta Maior)

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Snowden:


Asilo para Snowden: “É a lei, estúpido!”
8/8/2013, [*] Richard Falk, Al-Jazeera, Qatar 
Snowden’s Asylum: “It’s the law, stupid”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Documento de concessão temporária da Rússia a Edward Snowden, por um ano, com status de refugiado político
A imprensa-empresa mais influente nos EUA tem usado três meios para reforçar seu viés a favor do governo, no caso Snowden:

Primeiro, refere-se sempre a Snowden como “vazador” [orig. lit. leaker], em vez de “alertador” [orig. whistleblower, lit. “tocador de apito”] ou “dissidente [do estado] de vigilância”, designações mais precisas e mais respeitosas.

Segundo, a imprensa-empresa dominante ignora completamente o quanto o gesto dos russos, de dar status de refugiado temporário a Snowden por um ano está em perfeito acordo com o nível normal de proteção a ser dada a qualquer pessoa acusada de crimes políticos não violentos em país estrangeiro, e perseguida diplomaticamente e legalmente por governo que busque indiciá-la e processá-la.
A Rússia entregar Snowden aos EUA nessas condições seria moralmente e politicamente escandaloso, considerando-se a natureza dos crimes de que os EUA acusam Snowden.

Terceiro, a imprensa-empresa dominante recusa-se a reconhecer que espionagem, a principal acusação feita contra Snowden, é a principal e maior, a “ofensa política” essencial, na lei internacional, e como tal é rotineiramente excluída de qualquer lista de ofensas que geram extradição.

Assim sendo, ainda que existisse tratado de extradição entre EUA e Rússia, seria preciso deixar absolutamente claro que não há nenhum dever legal, para os russos, de entregar Snowden às autoridades dos EUA para ser processado criminalmente e, sim, haveria um dever moral e político de não o entregar, sobretudo nas circunstâncias que cercam a controvérsia sobre Snowden.

Barack Obama
Se todos esses elementos estivessem sendo claramente articulados na discussão, pela imprensa-empresa, o governo dos EUA já teria sido exposto como ridículo, ao reclamar contra a disposição de vários governos estrangeiros de dar asilo a Snowden.

O governo Obama e os cabeças quentes do Senado que lastimassem o quanto quisessem por não poderem processar Snowden nos EUA; mas que o fizessem só com seus próprios botões. Em todos os casos, qualquer reclamação sempre seria o que é: império petulante, mostrando ira e fúria em caso no qual todo o seu poder mais duro, em todo o mundo, não lhe serve para coisa alguma; e suas opções políticas são proibidas por lei.

Nessas condições, pôr-se a ameaçar países estrangeiros com consequências diplomáticas adversas no caso de se recusarem e entrar no jogo não é só manifestação de frustração infantiloide: também é gesto que denuncia a própria derrota.

Os países que ofereceram asilo a Snowden ou que se recusaram, na forma adequada, a atender à requisição de Washington, quando os EUA requisitaram a custódia de Snowden, fizeram a única coisa decente que havia a fazer.

Surpreendente, isso sim, que outros governos não se tenham apresentado para fazer o mesmo. Assim se criou uma situação na qual países relativamente pequenos, como Bolívia, Venezuela e Nicarágua foram forçados a encarar sozinhos as violentas táticas “de braço longo” dos EUA – o que talvez sinalize uma bem-vinda nova atitude, mais firme, mais decidida, em toda a América Latina, de não mais aceitar como identidade regional a posição de quintal dos fundos do colosso do Norte.

Deve-se registrar que o presidente Vladimir Putin, considerando a natureza das revelações sobre o alcance global dos sistemas norte-americanos de vigilância e controle, agiu com excepcional deferência e muita consideração ante as sensibilidades norte-americanas. Em vez de simplesmente declarar que Snowden só seria entregue aos EUA se assim o desejasse, Putin cuidou de dizer que não queria que o incidente ferisse as relações da Rússia com os EUA. Chegou até a condicionar a concessão do asilo a uma muito estranha promessa, que exigiu de Snowden, de que não voltaria a divulgar documentos que arranhassem interesses norte-americanos.

Charles Schumer
Foi abordagem construtiva, em situação extremamente delicada, que supera, qualitativamente, os arroubos hiperbólicos e as palavras agressivas do senador suposto Democrata de New York, Charles Schumer:

A Rússia nos apunhalou pelas costas (...) Cada dia que Snowden permanece em liberdade, é mais uma corte do punhal, na ferida.

Devem-se cobrar respostas honestas a esses senadores tão terrivelmente ofendidos, entre os quais John McCain e Lindsey Graham, que não perdem chance de inventar brigas. O que teriam feito, se um alertador russo tivesse revelado detalhes de um sistema russo de espionagem que estivesse ouvindo todas as deliberações secretas do governo em Washington e invadindo a privacidade de todos os norte-americanos? A indignação arrogante seria sem limites nos EUA, como também seria infinita a gratidão que cobriria o Snowden russo.

Mas Washington só faz procurar meios para manifestar o quanto está ‘ofendida’ pelo comportamento dos russos. O secretário de imprensa da presidência dos EUA, fala de “extremo desapontamento”, que pode levar Obama a cancelar encontro marcado  com Putin para setembro, em cuja agenda estão itens como Síria, redução de arsenais nucleares e o Irã.

John McCain (E) e Lindsey Graham (D)
Os senadores John McCain e Lindsey Graham, saudosos dos dias da Guerra Fria, lançaram manifesto conjunto incendiário, exigindo que os EUA passem a considerar a Rússia numa ótica de conflito. Propuseram impetuosamente que, como reação ao asilo concedido a Snowden, se acelerem os planos para instalação de sistemas de mísseis de defesa na Europa e expanda-se a OTAN, em termos que o Kremlin teria de interpretar como de antagonismo declarado.

É verdade que a nova identidade de Putin, como “defensor de direitos humanos” não tem toda a necessária credibilidade, se se considera o modo como os dissidentes políticos são tratados na Rússia, mas isso não diminui a evidência de que a resposta que deu ao caso Snowden foi corretíssima.

Há obtusidade na fúria com que a diplomacia dos EUA está atuando nesse caso. Os atos de espionagem que Snowden cometeu são puro delito de natureza política. Além disso, a natureza do que foi revelado mostrou que, sim, há ameaça real e repetida à confidencialidade das comunicações de governo em todo o mundo

No mínimo, em vez de se deixar intimidar pelas demandas descabidas dos EUA, a resposta internacional mais apropriada e mais saudável seria gritar “Falta!” e parar o jogo.

Se o mundo fosse constituído de estados igualmente soberanos e houvesse legislação global, os EUA teriam de humildemente pedir desculpas e, no mínimo, prometer que não repetiriam no futuro, o comportamento de até agora.

Snowden seria punido por desobedecer à lei norte-americana, mas seria condecorado por apontar algumas feias agressões à liberdade e à ordem constitucional, inclusive dentro dos EUA, mostrando o quanto é perigoso deixar o serviço de equilibrar segurança e respeito às liberdades civis entregue à boa fé e ao juízo de burocratas e políticos.

Vivemos um triste momento de verdade, que fala muito de alinhamentos e sensibilidades. Alguns importantes comentaristas nos EUA, como o ex-diretor da CIA Robert Gates, e Jeffrey Toobin, especialista da rede CNN para questões legais, alinharam-se com a ordem estabelecida; disseram que confiam mais em anônimos funcionários públicos obedientes ao governo, que num dissidente como Edward Snowden que se dá o direito de decidir o que o público precisa saber.

Bradley Manning (E) e Julian Assange (D)
Como nos casos de Julian Assange e Bradley Manning, o teste crucial não acontece nesse nível de abstração, mas tem a ver com a concretude e implica decidir se o que foi revelado é o tipo de segredo sujo que uma sociedade democrática poderia ignorar para sempre.

Seria de esperar que governo genuinamente democrático não desejasse encobrir crimes de guerra e a invasão da privacidade dos cidadãos, nem que tanto se empenhasse para manter esses crimes protegidos contra qualquer procedimento para aumentar a transparência.

Darth Vader
Na era das maravilhas digitais, mais do que nunca dependemos de cidadãos de consciência, que nos protejam contra cenários orwellianos cerebrados por aspirantes a Darth Vaders que vivem nas profundezas obscuras da burocracia governamental em Washington. Esses são os indivíduos que repetidamente arrastam os EUA para o lado obscuro da força, em lugares como Guantánamo, Abu Ghraib e a base Bagram da Força Aérea, e constroem os infames “buracos negros” e inventam procedimentos depravados como a “entrega extrema” [orig. extreme rendition], pela qual suspeitos podem ser torturados sob certeza de impunidade para os torturadores, também no caso de se comprovar que o torturado é inocente.

Nós, cidadãos do mundo, devemos ser gratos pelos sacrifícios de indivíduos como Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, com certeza os principais heróis do nosso tempo. E se sonhamos com governos legítimos, nossos governantes e representantes eleitos devem também ser gratos pela possibilidade de pôr fim aos abusos do poder.


[*] Richard Falk é Professor Emérito da cátedra Albert G. Milbank de Direito Internacional na Princeton University e Professor Visitante Emérito de Estudos Internacionais na University of California, Santa Barbara. É também Relator Especial da ONU para Direitos Humanos na Palestina.
(Carta Maior)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Médicos Cubanos


‘Mais Médicos’: eles agem como Bush em Nova Orleans


Há oito anos, no dia 26 de agosto de 2005, o furacão Katrina chegou aos EUA.

No dia 29 atingiu Nova Orleans. Desencadearia uma espiral de devastação que associou desabamentos, inundações, afogamento, fome, sede e saque.

Pretos, pobres, velhos e crianças foram as principais vítimas do desastre que custou 1.800 vidas.

Muitas poderiam ter sido poupadas se o socorro tivesse a agilidade requerida nessas horas.

O governo Bush demorou quatro dias para reagir.

O presidente republicano sequer visitou o local logo após a tragédia.

Com uma semana da passagem do Katrina, inúmeras áreas continuavam isoladas.

O abandono cuidou de eliminar muitos dos que sobreviveram à tormenta.

A palavra caos nunca esteve tão associada à ausência de governo como em Nova Orleans.

Tropas para conter saques e violência chegaram logo. Mas continuou faltando suprimentos, médicos, remédios e gente especializada em atuar em situações limite.

A popularidade de Bush vergou sob o peso dos mortos.

Não era uma guerra, não cabiam desculpas patrióticas.

Novas Orleans deixou patente a inadequação social de uma governo que se evocava um anexo dos mercados.

Em meio ao desespero, Fidel Castro ofereceu ajuda. Cuba se propôs a colocar 1.600 médicos experimentados em catástrofes para atuar em Nova Orleans.

‘Em 48 horas’, prontificou-se o governo cubano.

Bush não respondeu.

Fidel insistiu. Cuba providenciaria todo o equipamento necessário e 36 toneladas de medicamentos.

Silêncio.

Dias depois, um porta-voz da Casa Branca dispensou a oferta.

Há um ciclone de abandono e isolamento médico cujo vórtice atinge cerca de 3500 municípios brasileiros.

A demanda para atender à emergência é superior a 15 mil médicos.

As inscrições validadas pelo programa Mais Médicos resolvem 10% dessa defasagem.

Cerca de 4 mil médicos cubanos foram contratados pelo governo brasileiro para mitigar a emergência, em um acordo mediado pela Organização Pan Americana de Saúde.

Os primeiros grupos a desembarcar neste final de semana, em Recife e Salvador, receberam do conservadorismo local o mesmo tratamento seboso e deselegante endereçado por Bush a Fidel, durante o Katrina.

A exemplo do republicano, o conservadorismo brasileiro prefere ver a pobreza morrer doente a ter um médico cubano prestando assistência emergencial nas áreas mais carentes do país.

Se dependesse dos gásparis, elianes, tucanos e assemelhados o Katrina da carência médica continuaria a devastar o Brasil miserável.

Enquanto a hipocrisia conservadora pontifica elevadas razões humanistas para recusar a ajuda emergencial de Cuba.

A verdade, porém, é que o ‘Mais Médicos’ caiu na simpatia da população.

A reação foi oposta ao que pretendia a resistência corporativa ao programa.

Descaradamente elitista, o boicote criou uma referência pedagógica dos interesses em disputa neste caso.

Hoje, o ‘Mais Médicos’ conta com o apoio de 54% da população, no que diz respeito à vinda de profissionais estrangeiros.

Diante do revés, o conservadorismo acionou a sua tropa de elite.

As mesmas gargantas que vociferam contra o ‘Custo Brasil’, o salário mínimo e toda a herança de leis trabalhistas trazida do ciclo Vargas, agora discursam em defesa dos direitos e salários dos cubanos.

Alguns, os mais afoitos, já acalentam uma saia justa diplomática, diante de eventuais ‘desertores...’

Veteranas da crônica conservadora evocam Castro Alves e falam em ‘aviões negreiros’.

O degrau promete não ser o último da desfaçatez.

A má fé ideológica tem gordura para queimar.

Mas não só isso.

Há uma real dificuldade de ir além da lógica plana e rasa, fruto do comodismo cevado na ausência de debate real no jornalismo, ambiente no qual foram adestrados os vulgarizadores mencionados.

Ouvir os cubanos, por exemplo, para quê se a concorrência também não o fará?

Uma reportagem de fôlego em lugares e países onde acordos semelhantes já funcionam?

Desnecessário, pelo mesmo motivo.

Uma visita às escolas de medicina cubanas, para discutir a suspeita de baixa qualificação de que são acusados seus formandos?

Idem, ibidem.

Sonega-se aos protagonistas do acordo brasileiro qualquer possibilidade de motivação solidária, competência profissional e discernimento do seu papel no mundo, distinto dos critérios exclusivamente pecuniários que movem o corporativismo branco aqui e alhures.

Médicos, cu-ba-nos?

É mais fácil desdenha-los, como fez Bush, mesmo que isso tenha custado a chance de sobrevivência de muitas das 1800 vítimas fatais em Nova Orleans.

Fazem o mesmo os nossos ‘bushs’.

A usina plana e rasa da emissão conservadora impede que se discuta em profundidade qualquer tema. Desde problemas na esfera da saúde pública, até impasses e desafios reais da construção do socialismo no século 21, dos quais Cuba é um exemplo.

E não é preciso recorrer a Marx para aquilatar o ônus desse entorpecimento.

O economista Paul Krugman, a quem os nossos ‘bushs’ não podem acusar de ‘petismo’, escreveu, a propósito da visão republicana sobre saúde pública, algumas linhas que caem como uma luva no debate brasileiro sobre o ‘Mais Médicos’. Pergunta: quem, na indigência do nosso colunismo, seria capaz de articular um raciocínio não previsível e nuançado, como esse?

(...) “A relação médico-paciente já foi considerada especial, quase sagrada. Agora, políticos e supostos reformistas tratam o atendimento médico como se ele fosse uma transação comercial igual à compra de um carro (...) A medicina, afinal de contas, é uma área em que decisões cruciais – decisões de vida ou morte – devem ser tomadas. Para que esse arbítrio ocorra de maneira inteligente, requer-se um vasto conhecimento técnico dos profissionais do setor. Como se isso não bastasse, as escolhas dos médicos são frequentemente feitas enquanto o paciente está incapacitado, sob muito estresse ou quando a ação precisa ser imediata, sem tempo para discussões, muito menos para a pesquisa de preços.(...) É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são tradicionalmente vistos como uma categoria especial, da qual se espera um comportamento de padrão mais elevado do que a média dos demais trabalhadores. Há um motivo sobre por que assistimos a séries televisivas que retratam médicos – e não gerentes administrativos – como heróis. Sugerir que essa realidade possa ser reduzida a um simples comércio – que os médicos sejam meros “fornecedores” vendendo serviços a “consumidores” de saúde – é, com o perdão do trocadilho, uma ideia doentia. O fato de essa noção equivocada ter se tornado dominante é sinal de que há algo de muito errado não apenas nessa discussão, mas também nos valores da sociedade ... “ (Paul Krugman; NYT 22/04/2011)

Leia também, abaixo, dois textos extraídos do dossiê sobre Cuba, produzido em 2011 pelo Instituto de Estudos avançados da USP (IEA).

‘Um olhar para a saúde pública cubana’ foi escrito pelo jornalista cubano José A. de la Osa, especializado na área científica. O texto bastante informativo traça um panorama do ensino médico, da pesquisa, das descobertas e avanços técnicos na ilha, de onde provém os profissionais que agora vão trabalhar no Brasil. O preconceito conservador, sugestivamente, dispensa-se de consultar esses dados antes de proferir sentenças nutridas em ignorância e frivolidades.

“Cuba: a sociedade após meio século de mudanças, conquistas e contratempos” é outro exemplo de consistência, da qual se ressente o colunismo conservador ao criticar as dificuldades da revolução cubana. O artigo traça um panorama denso e crítico do quadro atual cubano, sem concessões à conveniência ou à visão direitista. O sociólogo Aurelio Alonso, autor do trabalho, é professor adjunto da Universidade de Havana e subdiretor da revista Casa de las Américas.

(Carta Maior)