terça-feira, 6 de agosto de 2013

Os Ricos

Libertemos os ricos e a extrema riqueza!

Libertemos os ricos e a extrema riqueza
Por Flávio Aguiar.

Passando os olhos pela superfície de nosso país, fiquei atônito com o número de iniquidades que ainda caracterizam nossa sociedade atrasada, cheia de nós e impasses! Conhecedor que sou da vida civilizada ao norte do nosso planeta, pensei ser meu dever apresentar um corpo de propostas para melhorar a vida em nossa terra e livrá-la dos entraves que ainda atravancam seu progresso rumo a ser uma das nações afinadas com o concerto das demais que já se refinaram conforme a música dos ideais civilizatórios que embalam nossas melhores aspirações!

Hoje em nossa sociedade emasculada de seus bons princípios, há governantes que se jactam de ter contribuído para libertar os mais pobres da extrema pobreza. Vã ilusão, vão ideal, colcha de retalhos eivada de equívocos! Não são os pobres aqueles a quem se deve ajudar a se libertarem de suas peias, pois eles não as têm! Se são pobres, é porque é da vontade de Deus, ou por sua natural vocação para a indolência e a busca do bem-estar através de subterfúgios, como a dependência do Estado e a sobrecarga de atribuições que caem, injustamente, sobre os ombros já carregados dos mais ricos!

Portanto, o que nos cabe, neste momento de decisões cruciais, é libertar os ricos dos pesados encargos que impedem que eles desenvolvam suas aptidões e com elas ajudem o desenvolvimento equilibrado e sustentável de nosso país.

Por exemplo, foquemos esta candente discussão, que hoje se trava, sobre fornecer médicos para todos, desejando-se até macular nossa ilustre classe hipocrática com a importação de médicos comunistas para atender unicamente os mais pobres e as regiões remotas do país. Não! Importemos médicos sim, mas para concentrá-los nas áreas mais nobres de nossas cidades e nas zonas rurais de grandes produtores, que engrandecem nosso PIB, este anão de hoje porque sua média tem de ser repartida com regiões onde predomina a vocação para o lazer de nossas classes pretensamente laborais, mas na verdade vagabundais!

Importemos médicos – aliás, unidades hospitalares inteiras –, da Suécia, da Finlândia, da Noruega, da Suíça, de Miami, para que atendam nossas classes sacrificadas pelos pesados impostos e taxas que caem sobre sua justa abastança. Quanto às periferias das grandes cidades e as regiões remotas do país, que se baixe um decreto proibindo que tenham mais médicos por habitantes do que o razoável, digamos, 0,001 médico por 100 mil habitantes. Só assim estas classes daninhas aprenderão o quanto elas custam para o erário público e para os melhores de vida através dos impostos, graças à sua teimosia de viver em barracos, palafitas, nas margens dos esgotos naturais que felizmente a natureza e a previdência poluidora de nossos laboriosos industriais mantêm, pois assim impedem gastos maiores com coisas inúteis, como a prevenção e estações de tratamento de dejetos que supostamente melhoram a saúde das pessoas.

Como se a saúde fosse uma coisa pública! Não é! Isto está comprovado pelos melhores filósofos da Academia de Wall Street. Pois vejam só: se a população de um país tem majoritariamente boa saúde, o seu PIB cai. Mas, ao contrário, se proliferam epidemias, pandemias, pósdemias, prédemias, etc., o seu PIB aumenta! Isto comprova que a doença deve ser um bem público, não a saúde! Saúde é para quem pode! Isso de que saúde é um bem público é uma farsa criada por um conhecido cripto-comunista, o Chanceler Otto von Bismarck, conhecido por sua caolha e míope visão política. Um títere nas mãos dos bolcheviques!

Nosso país tem uma alta carga de pigmentação dermatológica. Há até gente que se orgulha disto. Mas isto contribui para o aumento da riqueza nacional? É claro que não, pois é um bem – ou um mal – natural. É claro que não há racismo nem discriminação em nosso abençoado Brasil. Por isso mesmo, a pigmentação da pele deveria ser taxada! Ela é um bem natural. Mas apenas isto não resolveria o problema da igualdade. Assim, aquele que pudesse comprovar que sua pigmentação adviesse de horas e horas de banhos solares em spas especializados ou com raios ultra-violetas, contribuindo assim para a rotação das esferas econômicas, seria isento de tal imposto! Teríamos de criar – criar não, importar – pigmentômetros dos Estados Unidos para verificar inclusive se a pigmentação da pele de um cidadão é natural ou não, até mesmo para evitar que espertinhos conseguissem falsos atestados de pigmentação artificial para assim burlarem o rigor do fisco. O avanço em justiça social desta medida logo seria sentido: quanto mais pigmentação, mais taxação!

Outra injustiça clamorosa em nosso país está no sistema tributário. Para corrigir esta situação insuportável, introduziríamos o Imposto Devolutivo Progressivo. Como funciona isto? Vou dar um exemplo bem ilustrativo. Ao ir para outro país, nossos viajantes por vezes se surpreendem quando, ao dele sair, recebem a oportunidade de terem devolvido o imposto sobre serviços ou circulação de mercadorias. Mas nem todos têm o tempo e a oportunidade de obterem tal devolução. Assim, a nossa Receita Federal se encarregaria de ressarcir os viajantes que não obtivessem sua devolução integral! Mas onde está a justiça social nisto, perguntarão os mais sedentos de correção das injustiças em nossa terra? (Ainda mais neste momento em que levas de estreantes em viagens internacionais enchem como manadas as filas, transformadas em bretes, de nossos aeroportos) Ora, em duas variáveis. A primeira seria substituir a ridícula emissão de cartões da insuportável Bolsa-Família pela emissão de Cartões-Riqueza, com base em dados rigorosos da Receita Federal. Quanto mais alto o valor do Cartão Riqueza, mais alta a devolução obtida. Outra seria a oferta de brindes: quanto mais alto o valor das compras, mais brindes o requerente receberia. Por exemplo: o ápice seria o de algum abastado que comprasse, digamos, um carro carésimo. Além da devolução do imposto pago, ele receberia outro carro idêntico de brinde, que poderia, data venia, dar a seu filho, para que este não desenvolvesse uma síndrome de carência. Nada como a verdadeira justiça social e psicológica!

Falando em carros, proponho que outra clamorosa injustiça seja corrigida. Se há um atropelamento, e o atropelador é rico e o atropelado pobre, a opinião pública tende injustamente a se voltar contra o primeiro e a favor do segundo. Isto se deve aos comunistas que assolam a nossa imprensa, que deveriam ter seus dedos cortados para impedir que digitem suas torpes ideias! No caso de um atropelamento daquele tipo acima descrito, a apresentação do Cartão Riqueza emitido pela Receita por parte da vítima, isto é, o atropelador, provocaria imediatamente um exame de corpo de delito feito pelo IML – Instituto Mecânico Legal – no veículo. Constatado algum dano neste, o pobre atropelado deveria indenizar imediatamente o rico vitimado pela imprudência do primeiro. Se este estiver ainda em faixa reservada para pedestres, que deverão ser para o uso apenas dos portadores de Cartão Riqueza, sua indenização será agravada por Presunção Indevida de Direito. Agora, se o pobre cometer a esperteza ilícita de morrer, apenas para fugir ao pagamento de sua indenização, então sua família deverá dela se encarregar, através, por exemplo, da prestação de serviços gratuitos à família do rico atropelador, quando a mãe de família poderá trabalhar como doméstica, o filho como engraxate ou carregador de pacotes do supermercado, a filha como babá, etc., na mais alta contribuição para a formação moral dos apenados, que assim apreenderão que na vida, nem tudo pode ser adquirido pelo dinheiro. Para o resto, é claro, existe o Cartão-Riqueza!

Os casos omissos, isto é, se um rico for atropelado por um pobre – mesmo que este esteja a pé, serão resolvidos pelo nosso STR – Superior Tribunal da Riqueza. No caso de um rico atropelar outro rico, os pobres que estiverem nas proximidades pagarão as indenizações a ambos, uma pena por evidente omissão de riqueza.

Outras injustiças poderão ser corrigidas, usando-se a imaginação. Por exemplo, o Passe Livre no transporte público. Os meios de transporte – todos – serão reservados aos ricos. Cada família rica terá seu ônibus individual, com direito a dois andares, ascensor para o de cima, com ascensorista de paletó, gravata, e luvas brancas, entrada de serviço para o motorista, os atendentes do frigobar e o operador do ar condicionado. Os pobres andarão a pé, mas poderão, por exemplo, correr atrás dos ônibus dos ricos, fazendo assim um saudável cooper. O transporte público será subsidiado pela municipalidade, com apoio dos governos estadual e federal, mediante a cobrança de um imposto único, dirigido, naturalmente, a quem não dispor do seu Cartão-Riqueza.

Será abolido o Salário Mínimo, bem como todas as leis trabalhistas. Esta torpe invenção tem sido injustamente atribuída à Carta del Lavoro – de saudosa memória – quando todos sabem que esta não diz uma única letra a respeito deste flagelo que prejudica o bom desempenho de nossa economia. O Salário Mínimo, como se sabe, foi inventado por uma conspiração afrojudaicopalestinomaçônicapositivistacomunopetebopetistavarguistalulossindicalista, e deverá ser substituído pela Lei do Salário Máximo Possível, que se aplicará com todo o rigor dos números e cálculos baseados na emissão dos Cartões-Riqueza: 0,00001% da soma do valor total destes será reservada ao pagamento de salários e distribuído entre os assalariados, libertando o país das pressões inflacionárias decorrentes.

Com estas medidas e outras de igual jaez, o Brasil estará dando uma lição ao mundo, e integrando-se, no seu devido lugar, no concerto entre as nações!

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A Bíblia segundo Beliel. da criação ao fim do mundo: como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do livro impresso na Travessa e na Gato Sabido.

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Confira um trecho da aula de Flávio Aguiar sobre o livro, no departamento de letras modernas da USP:

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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