sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Guantanamo

Guantanamo é a maior vergonha mundial no tratamento de seres humanos. Guantanamo continua como o pior atentado aos direitos humanos em muitas décadas. por Emir Sader Já passaram 12 anos da sua instalação, 5 da promessa do presidente Obama de que iria fechá-lo, promessa agora reiterada para este ano. Mas Guantanamo continua como o pior atentado aos direitos humanos em muitas décadas. Nada se compara no mundo, hoje, às violações dos direitos mais elementares dos seres humanos que tudo o que acontece em Guantanamo. Por isso os EUA a instalaram fora do seu território, fora de qualquer circunscrição, de qualquer tipo de controle jurídico. No limbo constituído por essa outra monstruosidade – um território imperial incrustrado em território cubano, contra a vontade soberana do povo de Cuba. Assim, nesse território de ninguém – ou, melhor do terror imperial – continuam sucedendo-se as piores formas de tratamento animalesco de seres humanos. Eles já chegam à prisão amarrados com animais, com capuzes, desfigurados de qualquer fisionomia que recordasse que sem trata de seres humanos, para que possam ser tratados como animais. Presos em jaulas como animais ferozes, amarrados todo o tempo, com capuzes, sem sequer poder ler o Corão, alimentados à força todos os desenas de presos em greve de fome – essa é a situação mais desumana que se conhece no mundo de hoje. Acusados de terrorismo sem qualquer prova, sem nenhuma obrigação de cumprimento de qualquer norma jurídica, com os seus acusadores sem ter que provar nada a ninguém, eles são vítimas da covardia internacional. Não há nenhuma grande iniciativa no mundo hoje que busque acusar e punir o que os EUA fazem em Guantanamo, como se fosse seu quintal na era da guerra fria. Cerca de 800 pessoas passaram por esse inferno, 150 ainda estão ali, 9 morreram, apenas 7 foram condenadas – 5 delas se declararam culpadas para apelar a acordos que lhes permitiram sair da prisão. 6 dos suspeitos podem ser condenados à morte. Os EUA deveriam, além de ser condenados expressamente por todos os organismos internacionais que tenham a ver com os direitos humanos, estar excluídos de participar e de se pronunciar sobre a situação dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo, enquanto siga existindo Guantanamo. Menos ainda poderiam os EUA continuar a ser sede da Comissao Interamericana dos Direitos Humanos da OEA Guantanamo é a maior vergonha mundial no tratamento de seres humanos. Os países que reivindicam políticas externas soberanas, tem que se unir e exigir o fim da prisão de Guantanamo e, além disso, a devolução desse território a quem lhe pertence, Cuba. (Carta maior)

Compra de armas

Brasil: um incrível (e enorme) erro geopolítico Escrito por Atilio A. Boron Uma das derivações mais inesperadas da crise nas relações entre Brasil x Estados Unidos, a mesma que dera origem ao duro discurso da presidente Dilma Rousseff ante a Assembleia Geral da ONU e o cancelamento da “visita de Estado” a Washington – programada para outubro passado – repercutiu diretamente sobre um tema que rondava os despachos oficiais de Brasília, desde 2005, e que há até poucos dias permanecia irresoluto: a muito controvertida renovação da frota de 36 aviões-caças que o Brasil precisa para controlar seu espaço aéreo e, principalmente, a enorme bacia amazônica e sub-amazônica. Na opinião de especialistas brasileiros, a frota de que dispõe atualmente o país é obsoleta ou, no melhor dos casos, insuficiente, e a necessidade de sua urgente renovação não poderia demorar. Mesmo assim, depois de anos de estudos, informes e provas não se chegava a um acordo entre os atores envolvidos na decisão. As propostas consideradas pela licitação convocada em 2001 pelo governo brasileiro eram três: o Boeing F/A-18 E/F Super Hornet (originalmente fabricado pela empresa norte-americana McDonnell Douglas, posteriormente adquirida pela Boeing); os Dassault Rafale da França; e o SAAB Gripen-NG sueco. Uma alternativa, descartada ab initio por razões nunca esclarecidas, mas indubitavelmente políticas, foi o Sukhoi Su-35, de fabricação russa. Assim, em um primeiro momento uma parte majoritária do alto mando da Força Aérea Brasileira (FAB) e diversos setores da burocracia política e diplomática de Brasília se inclinavam em adquirir os novos equipamentos dos Estados Unidos, enquanto outros favoreciam os Rafale franceses, e um setor francamente minoritário os Gripen-NG suecos. O dissenso conduziu à paralisia e Lula, pese sua indiscutível autoridade, teve de se resignar em terminar seu mandato sem poder resolver o impasse, ainda que fosse conhecido por todos que se inclinava pelo Rafale. A indecisão terminou há alguns dias, com uma decisão muito desafortunada – a menos ruim, mas muito longe de ser a melhor –, como se verá mais adiante: a aquisição dos Gripen-NG suecos. Brechas em uma relação muito especial A surpreendente revelação da espionagem realizada por Washington sobre o governo e a dirigência do Brasil – quer dizer, um país que sempre foi um de seus mais incondicionais aliados nas Américas – estava chamada a inclinar o fiel da balança contra os F-18. Incondicionalidade no vínculo de sucessivos governos brasileiros com os Estados Unidos, dizíamos, que era arqui-sabida, mas que veio irrefutavelmente à luz com a desclassificação, em agosto de 2009, de um memorando da CIA, no qual se dava conta do “construtivo” intercâmbio de ideias, travado em 1971, entre os presidentes Emilio Garrastazu Médici e Richard Nixon, com o propósito de explorar modalidades idôneas para desestabilizar os governos de esquerda em Cuba e Chile. O anterior é um dos muitos exemplos de “colaboração” entre Brasília e Washington. Basta recordar a participação do Brasil na segunda guerra mundial, batalhando lado a lado com o US Army, ao que podemos agregar mais um: em fevereiro de 1976, Henry Kissinger viajou ao Brasil para formalizar o que pretendia ser uma sólida e duradoura aliança entre o gigante sul-americano e os Estados Unidos. A humilhante derrota sofrida no Vietnã exigia o pronto fortalecimento das relações com a América Latina que, tal como Fidel e Che repetiram até o cansaço, é o quintal estratégico do império. Nada melhor que começar pelo Brasil, em cuja capital Kissinger foi recebido como uma celebridade mundial e firmou um histórico acordo com o ditador brasileiro Ernesto Geisel. Segundo ele mesmo, os dois maiores poderes do hemisfério ocidental (para usar uma linguagem da época) se comprometiam em manter consultas regulares, e no mais alto nível, sobre assuntos de política exterior. Subjazia este acordo o conhecido axioma de Kissinger, que diz que “para onde se inclinar o Brasil, se inclinará a América Latina”. Acordo que morreu ao nascer, porque, como recorda permanentemente Noam Chomsky, Washington não admite restrição alguma a suas decisões, tanto se brotam de um tratado bilateral como de qualquer outra fonte do direito internacional. Se a Casa Branca quer consultar, o faz, mas não se sente obrigada a isso, muito menos a se submeter aos termos de um tratado ou uma convenção. Em todo caso, o anterior revela intenção de ambas capitais em coordenar suas políticas. Neste contexto histórico, a coordenação se produziu no terreno das atividades repressivas a desenvolver-se no Cone Sul, como demonstra com sobras o sinistro Plano Condor. Em datas mais próximas, em 2007, Lula e George Bush firmaram um acordo para compartilhar tecnologia com o propósito de fomentar a produção de agrocombustíveis – bom negócio para os Estados Unidos, depredação ecológica para Brasil – reforçando novamente os tradicionais “laços de amizade e cooperação” entre Washington e Brasília. Agora, bem: a ilegal – além de ilegítima – interdição dos cabos, mensagens e telefonemas da presidente brasileira (assim como muitos governantes e funcionários de outros países da área) teve, no caso do Brasil, um agravante de muito peso, porque Washington também incorreu em erro grosseiro contra a Petrobras. Não era aventurado, portanto, prognosticar que esse cúmulo de circunstâncias, quase certamente, precipitou o desenlace da prolongada indecisão em relação ao reequipamento da FAB. Depois do ocorrido, seria uma insensatez que o Brasil decidisse renovar seu material aéreo com aviões estadunidenses. Mas quais seriam as alternativas? Como substituir aquele que, publicamente, era o avião predileto da FAB? Alternativas de reequipamento Um relatório secreto da própria FAB, de janeiro de 2010 (alguém se encarregou de vazar para a imprensa), e enviado ao Ministério da Defesa para avaliar os três principais candidatos à renovação da frota de caças, classificava os Gripen-NG claramente atrás do francês Rafale e do F-18 Super Hornet. De acordo com o relatório, as suas capacidades técnicas e militares eram inferiores aos dos seus congêneres franceses e norte-americanos. É verdade também que seu preço era inferior, estimado em 70 milhões de dólares, enquanto o preço do F-18 girava em torno de $ 100 milhões e o Rafale, muito mais caro, aumentava para 140 milhões. Uma vez que o relatório foi divulgado, em seguida, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, foi rápido para esclarecer duas coisas: primeiro, que a decisão final sobre a aquisição da aeronave seria tomada pelo governo e não pela FAB; em segundo lugar, descartou-se, em concordância com Lula, declarando que o preço da aeronave poderia tornar-se um fator determinante na decisão. A possibilidade insinuada na época por Nicolas Sarkozy de que o Brasil poderia receber tecnologia e fabricar o Rafale em suas próprias instalações industriais e, em seguida, vendê-las – embora apenas na América Latina –, foi o que inclinou Lula em favor do Rafale. Mas a sua decisão não convenceu a liderança da FAB e de outros setores do governo, favoráveis firmemente a fechar o negócio com a Boeing. É claro que, ao contrário do francês, o construtor do Super Hornet não parecia muito disposto a falar sobre a transferência de tecnologia, ao que se somou o fato de que a história recente registrou um precedente preocupante: "o regime de Washington" costumava proibir a venda de peças de reposição de aviões norte-americanos para países classificados pelo Departamento de Estado como "hostis aos Estados Unidos" ou "não cooperativos", na nebulosa e vaga guerra contra o narcotráfico e o terrorismo internacional. Ou seja, um país que teve a audácia de fazer uma política de não alinhamento com os EUA. E este era um risco que não poderia ser subestimado pelos compradores. Em outras palavras, enquanto o Super Hornet parecia mais atraente, tanto economicamente como pela sua tecnologia avançada e pela continuidade que ofereceria com parte da dotação atual da FAB, o fato é que o incidente diplomático ligado à espionagem, unido ao risco de que, em caso de um conflito entre Brasília e Washington, este fizesse com o Brasil, por exemplo, o que fez há pouco mais de dez anos com a Venezuela chavista, contribuiu para enfraquecer a frente "pró-americana". Como se pode recordar, na ocasião o presidente George W. Bush impôs um embargo à venda de partes e peças de reposição e, mais importante, ao envio dos sistemas computadorizados de navegação e combate que, como os softwares dos computadores, se renovam a cada poucos meses. E sem a versão mais recente, o “hardware”, neste caso dos aviões, deixa de prestar os serviços que se espera deles. Bastaria, no caso de uma disputa, a Casa Branca decidir embargar, ainda que temporariamente, o fornecimento de novas versões desses sistemas para que estes aviões permanecessem praticamente inutilizados e a Amazônia desprotegida. Se foi feito com Chávez, por que não repetir esse comportamento no caso de um conflito de interesses com o Brasil? Lamentável ausência de uma reflexão geopolítica A paralisia que bloqueou por tanto tempo a renovação de material aéreo da FAB seria facilmente destravada se as pessoas envolvidas na tomada de decisão tivessem formulado esta simples pergunta: “quantas bases militares na região têm cada um dos países que nos oferecem suas aeronaves para monitorar nosso território”? Se eles tivessem a resposta, teria sido: a Suécia não tem nenhuma; a França tem uma base aeroespacial na Guiana Francesa, administrada em conjunto com a OTAN e com a presença de militares norte-americanos; já os EUA, têm 77 bases militares na região (última contagem, a partir de dezembro de 2013), um punhado delas alugadas ou co-administradas com três países, como Reino Unido, França e Holanda. Algum burocrata do Itamaraty ou algum militar brasileiro treinado em West Point pode argumentar que estes estão em países distantes, que são no Caribe e cuja missão é monitorar a Venezuela bolivariana. Mas eles estão errados: a dura realidade é que, enquanto esta é perseguida por 13 bases norte-americanas em seus países vizinhos, o Brasil está literalmente cercado por 24, que passam a ser 26 se somarmos as duas bases britânicas ultramarinas disponíveis para os EUA – via OTAN – no Atlântico equatorial e Atlântico Sul, as Ilhas Falkland e Ascensão, respectivamente. E no meio da linha imaginária se encontra nada menos que o grande campo petrolífero do Pré-Sal. É óbvio que comprar armas de quem ameaça com tão formidável presença militar não parece exemplo de sabedoria e astúcia na sofisticada arte da guerra. Por outro lado, ao adotar uma decisão dessa envergadura, deveria ter sido ponderada a probabilidade de algum tipo de conflito aberto, inédito até agora na história das relações brasileiro-estadunidenses, mas não por isso impossível. Probabilidade extremamente baixa, mas não inexistente, se de Rússia ou China se trata, mas cada vez maior no caso dos Estados Unidos ou alguns de seus “proxis” – talvez “seguidores” seria o termo mais apropriado – europeus, embarcados em uma caça cada vez mais violenta e inescrupulosa de recursos naturais. Portanto, as chances de que no curso dos próximos dez ou quinze anos possa surgir um sério enfrentamento entre Brasília e Washington pela disputa de algumas das enormes riquezas abrigadas na Amazônia – água, minerais estratégicos, biodiversidade etc. – ou pela eventual recusa do Brasil em seguir os Estados Unidos em uma aventura criminosa, como a que planejam contra Síria e Irã, ou a que executaram na Líbia e Iraque, não são nada marginais. Além disso, diríamos que os Estados Unidos, assediado pela desestabilização da ordem neocolonial imposta no Oriente Médio com a ajuda de aliados tão nefastos como Israel e Arábia Saudita, e suas crescentes dificuldades na Ásia, põem em questão o fornecimento de petróleo e de matérias-primas e minerais estratégicos demandados por sua ganância insaciável de consumo. Essa combinação de fatores torna altamente provável que, mais cedo ou mais tarde, um claro confronto entre Washington e Brasília seja acionado. Se tal evento fosse um mero jogo de imaginação e de muito baixa, se não nula, probabilidade de ocorrência, não dá pra entender as razões pelas quais tantas bases dos EUA são implantadas ferreamente, cercando o Brasil por terra e mar. Se Washington o fez não foi por acidente ou acaso, mas na expectativa de alguma disputa que seus estrategistas estimaram que seria difícil ou impossível de resolver por meios diplomáticos. Se instalaram as bases é porque, sem dúvida, o Pentágono contempla a hipótese de conflitos com o Brasil. Caso contrário, as custosas implantações de tais unidades de combate seriam ridículas e completamente incompreensíveis. A chantagem estadunidense sobre os aviões europeus Dado este fato inocultável, uma parte crescente dos atores deste processo de decisão começou a inclinar-se para os Rafale franceses, até que o presidente François Hollande jogou ao mar toda a tradição gaullista ao declarar que seu governo estava disposto a endossar qualquer plano criminoso de Barack Obama para bombardear a Síria! O anúncio foi feito depois que o Parlamento britânico recusou-se a acompanhar a estranha iniciativa, com a qual fez surgir de imediato a seguinte questão: que garantias poderia ter o Brasil de que, em uma disputa com os Estados Unidos, Paris não se curvaria ante um pedido da Casa Branca de bloquear o envio de peças e softwares para os Rafales adquiridos pelo Brasil? Se, apenas alguns meses atrás, Hollande demonstrou cumplicidade incondicional com um plano criminoso, como o bombardeio indiscriminado da Síria, por que pensar que agiria de modo diferente em um conflito aberto entre Brasília e Washington? Nesse caso, a Casa Branca iria recorrer ao manual, contendo seus "procedimentos padronizados de operação" (SOP, sigla em inglês), e rapidamente denunciaria que Brasília "não colabora" na luta contra o terrorismo e o tráfico de drogas, tornando-se assim uma ameaça à "segurança nacional" dos Estados Unidos e, se escondendo atrás de um ato do Congresso, embargaria a remessa de peças e softwares para o país sul-americano, ao fazer o mesmo pedido aos seus aliados europeus. Pode-se confiar na França ou, no caso, a Suécia não se dobraria às exigências norte-americanas? De jeito nenhum! Vejamos o registro histórico: atualmente, países como a Coreia do Norte, Cuba, Irã, Síria, Sudão e, para certos produtos, a República Popular da China, são vítimas de diversos tipos de embargos, e em todos os casos Washington conta com a solidariedade de seus comparsas europeus. No caso de Cuba, o mais radical de todos, o que é mais do que um embargo para certos tipos de produtos, é um bloqueio integral, cujo custo para os cubanos equivale a dois Planos Marshall ao contrário. No que diz respeito aos aviões franceses e suecos, o governo brasileiro deveria saber qual a proporção de peças e tecnologia estadunidenses do Rafale e do Gripen-NG. Porque se tiverem mais de 10% - não de todo o avião, mas de cada uma de suas partes principais: de navegação, fuselagem, sistemas eletrônicos, informática etc. – bastaria para que, em caso de conflito com o Brasil, Washington exigisse a aplicação de um embargo, sem que os governos atuais (e previsíveis) da França ou Suécia pudessem recusar-se a obedecer, sob pena de violar a legislação concebida para assegurar nada menos do que a segurança nacional dos Estados Unidos. Tome nota do seguinte: o motor que impulsiona o Gripen-NG é um desenvolvimento de uma turbina fabricada pela empresa dos EUA General Electric. Só isso já é o suficiente para que, diante de uma controvérsia entre Washington e Brasília, a Suécia se veja obrigada a interromper o fornecimento de peças e softwares para os aviões vendidos ao Brasil, a menos que esteja disposta a enfrentar os custos de um sério conflito com os Estados Unidos. Sukhoi: a carta russa Deste modo, a única coisa que poderia garantir a independência militar do Brasil seria ter adquirido seus aviões em países que, por seu poder, por razões de sua própria inserção no sistema internacional e por sua estratégia diplomática fossem isentos do risco de se tornarem obedientes executores dos mandatos da Casa Branca. Só existem dois países que detêm essas características e contam com a capacidade tecnológica para construir aviões de caça de última geração: Rússia e China, fabricantes do Sukhoi e o Chengdu J-10, respectivamente. Consequentemente, o debate sobre quem forneceria as novas aeronaves ao Brasil – e aos países com os quais partilha a Bacia Amazônica! – chegou abruptamente a um ponto completamente inesperado: descartados os F-18 e os Rafale, a opção mais razoável seria abrir novas licitações e permitir a entrada dos aviões russo e chinês. Infelizmente, este não foi o caminho escolhido por Brasília. Alguém poderia se perguntar o que há de errado com os Gripen-NG suecos. Não só o que indica o relatório secreto vazado à imprensa e detalhado acima, mas também do ponto de vista político, não há garantia alguma de que Estocolmo – ou seja, a Suécia de hoje, não a que existia nos tempos de Olof Palme, que por algum motivo foi assassinado – vá se comportar de forma diferente, ante uma requisição de Washington de embargar a remessa de peças e softwares para os Gripen-NG à FAB. Por isso, em 18 de dezembro de 2013, o ministro da Defesa do Brasil, Celso Amorim, anunciou os resultados da licitação, com premiação da empresa sueca SAAB, fabricante dos Gripen-NG. "A escolha foi baseada em critérios de desempenho, transferência de tecnologia e custo", disse ele na conferência de imprensa convocada para esta finalidade. Infelizmente, a eleição não considerou as decisões mais importantes para a tomada de decisões em matéria de auto-determinação e critérios de defesa nacional: a geopolítica. Como poderia ignorar um relatório oficial do Parlamento Europeu, de 14 de fevereiro de 2007, que estabeleceu que, após os atentados de 11 de setembro – entre 2001 e 2005 – a CIA operou 1.245 voos ilegais no espaço aéreo europeu, transferindo “presos fantasmas” ("ghost detainees") a centros de detenção e tortura na Europa (especialmente na Romênia e Polônia) e no Oriente Médio? Entre os governos que se prestaram a tão sinistro tráfego, se encontra o país onde se fabrica os aviões encarregados de vigiar o espaço aéreo brasileiro, a Suécia. Apesar de ter sido citada no relatório, não é acusada de ter admitido “interrogatórios” em seu território, mas permitiu que esses “voos da morte” norte-americanos encontrassem apoio logístico em seus aeroportos. Sendo assim, como confiar que um país que se presta a uma manobra tão atroz de violação aos direitos humanos possa se recusar a “colaborar” com Washington, em caso deste solicitar interromper o fornecimento de peças e softwares dos Gripen-NG para a FAB? Conclusão Por isso dizíamos antes e reiteramos agora, com mais ênfase, que a única escolha verdadeiramente autônoma da presidente Dilma Rousseff seria comprar o russo Sukhoi, mesmo à custa de ter de suportar as críticas virulentas dentro e fora do Brasil. Dentro, porque a ninguém escapa o fato de existirem setores internos que propõem esquecer a América Latina e militam a favor de uma aliança incondicional com os Estados Unidos e a Europa, em que prevalece a mentalidade dominante da Guerra Fria que os Estados Unidos se esforçam em manter viva ao longo dos anos, com um pouco de maquiagem. Por exemplo, não se fala do “perigo soviético”, mas da “ameaça terrorista” da Rússia, ao dar asilo e proteção ao ex-agente da Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden. Isso confirma que não se está do lado da liberdade e da democracia, mas precisamente na linha de frente oposta. E críticas fora do Brasil, porque os Estados Unidos não só haviam pressionado pelo aborto de uma possível decisão a favor dos Sukhoi, mas que, em caso de concretização da aquisição, hostilizaria Brasília com condenações e sanções de todo tipo. A ambição desmedida do imperialismo e seus abusos sistemáticos à legalidade internacional e à soberania nacional brasileira não deixaram à presidente Dilma Rousseff nenhuma outra alternativa. Sua única saída para garantir o controle da bacia amazônica, mais por necessidade do que por convicção, eram os Sukhoi. Qualquer outra opção colocaria seriamente em risco a autodeterminação nacional. Lamentavelmente, estas considerações geopolíticas não foram levadas em conta e se tomou uma péssima decisão – menos mal, porque pior teria sido adquirir os F-18 – mas ruim, porque no final é antagônica aos interesses nacionais brasileiros e, por consequência, às aspirações de autodeterminação da América do Sul. Com esta decisão, o Brasil poderá monitorar a integridade da Amazônia somente enquanto não existir uma disputa com os Estados Unidos ou algum de seus companheiros. Mas se houver um conflito o Brasil estará completamente desarmado, refém das chantagens e da prepotência de Washington. O problema não era tão somente com os aviões da Boeing, mas também com os de qualquer outro país que previsivelmente se mostrasse solícito diante das requisições de Washington, como todos os europeus. Comprar os aviões de caça dos aliados que espionam as autoridades e as empresas brasileiras do país com vinte e seis bases militares é um gesto inacreditável de insensatez política e que revela um imperdoável amadorismo na arte da guerra, erros estes que vão custar muito caro ao Brasil e, consequentemente, a toda a América do Sul. Com a aquisição dos Gripen-NG, se desperdiçou uma grande oportunidade de avançar na autodeterminação militar, pré-requisito da independência econômica e política. O Brasil não só tomou uma péssima decisão que prejudica a sua soberania, como também perdeu a UNASUL, porque com ela difilculta a clara percepção de quem é o verdadeiro inimigo que nos ameaça com sua infernal maquinaria militar. Portanto, é um momento muito triste para a nossa América. Como se costuma dizer no jargão de jogos de guerra, "game over", e, infelizmente, ganharam os vilões! Esperemos que os movimentos sociais e as forças políticas patrióticas antiimperialistas no Brasil tenham a capacidade de reverter uma decisão tão infeliz. Atilio Borón é sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires. Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.

Leningrado

70 anos do fim do cerco de Leningrado: 872 dias de assédio e 1,2 milhões de mortos Rusia conmemora este lunes el 70º aniversario del fin del bloqueo de Leningrado. El asedio duró casi 2,5 años y se llevó la vida de más de 1,2 millones de personas, entre víctimas de bombardeos, desnutrición y congelación. El objetivo de las tropas fascistas era borrar a Leningrado (actualmente, San Petersburgo) de la faz de la tierra: acabar con la cuna de la revolución y el símbolo de la cultura rusa sería una solución perfecta para socavar la resistencia soviética. Había otros factores también: era un puerto marítimo estratégico y alojaba la única fábrica productora de tanques pesados, coches y trenes blindados del mundo. Los comandantes nazis analizaron la posible escalada de la resistencia y decidieron matar a la ciudad de hambre. Durante uno de los asedios más largos de la historia de la humanidad, 872 días, la urbe tenía solo una vía de comunicación -y bastante inestable- con el resto del territorio soviético: a través del lago congelado Ládoga, llamado el ‘Camino de la Vida’. Pero los cargamentos que lograron transportar por esa vía fueron totalmente insuficientes para abastecer una ciudad con una población de millones de personas. Durante el bloqueo, los ancianos y los niños, como elementos más vulnerables, tenían derecho a 125 gramos de pan al día. En la ciudad prácticamente no había electricidad, ni calefacción y dejó de circular el transporte. Se hicieron frecuentes los casos de canibalismo. Ser niño no te protegía de los horrores de la guerra, cuenta una de las sobrevivientes del bloqueo, Tatiana Moiséyenko. El asedio empezó cuando solo tenía 7 años de edad. “Cuando hay miedo, uno se hace mayor más rápido, nos convertimos en pequeños ancianos. Los niños nos enfrentamos a los mismos problemas que los adultos”, asegura. Rusia conmemora este lunes el 70º aniversario del fin del bloqueo de Leningrado. El asedio duró casi 2,5 años y se llevó la vida de más de 1,2 millones de personas, entre víctimas de bombardeos, desnutrición y congelación. El objetivo de las tropas fascistas era borrar a Leningrado (actualmente, San Petersburgo) de la faz de la tierra: acabar con la cuna de la revolución y el símbolo de la cultura rusa sería una solución perfecta para socavar la resistencia soviética. Había otros factores también: era un puerto marítimo estratégico y alojaba la única fábrica productora de tanques pesados, coches y trenes blindados del mundo. Los comandantes nazis analizaron la posible escalada de la resistencia y decidieron matar a la ciudad de hambre. Durante uno de los asedios más largos de la historia de la humanidad, 872 días, la urbe tenía solo una vía de comunicación -y bastante inestable- con el resto del territorio soviético: a través del lago congelado Ládoga, llamado el ‘Camino de la Vida’. Pero los cargamentos que lograron transportar por esa vía fueron totalmente insuficientes para abastecer una ciudad con una población de millones de personas. Durante el bloqueo, los ancianos y los niños, como elementos más vulnerables, tenían derecho a 125 gramos de pan al día. En la ciudad prácticamente no había electricidad, ni calefacción y dejó de circular el transporte. Se hicieron frecuentes los casos de canibalismo. Ser niño no te protegía de los horrores de la guerra, cuenta una de las sobrevivientes del bloqueo, Tatiana Moiséyenko. El asedio empezó cuando solo tenía 7 años de edad. “Cuando hay miedo, uno se hace mayor más rápido, nos convertimos en pequeños ancianos. Los niños nos enfrentamos a los mismos problemas que los adultos”, asegura. (Desacato) “Te daban por libretas unos alimentos, al principio eran bastantes, pero empezaron a bajar y bajar y bajar, hasta caer y llegar a 125 gramos de pan negro. Bueno, se le llamaba pan, pero no era de harina, era una sustancia pastosa, de color negro. Bueno, no parecía pan”, cuenta otra sobreviviente del asedio, Nadezhda. Cuando comenzó el sitio tenía 12 años. Desde hace décadas vive en La Habana. “Cuando empezó el invierno, empezó la tragedia… Nosotros vivíamos en la isla Yelaguin y por esa zona pasaba el camino al cementerio, el Cementerio de Serafím. La gente llevaba en los trineos infantiles a sus seres queridos envueltos en frazadas, pero al entrar en el parque Yelagin no les quedaban fuerzas para avanzar y dejaban ahí a los muertos”, recuerda Nadezhda. En el asedio de Leningrado murieron más personas de las que perdieron EE.UU. y el Reino Unido juntos a lo largo de toda la Segunda Guerra Mundial. Solo en el cementerio de Serafím fueron enterradas más de 100.000 personas. El Ejército Rojo logró recuperar el control sobre la ciudad rusa de Leningrado asediada por las tropas de la Alemania nazi y sus aliados el 27 de enero de 1944. Con el fin de conmemorar la valentía de los lugareños, la fecha recibió el nombre de Día de la Gloria Bélica de Rusia. Este lunes por el 70 aniversario del fin del asedio, en San Petersburgo ha tenido lugar un desfile militar y se ha abierto un museo al aire libre que expone detalles de la vida cotidiana bajo el cerco. Fuente: http://actualidad.rt.com/actualidad/view/118194-rusia-asedio-nazi-leningrado

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Sharon

Ariel Sharon: trajetória de um liberal genocida e o legado de ódio Escrito por Ramez Philippe Maalouf Em 11 de janeiro de 2014, faleceu, aos 85 anos de idade, o general e ex-primeiro-ministro israelense Ariel Scheinerman, mais conhecido como Ariel Sharon ou simplesmente “Arik” para os amigos. Amado por alguns e odiado por muitos, inclusive pelos próprios israelenses civis e militares, a vida e especialmente sua conduta militar e política confundem-se com a do próprio Estado de Israel, sempre marcada pelo uso sistemático da extrema violência para a “solução de problemas” políticos. Em Israel, por causa da sua notória arrogância, conduta espalhafatosa, ambição desmesurada nas carreiras militar e política e sua corpulenta figura, ele foi apelidado de bulldozer, um termo visto quase como um elogio. Eterno destruidor das possibilidades de paz Mas há um cruel duplo sentido neste apelido: os bulldozeres são usados para destruir residências dos palestinos (com os moradores dentro, inclusive) nos territórios árabes ocupados militarmente pelos israelenses. O extermínio do povo palestino e dos demais árabes foi a verdadeira profissão de Sharon. Entretanto, segundo a mídia ocidental (da qual a brasileira se filia colonialmente), o velho general foi no máximo uma pessoa “controversa”. De acordo com o governo dos EUA, ele foi uma “pessoa complexa para tempos complexos”. Para a maioria dos árabes, especialmente os não-liberais, os libaneses e os palestinos, será sempre lembrado como “carniceiro”, cuja “obra-prima” foi o Massacre de Sabra e Chatila, como uma das consequências da invasão israelense do Líbano em 1982. Pelo menos 3 mil árabes (palestinos e libaneses) foram assassinados no Massacre. Na realidade, Sharon foi, desde a invasão do Líbano de 1982, uma espécie de catalisador do ódio da chamada “esquerda” israelense, que parece preferir o estilo low-profile de líderes “esquerdistas” como Ben-Gurion, Golda Meir, Yitzhak Rabin ou mesmo de Ehud Barak ao estilo espalhafatoso de Menachem Begin e do general Scheinerman. Isto ficou evidente quando, durante os depoimentos à Comissão Kahan, estabelecida em 1983 para investigar a participação israelense no Massacre de Sabra e Chatila, Sharon cinicamente questionou por que o general Yitzhak Rabin (um “esquerdista”, segundo o jargão israelense) não sofreu a mesma investigação, uma vez que este estava diretamente envolvido no Massacre de Tal al-Za’atar, ocorrido em 1976, também durante a Guerra do Líbano (1975-90), no qual mais de 2 mil palestinos foram exterminados por milícias libanesas direitistas cristãs ultra-liberais, apoiadas simultaneamente, na época, pela Síria e Israel, que era governada por Rabin. O questionamento de Sharon apenas revelava o que pesquisadores acadêmicos sobre o Oriente Médio têm afirmado, inclusive dentro de Israel: o extermínio e a expulsão dos palestinos não são programas de governo de um determinado partido ou coalizão política (“esquerdista” ou “direitista”), mas, sim, uma política de Estado levada a cabo por todas as correntes políticas existentes no suposto “Estado judeu”. Deste modo, “esquerda” (os nacionalista-socialistas do Partido Trabalhista, por exemplo), o “centro” (como o liberal Partido Kadima) e a “direita” (como o nacionalista-liberal Likud) são sócios do mesmo projeto de construção de um Estado “100% judeu” entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão, a qualquer preço. Baluarte do apartheid palestino Ainda podemos afirmar que, a partir da grave denúncia de Sharon, não há verdadeiramente um partido de esquerda antissionista em Israel. Existem, no máximo, críticos do sionismo, ou seja, críticos dos “excessos” (o que quer que isto signifique) da implantação do projeto sionista. Não se questiona a reivindicação de um Estado ou de um governo fundamentado no exclusivismo comunitário numa região marcada pelo pluralismo étnico e confessional e pelo entrelaçamento multimilenar destas comunidades religiosas e étnicas. Devemos ressaltar que a fundação de Israel, como um “Estado judeu”, só foi possível mediante a limpeza étnica e o extermínio de milhares de palestinos em 1948, como resultado culminante da balcanização da Palestina. Assim sendo, mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras e as tropas enviadas pelos governos árabes conservadores (atrelados ainda às potências coloniais europeias) para estancar a limpeza étnica nada mais fizeram do que apenas acertar os novos limites de seus países com o novo “Estado judeu”. Ariel Sharon foi, portanto, uma das encarnações deste projeto racista e segregacionista (sendo, por isto, muito bem aceito pelos liberais em todo mundo): o sionismo. Como militar ou como político direitista ultra-liberal, atuou em comum acordo com as geoestratégias do líder trabalhista Ben-Gurion, que preconizava a aliança com os libaneses cristãos maronitas ultra-liberais e a invasão do Líbano. Em 1953, o então tenente-coronel Sharon comandou a tristemente célebre Unidade 101 e executou uma operação militar contra uma aldeia palestina, Qibya, na Cisjordânia, ainda em poder dos jordanianos, que assassinou 77 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças. Escândalo internacional, o Massacre de Qibya foi levado à ONU, enquanto as lideranças israelenses se preparavam secretamente para a almejada guerra contra o Egito, liderado pelo nacionalista árabe coronel Gamal Abdel Nasser. Durante estes preparativos, o ambicioso e indisciplinado Sharon e sua Unidade 101 promoveram outro massacre contra soldados egípcios estacionados na Faixa de Gaza, em 1955, no qual assassinaram 37 pessoas, ferindo outras 31. O ataque ao QG egípcio em Gaza forçou o pró-americano Nasser a comprar armas da URSS (a extinta União Soviética), que estreitou relações com a potência socialista. Estes massacres contra árabes também tinham propósitos políticos internos, revelando a ambição desmesurada do então jovem oficial do exército. No final do mesmo ano, comandando uma brigada de pára-quedistas, atacou forças sírias ao norte do Mar da Galileia, assassinando cerca de 60 soldados sírios. A ofensiva tinha o objetivo de beneficiar a política “ativista” do então ministro da defesa (sic) Ben-Gurion para desmoralizar a “moderação” do premier de Moshe Sharret, favorável a uma acomodação com os países árabes. A mesma tática sangrenta (assassinar árabes para derrubar rivais políticos internos e galgar o poder) seria usada na invasão do Líbano de 1982. Com estes massacres, o ultra-direitista Sharon tornou-se uma espécie de pupilo do suposto esquerdista Ben-Gurion. Já no curso do ataque tripartite anglo-franco-israelense ao Egito, em 1956, Sharon e suas tropas, ao desobedecerem ordens superiores, caíram numa emboscada egípcia no Passo de Mitla no Sinai, causando a morte de dezenas de soldados israelenses. Uma outra característica de sua carreira militar foi a habilidade em manipular a mídia sobre seus feitos militares, posta em prática nas guerras de 1967 e 1973, onde teve um papel de destaque, liderando campanhas vitoriosas. Porém, em 1973, na Guerra do Yom Kippur, mais uma vez desobedeceu ordens e atravessou o Canal de Suez para cercar tropas egípcias. A manobra de duvidosa eficácia foi vitoriosa unicamente porque Sadat não pretendia vencer os israelenses, mas, sim, forçá-los a aceitarem uma negociação de paz. A indisciplina do general causou fúria entre os seus superiores, mas a sua enorme popularidade entre os civis já era notória. Das guerras à carreira política Foi somente, contudo, com a administração de Menachem Begin (1977-83), do partido Likud, nacionalistas direitistas ultra-liberais, que Sharon transmutou-se de uma vez por todas de militar para político. O Likud era um partido que advogava o expansionismo máximo de Israel, o “Grande Israel”, “do Nilo ao Eufrates”, se possível. A coalizão ultra-liberal e nacionalista chegara ao poder em decorrência do esgotamento da política dos trabalhistas, marcada pela derrota (vista como tal para maioria dos israelenses) na Guerra do Yom Kippur, em 1973, pelos escândalos de corrupção do governo de Yitzhak Rabin e pelo avanço do liberalismo até mesmo nos kibutzins (fazendas de trabalho coletivo). Com os likudistas no poder, liderados por Menachem Begin, a geoestratégia trabalhista forjada por Ben-Gurion de promover a invasão do Líbano voltava à tona. Esta geoestratégia compreendia uma aliança e apoio aos libaneses cristãos maronitas ultra-liberais, que eram refratários à entrega do poder aos libaneses “muçulmanos”, uma das causas da guerra que incendiava o Líbano desde 1975. O plano de ataque ao Líbano, contra qual Israel promovia raids aéreos desde 1968, só seria possível se fosse assegurada a “paz” com o maior exército árabe, o Egito. Em março de 1978, uma vez iniciadas as negociações que levariam à Paz de Camp David (EUA) com os egípcios, Begin ordenou a primeira grande invasão terrestre do Líbano (outra menor havia ocorrido em 1972 e foi rechaçada pelo exército libanês), que exterminou mais de 2 mil árabes (libaneses e palestinos) sem conseguir eliminar as forças da OLP (Organização para a Libertação da Palestina). O fracasso foi tão retumbante que ajudou a aproximar dois inimigos: a liberal OLP com o regime nacionalista da Síria de Hafez al-Assad. Para agravar a situação do “maximalista” Begin, uma das cláusulas do Acordo de Paz de Camp David (1978) e do Tratado de Paz de Washington (1979), com os egípcios, estipulava não apenas a devolução da Península do Sinai ao Egito, mas também o imediato desmantelamento das “colônias” israelenses naquela região. No inverno de 1982, Ariel Sharon, um dos mais fervorosos defensores do “colonialismo” e do expansionismo israelense, foi o encarregado desta tarefa. Pelo visto, ele ficou muito contrariado e determinado a derrubar ou, pelo menos, desmoralizar Menachem Begin (tal como fizera nos anos 1950 com Moshe Sharret) quando houvesse oportunidade, segundo o historiador israelense Baruch Kimmerling, autor de uma biografia nada complacente do general. Podemos afirmar que a invasão israelense do Líbano de 1982 foi o resultado do planejamento e ação de dois homens de origens distintas, mas unidos ideologicamente pelo ódio aos palestinos e pela defesa do Liberalismo (e, portanto, do racismo, do segregacionismo, do autoritarismo, do elitismo, da livre iniciativa e do Estado mínimo): Ariel Sharon e Bachir Gemayel, líder da milícia libanesa cristã direitista e ultra-liberal Falanges (originalmente fundada em 1936, sob inspiração do nazismo). Martírio libanês Bachir queria ser presidente do Líbano e expulsar as forças “estrangeiras” e “terroristas” do país (leia-se sírios e palestinos). Segundo o ex-chefe de segurança de Bachir, o sinistro Elie Hobeika, foi Bachir quem pediu pessoalmente a Ariel Sharon para que as tropas israelenses não invadissem apenas 40 km fronteira adentro do Líbano; era necessário que também atacassem e ocupassem Beirute, a capital do país, pois seria a única maneira de fazê-lo presidente da República. Ainda de acordo com Hobeika e o jornalista israelense Ehud Ya’ari, Bachir Gemayel não escondia de ninguém, muitas vezes em tom de zombaria, os planos de “transformar” os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, na zona sul de Beirute, num estacionamento ou num zoológico. Sharon, por sua vez, tinha planos muito mais ambiciosos. Por meio da ofensiva ao Líbano pretendia, ao mesmo tempo: expulsar os palestinos do País dos Cedros em direção à Jordânia para lá instalarem o Estado palestino, derrubando a monarquia hachemita, tradicional aliada de Israel; expulsar os sírios do Líbano para, assim, expulsar a URSS (tradicional aliada de Damasco) do Oriente Médio; desmantelar a resistência palestina à ocupação militar israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza; implodir o País dos Cedros em pequenos Estados fundamentados no exclusivismo étnico e confessional, à imagem e semelhança de Israel, mas sem poderio militar. A implosão do Líbano serviria de modelo para todo o Oriente Médio, é o que podemos depreender das ações no campo, uma vez que estes objetivos jamais foram declarados explicitamente por nenhum membro de governo israelense. Em 6 de junho de 1982, mais de 100 mil soldados israelenses, comandados pessoalmente pelo ministro da defesa (sic) general Ariel Sharon, invadiam o Líbano para de lá sair somente em maio de 2000, mesmo assim mantendo as Fazendas de Sheba’a sob ocupação até os dias de hoje. O objetivo oficial era expulsar a OLP para longe dos 40 km da fronteira líbano-israelense. Em 13 de junho do mesmo ano, a blitzkrieg alcançava Beirute. Ao longo de 70 dias, a capital libanesa foi cercada e ocupada pelas tropas israelenses lideradas por Sharon, com direito a corte de luz e água. Begin (o seu gabinete e o parlamento israelense) desconhecia os planos para o ataque a Beirute, o que lhe causaria um enorme desgaste político e queda inevitável de seu gabinete no ano seguinte. Enquanto a seleção brasileira de futebol fazia uma brilhante apresentação na Copa do Mundo da Espanha, a capital libanesa era martelada por bombardeios de saturação por mar, ar e terra, com bombas de diversos tipos: napalm, fragmentação, vácuo, fósforo branco, urânio empobrecido, disparadas sobre os civis indiscriminadamente. Somente no dia 10 de agosto de 1982, foram 19 horas de ataques ininterruptos sobre a capital libanesa para forçar a retirada dos palestinos do país. Nem mesmo a única sinagoga da cidade foi poupada dos bombardeios israelenses, sendo parcialmente destruída. Durante o cerco, Sharon tentou persuadir Yasser Arafat, líder da OLP, a levar a organização de volta para a Jordânia (de onde foi expulsa em 1970 pelo rei Hussein) e disse que, se a proposta fosse aceita, Israel “forçaria” o rei da Jordânia a abrir caminho para o grupo palestino. Somente com a presença de uma força de paz da ONU, liderada pelos EUA, foi possível a evacuação total das forças da OLP e das tropas sírias de Beirute, em 21 de agosto. Após a expulsão da OLP, Bachir Gemayel foi “eleito” presidente do parlamento libanês, cercado pelas tropas invasoras. Mas, em seu discurso de presidente “eleito”, revelava algo fora do script combinado com os invasores: ele se proclamava presidente de todos os libaneses e não apenas dos cristãos. Foi “convidado” a dar explicações, como um garoto de recado, a Begin e Sharon, em Nahariya, norte de Israel, em 1 de setembro de 1982. O encontro, que era para ser secreto para não revelar o profundo envolvimento de Bachir Gemayel com a invasão do Líbano e o arrasamento de Beirute, foi divulgado amplamente pelas rádios israelenses, não tardando a chegar a Beirute. Duas semanas após o encontro, Bachir morreu num atentado ao QG das Forças Libanesas (milícia “cristã” que congregava todas as milícias direitistas ultra-liberais, inclusive as Falanges), em 14 de setembro de 1982, promovido por um cristão membro da resistência à invasão, Habib Chatourni, em 21 de agosto. Não há dúvidas de que Israel, ao divulgar o encontro de Nahariya, tinha o objetivo de fazer que os opositores de Bachir (que não eram poucos mesmo entre a direita cristã) soubessem da cumplicidade do líder libanês com os invasores e o liquidassem sem a necessidade de os israelenses “sujarem as mãos”. Mais tragédia para os palestinos A sorte dos palestinos estava lançada. Sharon e os líderes das Forças Libanesas não perderam tempo em acusar os “terroristas” (ou seja, os palestinos) pelo assassinato do presidente “eleito”. Sem autorização do parlamento e do primeiro-ministro Begin, e sem esperar por uma investigação sobre o atentado, no dia seguinte à morte de Bachir, Sharon ordenou o ataque a Beirute Ocidental. O objetivo declarado era caçar os “terroristas” que supostamente assassinaram o presidente eleito. Logo chegando aos campos de refugiados de Sabra e Chatila, ordenou os membros das Forças Libanesas e do Exército do Sul da Síria para que entrassem nos campos e os “limpassem” da presença de “terroristas” supostamente escondidos ali. Em 72 horas de orgia de sangue sem precedentes até mesmo para os padrões do conflito até aquele momento, mais de 3 mil pessoas (homens, mulheres, idosos e crianças) e até cavalos foram assassinados pelo único fato de serem palestinos (ou supostamente, pois havia entre as vítimas libaneses xiitas e mulheres judias casadas com palestinos na época do mandato britânico). Homens, idosos e crianças foram esquartejados e/ou estripados antes de serem assassinados. As mulheres, grávidas ou não, idosas ou não, foram, em sua maioria, estripadas, esquartejadas e, sobretudo, estupradas antes de serem assassinadas, com fetos arrancados, se fosse o caso. O principal chefe dos comandos que invadiram Sabra e Chatila foi Elie Hobeika, então chefe de segurança de Bachir Gemayel. O objetivo não declarado do Massacre era provocar “choque e pavor” nos palestinos de maneira a forçá-los a fugir em direção à Jordânia, de onde deveriam derrubar a monarquia hachemita, aliada de Israel (tal como ocorrera com o Massacre de Deir Yassin, em abril de 1948, no curso da fundação do “Estado judeu”), afinal foi esta a exigência de Sharon enviada a Arafat nas negociações para a retirada da OLP. Houve clamor mundial pelo massacre nos campos de refugiados em Beirute (considerada pela ONU como genocídio), que derrubou o prestígio de Begin em Israel, obrigando-o a instalar a Comissão Kahan. Sharon foi demitido do ministério da defesa por recomendação da Comissão, que o responsabilizou pela autoria indireta da atrocidade. O veterano general, no entanto, permaneceria no poder como ministro sem pasta. Ele era tão popular, segundo o semanário brasileiro Veja, especialmente entre os judeus de mizrahins (de origem árabe) e sefraditas (de origem “oriental”), que não seria surpresa se ele fosse eleito primeiro-ministro de Israel, como previu a revista poucas semanas após a carnificina. Como resultado da visão distorcida da realidade do Líbano e do mundo árabe de Ariel Sharon, compartilhada pelos demais líderes políticos e chefes militares israelenses, a invasão do Líbano de 1982 revelar-se-ia em pouco tempo uma retumbante derrota para Israel, apesar dos mais de 20 mil árabes calcinados pelos bombardeios de saturação aos libaneses, palestinos e sírios, ao longo de 70 dias, excluindo as vítimas do Massacre de Sabra e Chatila. No entanto, todas as vitórias israelenses foram anuladas, uma a uma, pelo “reingresso” da Síria (apoiada pela URSS) no Líbano, a partir de 1983, para impor sua hegemonia na estabilização da crise libanesa. Os sírios conseguiram impedir que o País dos Cedros se tornasse um satélite de Israel ao fazerem Amin Gemayel, irmão e sucessor de Bachir na presidência do Líbano e na liderança da milícia Falanges, se reaproximar do presidente sírio Hafez al-Assad e anular de facto o Acordo de Paz israelo-libanês assinado em maio de 1983; ao expulsarem a OLP do Líbano, após os palestinos reconhecerem Israel nas duas Cúpulas Árabes de Fez (Marrocos, 1982 e 1983), ainda em 1983; e ao também expulsarem do Líbano, de forma humilhante, as tropas dos EUA e da França, que sob os capacetes azuis da ONU agiam como gendarmes de facto do presidente Gemayel, no início de 1984. Toda impunidade aos genocidas Como punição à tentativa da OLP em reconhecer Israel, que isolaria a Síria, Hafez al-Assad, no dia seguinte ao fim do conflito libanês, em 13 de outubro de 1990, impôs nada mais e nada menos do que o chefe dos comandos do Massacre de Sabra e Chatila, Elie Hobeika, como ministro dos Recursos Hídricos e da Eletricidade ao novo governo libanês, permanecendo no cargo até a quarta invasão israelense do Líbano, em 1996. A impunidade de Hobeika e dos demais autores do Massacre de Sabra e Chatila, além dos demais chefes milicianos que promoveram outras carnificinas na longa Guerra do Líbano, garantiria a impunidade de Ariel Sharon e a sobrevida de sua carreira política e criminosa em Israel. Duro opositor dos Acordos de Oslo de 1993, com base na lógica “terra por paz”, não perdia a oportunidade de combater a paz entre palestinos e israelenses. Mesmo que esta “paz” apenas legitimasse a subjugação dos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e as ocupações militares do sul do Líbano e das Colinas de Golã (território sírio). Portanto, a oposição de Sharon ao processo de Oslo foi apenas para desmoralizar, frente aos “maximalistas” ultra-direitistas israelenses, o então primeiro-ministro e líder trabalhista general Yitzhak Rabin, cuja conduta low-profile escamoteava a brutalidade de seu governo na repressão à Intifada (levante popular palestino anti-ocupação entre 1987 e 1993), na qual ordenou a quebra dos ossos dos manifestantes (homens, mulheres e crianças) e o uso de armas de fogo para assassinar quem arremessasse paus e pedras contra as forças repressivas. Rabin seria assassinado por um “colono” extremista israelense, em 1995, contrário à suposta devolução de terras aos palestinos em troca da suposta paz. Pelo desaparecimento da Palestina Visando um pretexto para esmagar definitivamente os palestinos, que se recusaram a aceitar as imposições dos EUA e de Israel nas supostas negociações de paz em Camp David, entre o então primeiro-ministro trabalhista general Ehud Barak e o líder da OLP Yasser Arafat no verão de 2000, Ariel Sharon, em comum acordo com o premier trabalhista, entrou na Esplanada das Mesquitas (em Jerusalém, sendo o terceiro lugar mais sagrado para os muçulmanos) acompanhado por seguranças fortemente armados, num verdadeiro ato de provocação aos palestinos muçulmanos. O plano macabro deu certo, os palestinos se rebelaram mais uma vez e Sharon, sempre brutal e muito popular, foi eleito primeiro-ministro em uma inédita eleição direta, em 2001, prometendo acabar com a chamada Segunda Intifada, desta vez, muito mais brutal e sangrenta em ambos os lados do que primeira. Se na Primeira Intifada a proporção entre palestinos e israelenses assassinados era de 10 para 1, com a Segunda Intifada (2000 – 2006), a proporção cairia para 3 por 1. Sharon, no entanto, já havia evoluído em sua geoestratégia “maximalista” e de eliminação do “problema palestino”. A partir de 2002, em total desprezo à proposta de paz saudita na Cúpula Árabe de Beirute (ou talvez em decorrência dela), após promover o Massacre de Jenin, na Cisjordânia, com o assassinato de dezenas de palestinos, ordenara a construção de um muro para separar os territórios palestinos de Israel, num aparente plano de desengajamento dos territórios palestinos ocupados. Mais uma vez o “desengajamento” não era mais do que uma falácia, apesar da retórica da mídia ocidental em defesa do muro em nome da “segurança” de Israel. Especialistas, tais como o geógrafo brasileiro Gilberto Rodrigues Jr., afirmam que o traçado do muro anexava mais territórios palestinos, sobretudo os mais ricos em recursos hídricos, separando famílias palestinas, impedindo-as de ir e vir. Em busca da “solução final” Na espiral de violência que impunha aos palestinos, na qual recebera luz verde dos EUA, sedentos de sangue após os atentados de 11 de setembro de 2001, Sharon realizava sua “guerra ao terror” criando a sinistra campanha de “assassinatos seletivos”. O primeiro alvo foi o líder espiritual do Hamas (a resistência islâmica palestina) xeque Ahmed Yassin, que era paralítico, bombardeado por um helicóptero, em março de 2004, logo seguido pelo assassinato do sucessor de Yassin, Abdel Aziz Rantissi, em abril do mesmo ano. Ao mesmo tempo, as tropas de Sharon confinaram Yasser Arafat em sua residência oficial em Ramallah, na Cisjordânia. Arafat só sairia da residência com saúde seriamente debilitada sob circunstâncias misteriosas, morrendo num hospital em Paris, em 11 de novembro de 2004, sob causas jamais esclarecidas. Acusações de assassinato do líder palestino não tardaram a aparecer nos diversos meios de comunicação, inclusive ocidentais, como no Le Monde Diplomatique. Sharon finalmente havia cumprido a missão de assassinar Arafat, como pretendia fazer no cerco a Beirute em 1982? De certa forma, o espectro da invasão de 1982 ainda assombrava o líder liberal israelense. Elie Hobeika ameaçava revelar a profundidade da participação israelense e de Ariel Sharon, sobretudo, no Massacre de Sabra e Chatila no Tribunal Penal de Bruxelas, mas foi assassinado pela detonação de uma bomba em seu carro, em 2002. No mesmo ano, seu motorista particular foi assassinado em São Paulo, no Brasil. Ambos os crimes são de autoria oficialmente desconhecida e deram o início a uma campanha de assassinatos de políticos no Líbano, que perdura até os dias de hoje. Não faltou quem apontasse Israel como autor destes homicídios. Quanto mais atrocidades Sharon cometesse contra os palestinos, sem qualquer reação internacional, mais aumentava a popularidade do veterano general em Israel. Foi reeleito facilmente para o cargo de premier, em 2003, e não perdeu tempo em atacar a Síria, pela primeira vez em 30 anos. A política genocida de Sharon era um complemento à invasão da coalizão anglo-australo-americana do Iraque, apoiada pelo Irã e Israel, que exterminara, até aquele momento, centenas de milhares de iraquianos. A contribuição israelense para a destruição do Iraque pela coalizão colonial anglo-saxã foi o envio de “assessores” militares aos “esquadrões da morte” curdos, no norte do país mesopotâmico. Em último ato de uma trajetória marcada por crimes contra a Humanidade, o veterano general ordenou a retirada dos 8 mil “colonos” israelenses que ocupavam a Faixa de Gaza, no verão de 2005. A “retirada” israelense obedecia a um cruel cálculo político: não era viável a manutenção de 8 mil sionistas fanáticos num pequeno território habitado por 1,3 milhão de palestinos hostis. O mesmo cálculo justificava a manutenção e ampliação dos “assentamentos” de mais de 500 mil judeus extremistas numa Cisjordânia habitada por 2,5 milhões de palestinos. Após o “desengajamento” da Faixa de Gaza, Sharon impôs um bloqueio por mar, ar e terra, em comum acordo com o então ditador egípcio, brigadeiro Hosni Mubarak. Portanto, a geoestratégia de Sharon era clara: o genocídio como “solução final” para os palestinos da Faixa de Gaza, enquanto que a limpeza étnica era a única solução possível para a Cisjordânia, denunciou o historiador israelense Ilan Pappé, exilado na Inglaterra. O bloqueio à Faixa de Gaza não foi uma retaliação pela vitória do Hamas nas eleições parlamentares de 2006, sob estritas leis eleitorais impostas pelos próprios israelenses, mas, sim, um resultado da lógica da racionalização do genocídio. Sem os “colonos”, Gaza era um campo aberto para ataques irrestritos dos israelenses. Somente em 22 dias de bombardeio ao pequeno território, na virada de 2008 para 2009, mais de 1.500 palestinos foram exterminados. Dois terços dos mortos eram civis. Lento e melancólico final Com o bloqueio, o pequeno território se convertera no maior campo de concentração já conhecido até os dias de hoje. Apesar deste cruel objetivo político, a “retirada” de Gaza foi vista pelos “colonos”, tão beneficiados por Sharon em toda sua carreira política, como ato de “traição”, e de herói dos fanáticos “maximalistas” o veterano general passou a ser execrado por estes. A mídia ocidental liberal logo o transformou num “estadista”, capaz de fazer grandes sacrifícios em favor da paz com os palestinos. Com os filhos acusados de corrupção, Sharon foi internado num hospital sob circunstâncias pouco esclarecidas e logo foi induzido ao coma por recomendação médica em janeiro de 2006. Pouco mais de 8 anos depois morreria. Seu funeral só teve o parco comparecimento de políticos internacionais decadentes. Nem mesmo o presidente dos EUA esteve presente, uma prova de que o general genocida nada mais era do que um capacho do império. O legado de Sharon não difere dos demais líderes israelenses: limpeza étnica e genocídio em larga escala contra os árabes, especialmente, os palestinos. Pois estes são os únicos meios pelos quais um Estado fundamentado no exclusivismo comunitário religioso pode sobreviver numa região marcada pelo pluralismo e pela coexistência étnico-confessional multimilenares. Portanto, não podemos estranhar que os mais importantes grupos armados do mundo árabe, encarnação dos piores pesadelos dos cidadãos israelenses nos dias de hoje, fossem resultantes (“dano colateral”) das políticas de Sharon para o Líbano e a Palestina ocupada: o Hizbollah, fundado em 1985, como resposta à invasão israelense do Líbano, e o Hamas, fundado em 1988, como uma resistência à política expansionista dos “assentamentos” nos territórios palestinos, iniciada por ele como ministro da Agricultura no governo Begin. O Hizbollah, liderando a resistência árabe (palestina e libanesa), após expulsar a ocupação militar israelense do sul do Líbano, em maio de 2000, repeliu a quinta invasão israelense do Líbano, em 2006, na qual mais de 1200 árabes foram exterminados. Trata-se, portanto, do legado de ódio de um liberal dedicado ao extermínio de um povo. Ramez Philippe Maalouf é Historiador (Uerj) e doutorando em Geografia Humana (USP) (Correio da Cidadania)

Idosos

Contra a indústria da medicina para idosos A vida saudável no Brasil é cara. Há sempre um remédio a ser vendido ao idoso, que acaba hipermedicado. Prometem curar até com a infelicidade. Léa Maria Aarão Reis* Roberto Brilhante “Dizer ‘coma de forma saudável’ em um país subdesenvolvido soa como uma piada. Significa comer frutas quatro vezes por dia, folhas, alimentos orgânicos, sem agrotóxicos. É um discurso que se deve fazer, sim, para alertar as pessoas, mas a prática é difícil. De qualquer modo, o Brasil está comendo melhor, as pessoas fazem mais exercícios e isso é parte da prevenção secundária de doenças.” A observação é do médico Ernani Saltz, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Federal Cardoso Fontes do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro. Ele atende a um grande número de mulheres e homens idosos por força da sua especialização, que trata do câncer, hoje considerado uma moléstia “crônico-degenerativa” por conta da longevidade esticada, como ele lembra. Saltz coordenou a Campanha Nacional de Combate ao Câncer incluída na Campanha Nacional de Combate ao Fumo e comenta também: “A vida saudável é cara; há sempre um medicamento para vender ao idoso e um laboratório oferecendo remédio para tudo. O idoso acaba hipermedicado. Ora, não existe experiência médica sobre uma pessoa que toma seis, sete remédios ao mesmo tempo; ela ainda não foi realizada e não se sabe qual o resultado da interação desses diversos medicamentos no organismo.” Ele ressalta: “A indústria farmacêutica está vendendo a ideia de que, para cada transtorno, inclusive para a infelicidade, temos um remédio. Às vezes, as pessoas estão tristes por causa de um fato muito concreto, mas a sociedade não aceita.” Na virada do século 19 para o 20, ele lembra, a expectativa de vida no Brasil era de 35 anos. As pessoas morriam de infecções e de acidentes. Hoje, no sul e no sudeste do país essa expectativa é igual à da Bélgica. “O país passou da fase da mortalidade infantil para a da doença crônico-degenerativa.” As linhas entre meia idade, juventude, envelhecimento e velhice começam a se apagar. Muita gente madura atua com energia e vitalidade e vive conforme suas expectativas. Já as novas gerações dão mais atenção à saúde preventiva – o que não ocorria antes. Para garantir um futuro confortável para os novos velhos de agora é importante promover campanhas e ações educativas para desconstrução de estereótipos, para a valorizar e estimular a participação deles na sociedade. Vale lembrar que, segundo relatório recente do Banco Mundial do fim de 2013, a produtividade nos mercados de trabalho pode aumentar em até 25% com a inclusão dos idosos no processo. Da parte da sociedade é preciso reivindicar e estimular a criação de centros de convivência para os mais velhos e o aprofundamento das políticas públicas de saúde existentes, embora elas tenham dado um passo adiante no Brasil, de onze anos para cá, com as diversas ações inclusivas do governo. També é necessário resistir à indústria da doença, que despreza a preservação da saúde e cuja clientela preferencial é composta pelos idosos, mais vulneráveis à dependência da figura do médico onipotente e às drogas químicas. O programa Farmácia Popular que distribui medicamentos de uso contínuo aos idosos é um exemplo. Outro, a inclusão obrigatória nos planos de saúde privada de determinados tratamentos necessários à grande maioria dos mais velhos - fisioterapia em geral, fisioterapia cardíaca, RPG. Mas é necessário mais: apoiar, por exemplo, a prática dos chamados cuidados de longa duração. O estado tem obrigação, segundo a Organização Mundial de Saúde, de fornecê-los, assim como apoio social para as pessoas com alguma limitação severa. Considerado pela OMS como direito humano fundamental, esta prática tem sido formalizada em acordos internacionais. A responsabilidade dos cuidados de longa duração, serviço que já faz parte do sistema de seguridade social em países desenvolvidos, deve ser “compartilhada entre estado, família e mercado privado”, assinala a demógrafa Ana Amélia Camarano no volume ''Cuidados de longa duração para a população idosa / um novo risco social a ser assumido?'' (Ipea/2010.) O estado deve aumentar os investimentos no desenvolvimento de programas domiciliares e comunitários eficazes, de custos mais baixos, para atender à população necessitada, é o que registra Camarano. “Qualidade de vida desperta anseio por mais qualidade de vida, por mais e melhores serviços”, acaba de lembrar a presidenta Dilma Roussef em seu discurso em Davos. Outro aspecto de saúde pública relacionado aos idosos é apontado pelo neurologista e psiquiatra Marco Aurelio Negreiros, com vasta clientela de indivíduos de mais idade, no Rio de Janeiro. Ele chama a atenção para o fato de, às vezes, ser o próprio paciente idoso quem busca as tais “soluções mágicas” através de pílulas. O próprio paciente reforça a cultura da indústria médica da hipermedicalização. “As substâncias que causam dependência e contidas em tranquilizantes, benzodiazepínicos e medicamentos com tarja preta, quando receitados de forma exagerada - para dizer o mínimo - são muito usadas pelos idosos. Proporcionam conforto químico, mas tornam o idoso dependente. Acalmam e aplacam a ansiedade, mas não tratam o distúrbio. Geram depressão e distúrbios da memória,” ele diz. O uso excessivo de benzodiazepínicos, típico da cultura brasileira, no entender de Negreiros, é caso de saúde pública. Eles não são mais tão usados na Europa nem nos Estados Unidos, onde o assunto vem sendo discutido cada vez mais amiúde apesar do lobby agressivo da indústria farmacêutica. Os benzodiazepínicos têm efeitos prejudiciais cognitivos que ocorrem com frequência nos idosos e também podem piorar um quadro de demência. Em 2012, um estudo concluiu que a utilização de benzodiazepínicos por pessoas com 65 anos ou mais está associada ao aumento de aproximadamente 50% no risco de demência. O psiquiatra americano Peter Breggin, da Universidade de Ithaca, estado de Nova Iorque, reforça: ”Atualmente, as pessoas usam estas drogas para a ansiedade, para a obesidade, para a menopausa, para tudo. Elas são as mais complicadas na hora de abandoná-las. É mais difícil deixá-las do que a sair do vício do álcool ou de opiáceos.'' No Brasil, segundo Negreiros, há até pessoas físicas vendendo essa medicação. “Certa vez, um paciente me contou,” diz ele, “que comprava benzodiazepínicos sem receita médica com alguém que os vendia em seu apartamento. Como se fosse uma boca de fumo de benzodiazepínicos.” “A opinião corrente, infelizmente,” diz por sua vez Ernani Saltz, “é a de que os remédios e os exames são mágicos. Na medicina, o exame mais sofisticado é hoje relegado ao segundo plano: o exame físico. Poucos médicos examinam de fato o paciente. As pessoas se referem a esta prática como a dos ‘médicos de antigamente’ e isso é terrível.” “Temos que examinar e apalpar os pacientes; mas a prática caiu em desuso. Há uma fantasia corrente de que os exames radiológicos e de laboratório vão resolver tudo – e não resolvem. Há uma falsa segurança das pessoas ao se submeter a eles. Ouvir e examinar, apalpar os pacientes e, eventualmente, encontrar alguma lesão precoce, apenas a mão experiente do médico e o seu conhecimento são capazes de descobrir.” Houve um movimento de alegada falta de equipamentos médicos em cidades do interior do país, por parte de alguns profissionais da saúde, ano passado, quando se iniciou o programa Mais Médico que se inclui com destaque nas ações públicas da saúde favorecendo também os novos velhos brasileiros: seis mil e 600 profissionais atuando em mais de duas mil cidades do país e beneficiando 23 milhões de indivíduos. Em março próximo, 13 mil médicos atenderão a 45 milhões de pessoas – crianças, moços e idosos. São os dados apresentados pela presidenta Dilma Rousseff no seu discurso de fim de ano. Se por um lado há situações em que há falta de equipamentos – como mamógrafos, por exemplo - por outro, em alguns locais distantes de centros urbanos, não existem técnicos nem médicos capacitados para operar as máquinas com eficiência e analisar com precisão os exames. Os estrangeiros e os brasileiros contratados para o Mais Médicos são orientados para trabalharem na saúde da família e na medicina geral. É o que ocorre em Cuba, por exemplo, onde os estudantes se formam apesar da carência de recursos materiais. O oposto de alguns jovens médicos – nem todos eles, é claro - formados nas universidades brasileiras os quais, em seguida, com a prática vigente, acabam sendo parceiros da indústria farmacêutica no mercantilismo da saúde (principalmente da saúde dos idosos e das crianças) e no desinteresse pelo paciente. Nos recentes resultados do exame de suficiência aplicado pelo Conselho de Medicina de São Paulo quase 60% dos formandos foram reprovados. Segundo o próprio Cremesp a deficiência se deu na “solução de eventos frequentes no cotidiano da prática médica.” Muitos desses jovens médicos demonstraram não conhecer o diagnóstico ou tratamento adequados para situações comuns e problemas de saúde tais como pneumonia, tuberculose, hipertensão e atendimento de urgência – vários deles, distúrbios que atingem com frequência os mais velhos. E 67% dos formandos não souberam afirmar que o grau de redução da pressão arterial é o principal fator determinante na diminuição do risco cardiovascular em paciente hipertenso – geralmente pacientes mais idosos. Atualmente, há uma procura maior por parte dos estudantes de Medicina, no país, pela especialidade da Geriatria. “Investir” no idoso, adotando expressão mercantil própria do sistema neoliberal, se torna “bom negócio”. Que seja assim desde que o negócio beneficie ricos e pobres em atendimento adequado e digno. Todos os indivíduos, ricos e pobres, desejam envelhecer ativos, com saúde e reivindicam qualidade de vida. Como anota Saul Leblon nesta página, “a desigualdade continua obscena, mas as placas tectônicas se movem.” Isto se aplica à velhice dourada dos bairros elegantes e dos condomínios de luxo aos idosos das favelas e das comunidades dos conjuntos populares. Aos velhos pacientes do SUS e aos dos planos privados de saúde. A professora de Psicologia Social da PUC-RJ, Teresa Creuza Negreiros, costuma descrever a nossa época como o mundo do “aperta botão e passa cartão”. Um mundo que pode ser vivido pelo idoso com maior dificuldade, como ela diz, o que não significa que a maioria deles se furte a ele: “O velho não é mais o estorvo que era no passado; não é um cidadão de segunda classe e não deseja se ver excluído.” *Autora do livro Novos velhos – viver e envelhecer bem (Ed. Record) (Carta Maior)

Palestina

Jamal Juma: Primavera Árabe não ajudou Palestina. Situação é insustentável Em entrevista à Carta Maior, o ativista palestino Jamal Juma fala sobre a situação de seu povo e sobre a realidade política na região pós-Primavera Árabe. Marco Aurélio Weissheimer Porto Alegre - A situação na Palestina está chegando a um ponto insustentável. O processo de negociação capitaneado pelo secretário de Estado dos EUA, John Kerry, não visa a oferecer uma solução de justiça e paz para os palestinos, mas sim dar a Israel a possibilidade de continuar a construir mais assentamentos. Desde a retomada das negociações, 42 palestinos foram mortos pelo exército israelense, quatro comunidades palestinas foram despejadas no Vale do Jordão e aumentou o processo de judaização de Jerusalém. A chamada Primavera Árabe, para o povo palestino, teve apenas o efeito de desviar a atenção de sua luta e diminuir a possibilidade de apoio de outros países árabes. A avaliação é de Jamal Juma, coordenador da Campanha Popular Palestina contra o Muro do Apartheid, Stop the Wall. Jamal esteve em Porto Alegre na última semana participando do Fórum Social Temático 2014. Em entrevista à Carta Maior, ele fala sobre a situação de seu povo e sobre a mensagem que trouxe nesta visita ao Brasil: “Nós estamos aqui para trazer uma mensagem para nossos amigos da América Latina e, em particular, do Brasil, que é um grande país e tem uma longa história de luta contra o colonialismo e a opressão. Estamos pedindo ao Brasil e aos demais países da América Latina que cortem as relações econômicas e militares com Israel”. Qual é a situação vivida pela Palestina neste momento? Qual a sua avaliação sobre a retomada do processo de negociações com Israel, capitaneado pelos Estados Unidos? Jamal Juma: 2014 é um ano muito importante para a Palestina. Foi retomado um processo de negociação, mas essa negociação não visa chegar a uma solução com justiça, mas sim dar a Israel a possibilidade de continuar a construir mais assentamentos. Essas negociações não vão levar a nenhum lugar bom para os palestinos. Elas começaram em agosto (de 2013) e, de lá para cá, 9.500 novas unidades habitacionais começaram a ser construídas em assentamentos em diferentes áreas da Palestina. Isso significa que Israel prossegue sua política de colonização e de construção de fatos consumados para inviabilizar na prática a existência de um Estado palestino. Desde a retomada das negociações, 42 palestinos foram mortos pelo exército israelense, quatro comunidades palestinas foram despejadas no Vale do Jordão. Neste período, também ocorreram ataques praticamente diários na zona da mesquita de Al Aqsa contra a comunidade muçulmana, criando uma situação muito explosiva em Jerusalém. Os colonos israelenses continuam atacando os palestinos em suas aldeias, fazendo incursões noturnas para queimar mesquitas e casas e para atacar pessoas nas ruas. A judaização de Jerusalém também prossegue, visando aniquilar qualquer sinal das culturas muçulmana e cristã e construir uma identidade unicamente judaica na cidade. Essa política se traduz, por exemplo, na mudança de nomes de rua ou na criação de colônias no centro de Jerusalém. Ao mesmo tempo, como parte dessas negociações, os palestinos são proibidos de pedir reconhecimento como Estado membro junto à Organização das Nações Unidas e a outras organizações internacionais. Então, podemos esperar que essa retomada das negociações pode trazer paz para a Palestina? É claro que não. O que ocorre é uma forte pressão internacional para convencer os palestinos a se render e a aceitar a atual situação. É isso que Israel, os Estados Unidos e seus aliados querem. Qual é a posição das forças políticas palestinas em relação a essas negociações? Jamal Juma: Há um consenso entre todas as forças políticas e entre o povo palestino contra essas negociações. Nas ruas, percebe-se também uma raiva muito forte contra esse processo. Estamos aguentando esse processo para evitar que digam ao mundo que os palestinos são os responsáveis pelo fracasso das negociações. John Kerry tentou obter algumas concessões de Israel como o reconhecimento do Vale do Jordão como território palestino, a definição de um status compartilhado em Jerusalém ou algum outro reconhecimento dos direitos dos palestinos. Obviamente, não conseguiu nada disso. Neste momento, Kerry trabalha somente para conseguir um marco geral para continuar as negociações pela eternidade afora. O secretário de Estado dos EUA está fazendo isso somente para não ter que admitir um fracasso completo, mas ninguém vai dar ele o mandato para prosseguir essas negociações indefinidamente. Então, em abril, quando terminar o período de nove meses de negociação, a situação tende a se deteriorar. Ou a Autoridade Palestina aceita as condições impostas, o que seria um suicídio político, ou parte para criar um consenso entre as forças políticas palestinas e abrir uma batalha legal contra Israel usando as leis e o direito internacional em todos os organismos internacionais, inclusive o Tribunal Penal Internacional, buscando conseguir o isolamento de Israel como um poder colonial e de apartheid. Como está o movimento internacional de boicote a Israel? Parece que ele conseguiu ampliar sua força, principalmente em alguns países europeus. Jamal Juma: Sim. Na Europa, diversos governos começaram a fazer pressão sobre suas empresas para que não invistam nos assentamentos israelenses localizados em territórios ocupados. É muito importante que no Brasil e na América Latina também se adotem essas diretrizes para cortar relações com empresas e instituições israelenses em vários níveis. Para citar um exemplo de relações comerciais, temos o caso da Mekorot, empresa de águas israelense que rouba água dos palestinos e a revende aos próprios palestinos pelo dobro do preço, e que está expandindo muito fortemente seus negócios na América Latina, em cidades como Buenos Aires e São Paulo, entre outras. Nós estamos aqui para trazer uma mensagem para nossos amigos da América Latina e, em particular, do Brasil, que é um grande país e tem uma longa história de luta contra o colonialismo e a opressão. Estamos pedindo ao Brasil e aos demais países da América Latina que cortem as relações econômicas e militares com Israel. Até porque, historicamente, Israel apoiou as ditaduras nesta região e foi cúmplice das violações de direitos humanos. Queremos discutir esse tema. Não é possível que o Brasil seja o segundo maior importador de armas israelenses. É preciso revisar os acordos militares e econômicos firmados com Israel. Como os recentes acontecimentos políticos em países como Egito e Síria estão afetando a luta dos palestinos? A chamada Primavera Árabe trouxe efeitos positivos ou negativos para a causa palestina? Jamal Juma: O impacto que houve foi ter retirado atenção da luta palestina e desviar a atenção dos países da região para o que está acontecendo na Síria e no Egito. Como consequência disso também a possibilidade de ter mais apoio no mundo árabe ficou menor neste momento. Neste sentido o impacto foi negativo. A situação nestes países é muito incerta. Mas creio que temos todas as condições para a chegada de uma primavera palestina. A situação atual é insustentável. É uma situação de contínua humilhação e ocupação. Aceitar a negociação nos termos em que estão sendo colocados significa render-se a uma situação de apartheid e de escravidão. Qual é a situação econômica do povo palestino hoje? Como são as condições de trabalho? Qual o cotidiano econômico? Jamal Juma: Em realidade, não se pode sequer falar de uma economia palestina, pois ela se resume hoje praticamente às doações que chegam de fora. Uma vez que se corte essas doações não há mais economia palestina. Há algumas fábricas, mas a maior parte de quem está empregado depende diretamente dessas doações internacionais. Nossos recursos naturais, nossa terra e nossa água estão sob controle israelense. Nossas fronteiras estão sob controle israelense. Para exportarmos algo precisamos passar pelo controle israelense. Não há como construir uma economia sob tais condições de ocupação e controle. (Carta Maior)

Holocausto Brasileiro

Holocausto Brasileiro. Vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. Entrevista especial com Daniela Arbex “Os funcionários alegavam não ter tido a dimensão da tragédia, que apenas seguiam a cartilha dos mais antigos. Eles também acabaram se desumanizando com o tempo”, reflete a jornalista. Foto: Luiz Alfredo/Museu da Loucura (1961) Durante o regime militar da Alemanha nazista, estima-se que cerca de 6 milhões de judeus perderam suas vidas nos campos de concentração. Ainda que um holocausto de tamanhas proporções jamais tenha se repetido na história desde então, a barbárie, a crueldade e a desumanização encontraram eco em vários lugares do mundo. No Brasil, uma das experiências mais emblemáticas é a do Hospital Colônia de Barbacena (MG), caso que se tornou conhecido pela alcunha de “holocausto brasileiro”. Fundado em 1903, no interior de Minas Gerais, a história do Colônia ganhou espaço na mídia nos últimos anos a partir de uma série de reportagens publicadas no jornal Tribuna de Minas em 2012 e que deu origem ao livro Holocausto Brasileiro - Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil (São Paulo: Geração Editorial, 2013). Obrigados a andarem nus, a defecarem no chão em que dormiam e a enterrar seus próprios mortos, os internos eram enviados ao hospital literalmente para morrer. De acordo com a jornalista Daniela Arbex, autora da publicação, a vida dos internos do Colônia envolvia “um cotidiano de muita limitação, de frio, de fome, de maus tratos físicos e tortura psicológica”. Os pacientes, que muitas vezes eram internados sem qualquer critério, eram os excluídos da sociedade. Pessoas indesejáveis, oponentes políticos, mendigos, prostitutas, homossexuais e, é claro, aqueles verdadeiramente doentes mentais, segregados da convivência diária para longe dos olhos da sociedade. “Pessoas que foram esquecidas pela sociedade, pela família, que eram ignoradas pelos próprios funcionários e pelos médicos, que testemunharam tudo e nada fizeram.” Holocausto Brasileiro é o título escolhido por Daniela para registrar este período que, tal qual o Shoah, representou um crime não apenas contra aquelas pessoas, mas contra toda humanidade e que nunca deve ser esquecido. Em entrevista por telefone à IHU On-Line, ela relata detalhes da crueldade cometida contra os pacientes, que eram tratados por nomes de animais; destaca a venda de corpos e ossadas dos mortos sem consentimento das famílias e a visão dos funcionários do Colônia, que não conseguiam ter a dimensão de seus atos e alegavam apenas seguir a cartilha das práticas anteriormente aplicadas. Foto: Luiz Alfredo/Museu da Loucura (1961) “Estas pessoas foram se desumanizando, foram deixando de ver, e aquilo foi incorporado na rotina delas. Isso nos leva a parar, olhar para trás e refletir sobre o quanto a indiferença provoca barbárie”, alerta a jornalista. “A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê. É essa indiferença que contribui para a existência de barbáries como a do Colônia”, finaliza. Daniela Arbex é jornalista graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é repórter especial do jornal Tribuna de Minas, veículo pelo qual foi vencedora por três vezes do Prêmio Esso de Jornalismo, além de diversos reconhecimentos nacionais e internacionais. Confira a entrevista. Daniela Arbex. Regime político vigente à época com o tratamento dado aos pacientes? Os momentos finais do Colônia, em que ele esteve isolado da população, se deu durante o governo militar. Daniela Arbex - Há uma relação forte, porque foi a época em que o hospital ficou o maior período blindado. Durante 18 anos nenhum repórter entrou no Colônia, então penso que há essa relação. Mas acredito também que não é só o momento político. A história do Colônia foi construída em cima da teoria eugenista de limpeza social, de se livrar de tudo que incomodava a sociedade. O Colônia foi uma forma de fazer isso acontecer, para que a sociedade pudesse ficar livre desse tipo de gente que incomodava tanto. O que sustentou esse modelo foi exatamente essa cultura, que existe até hoje. Mesmo hoje em dia as pessoas continuam fingindo não ver, ignorando o sofrimento do outro. É só ver o caso dos grandes hospitais psiquiátricos, onde ainda há relatos de violação da dignidade humana. Esta é uma realidade que persiste mais de 100 anos depois. Entre 1969 e 1980 foram vendidos 1.853 corpos para 17 faculdades de medicina sem que as famílias tivessem autorizado IHU On-Line - Que importância a luta antimanicomial teve para dar fim ao holocausto brasileiro? Daniela Arbex - A luta antimanicomial teve e tem seu lugar. Ela foi fundamental para se começar a pensar na extinção de um modelo que segregava mesmo, modelos que violavam a dignidade, que confiscavam a humanidade do indivíduo. Ela tem um valor incrível para a história e para a humanização dos modelos de atendimento. Foi muito importante, no momento em que não se falava disso, que essas pessoas começassem a gritar e fizessem a sociedade discutir sobre uma realidade tão ignorada. Ignorada e cômoda também. Porque enquanto o hospício permanece cercado por muros, nós não precisamos saber o que está acontecendo ali. Acredito que teve um valor incrível, agora há um longo caminho a ser percorrido, o desafio é imenso. Ainda não se venceu essa guerra e precisamos fazer com que os serviços essenciais, terapêuticos, ou o serviço substitutivo sejam capazes de substituir esse modelo hospitalar ultrapassado. Então acho que a sociedade brasileira precisa cobrar a implantação da rede substitutiva e, mais do que isso, que ela funcione com qualidade. IHU On-Line - Por onde andam os “filhos do Colônia”? As crianças que nasceram lá? Daniela Arbex - Então, eu encontrei duas. A filha da paciente Sueli Rezende, que nasceu lá. Hoje ela é graduada e formou uma família. Encontrei também o João Bosco, que é bombeiro e membro da banda do corpo de bombeiros da polícia militar de Minas Gerais. É uma pessoa muito batalhadora, muito digna. Ele conseguiu reconstruir, refazer essa história, mas passou a maior parte da vida sem saber que era órfão de uma mãe viva. Ele não sabia que a mãe estava viva, e a mãe também não sabia que o filho vivia; os dois se encontraram mais de 40 anos depois. Então essa lacuna que foi deixada na vida dessas pessoas, que deixaram de conviver com seus pais, com suas mães, é uma coisa que não se resgata. Apesar de essas pessoas terem, de alguma forma, dado a volta por cima, e elas são muito valorosas por isso, vai sempre haver uma lacuna na vida delas. IHU On-Line - Quem eram os responsáveis/gestores do Colônia (Estado, Município, União)? Alguém foi responsabilizado pelos maus-tratos? Daniela Arbex - Não, ainda não teve um responsabilização. Eu vejo muitas pessoas hoje cobrando uma responsabilização, algumas críticas que, inclusive, afirmam que o livro não dá nomes, mas eu não podia ser injusta. Eu não podia citar um nome, sendo que essa foi uma barbárie cometida durante cinco décadas. Durante 50 anos passaram pelo hospital milhares de pessoas, funcionários, médicos e profissionais de toda sorte, isso sem falar da própria população de Barbacena (MG) e dos familiares dos pacientes espalhados pelo país inteiro. Eu acho muito difícil que haja uma individualização dessa responsabilidade. Para mim, o mais correto e talvez o caminho possível fosse a responsabilização do Estado de Minas Gerais que foi responsável pela manutenção do Hospital, porque essas pessoas estavam sob a custódia do Estado. Foto: Luiz Alfredo/Museu da Loucura (1961) IHU On-Line – Você chegou a conversar com funcionários? Como eles enxergavam o tratamento que era aplicado aos pacientes? Daniela Arbex - Na verdade eles não enxergavam. Eu conversei com muitos funcionários e a resposta era sempre a mesma. Eles alegavam não ter tido a dimensão da tragédia, que apenas seguiam a cartilha dos mais antigos e aprenderam que era daquela forma que devia ser feito. Eles também acabaram se desumanizando com o tempo. Alguns tentaram fazer alguma coisa (poucos na verdade), mas eu acho que essa rotina acabou desumanizando essas pessoas de alguma forma. Elas não tinham a dimensão exata da gravidade dos atos e do que estava acontecendo ali. Agora, olhando para trás, muitos confidenciaram que se arrependem e que podiam ter feito mais, que podiam ter evitado mortes, e isso para mim foi surpreendente. IHU On-Line – Foi uma escolha muito feliz o termo Holocausto Brasileiro, porque esse comportamento dos funcionários lembra muito o que Hannah Arendt fala da banalidade do mal no próprio Holocausto. Daniela Arbex - Exatamente. Eu tive pouquíssimas críticas em relação ao nome, mas uma pessoa colocou publicamente que achava que nada podia ser comparado ao nazismo. E o livro mostra exatamente o contrário, pode ser comparado sim, pois o Colônia foi também um campo de extermínio em massa. As condições nas quais as pessoas foram mantidas, a forma com que elas foram tratadas, as vítimas tendo que enterrar seus próprios mortos, enfim, penso que se assemelha muito ao que aconteceu na Alemanha nazista. IHU On-Line – A banalidade do mal se caracteriza por um comportamento que segue a cartilha, segue a técnica, sem que haja nenhuma reflexão humana sobre o acontecimento. Como você vê isso no caso do Colônia? Daniela Arbex - Volto à questão da construção da cultura da época. Aquelas pessoas não eram vistas como gente, porque elas nunca foram tratadas como gente. Ao contrário, muitas não tinham nem nome de gente. Quando entravam no hospital eram rebatizadas e recebiam nomes de animais. Uma delas, por exemplo, foi apelidada de gansa, outra de boi... Começava ali, ao não considerar essas pessoas como gente. Passa também pelo pensamento de achar que essas pessoas, por serem tidas como loucas, não mereçam um tratamento digno, humanizado. Os psicofármacos também foram introduzidos no país na década de 1950; então tem tudo isso. Todo o estigma da loucura, toda a falta de recursos da época, todas essas limitações levaram aos abusos sistemáticos. Agora, eu entendo que a segregação fazia parte da cultura da época e faz parte da cultura de hoje, mas o que eu nunca vou conseguir entender e jamais irei aceitar são os abusos que foram cometidos. Porque uma coisa é você segregar, é tirar essa pessoa do seu convívio social. Outra é maltratar, deixar passar fome, passar frio, é você violar a dignidade dessa pessoa de todas as formas. Para mim, isso é grave, é crime de lesão à humanidade em qualquer tempo. Quanto a essa banalização do mal, eu entendo que as pessoas foram se desumanizando, foram deixando de ver, aquilo foi incorporado na rotina delas. “É assim mesmo, eu não consigo mudar e o que eu vou fazer?”. Elas passaram a cometer os mesmos equívocos de outras pessoas e, quando se viu, isso durou quase um século. Então se você pensar que a abertura dos porões da loucura começou na década de 1980, você vai ver que durante oito décadas isso foi admissível. Como? Isso nos leva a parar, olhar para trás e refletir sobre o quanto a indiferença provoca barbárie. A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê. É essa indiferença que contribui para a existência de barbáries como a do Colônia. IHU On-Line - Você tem planos para outras publicações? Daniela Arbex - Tenho. Estou iniciando as entrevistas para um próximo livro que já está sendo preparado. Não vai ser sobre esse tema, mas também trata de uma história encoberta no país. É um livro que fala sobre o funcionamento de instituições, de acolhimento de forma irregular, mas não é sobre a loucura. Não especificamente, porque é sobre outras loucuras que o ser humano faz e comete. (Por Andriolli Costa e Ricardo Machado) (I.H.U.)

Escravidão

Recife (PE) - Esta semana, foi notícia no Jornal Nacional e em todas as visões e tevês: O Brasil pode ter o primeiro casal de beatos. Eles viveram nos séculos 19 e 20, no Rio de Janeiro, e tiveram uma vida totalmente dedicada à igreja e à caridade. Jerônimo de Castro Abreu Magalhães nasceu em Magé, na Baixada Fluminense, em 1851. Zélia Pedreira Abreu Magalhães, em Niterói, no ano de 1857. O casal era rico, dono de uma fazenda de café na época da escravidão e eram considerados um exemplo de bondade. “Todos aqueles que os serviam, e nesse período eram os escravos, 500 escravos, mas todos eles tinham salários, todos eram tratados com dignidade, tinham moradia. A grande preocupação não era acumular dinheiro”, ressalta Dom Roberto Lopes, da Arquidiocese do Rio de Janeiro.. "A partir de agora, a história de Zélia e Jerônimo vai ficar mais conhecida. E o casal já conquista novos devotos. Nesta primeira etapa, a Arquidiocese do Rio vai recolher documentos e ouvir testemunhas. Depois, encaminhar ao Vaticano. A beatificação depende de um milagre”. Por isso não, o milagre já foi conseguido: tornaram santa a boa escravidão no Brasil.. Amigos, não vou entrar no mérito dos processos de beatificação em geral, para não cair em desgraça ou exibição do meu desconhecimento sobre as vidas dos beatos e dos santos. Mas aqui, no caso particular de Zélia e Jerônimo, saímos do capítulo da mistificação para um crime contra a história: como é possível um processo de beatificação para senhores escravocratas? Mais: como é possível que esse paradoxo se noticie sem uma sombra sequer de pluma da dúvida? Mesmo em se tratando de personagens do século XIX, de ricos senhores das almas e corpos em fazendas de café, não podemos deixar de ver um dilema. Se Jerônimo e Zélia algum dia fizessem um exame honesto de consciência, daqueles exames feitos antes de uma honrada confissão, eles não poderiam fugir desta encruzilhada: ou libertavam os seus escravos, ou eram parasitas do suor de homens e mulheres negros. Não pode haver honra que sobreviva em um escravocrata, por mais bem intencionado que seja. O papel que ele exerce é um pecado sem remissão. O interessante, como um mal sem cura, como o desenvolvimento de uma doença, é que as tentativas de amaciamento da crueldade da escravidão no Brasil continuam nesse processo de beatificação, com a imagem do bom senhor de escravos. “Zélia e Jerônimo nunca tratavam seus escravos como sendo propriedade sua, lá eles viviam em liberdade e recebiam inclusive salário”, dizem sobre os novos santos. E mais: “o tratamento dispensado ao elevado número de escravos que trabalhavam na Fazenda Santa Fé era tão humano que, após a abolição da escravatura, nenhum dali saiu, aí continuando a viver e trabalhar.” Mas como? Esse comportamento não foi único, na vontade de homens tornados escravos também na alma, que não tinham opção: ou continuavam com seus bondosos, ou saíam para morar na rua e viver na fome. De uma descrição de arquitetos que visitaram a antiga fazenda Santa Fé, a propriedade dos santos senhores de escravos, copio o trecho: “as senzalas possuíam construções distintas para homens e mulheres.”. O que era um ato piedoso, sem dúvida, comento aqui, pois assim evitavam a promiscuidade da negraria no cio. E mais: “A Fazenda Santa Fé, ainda segundo Antônio Pinto Corrêa Júnior, produzia anualmente 20 mil arrobas de café, chegando a produzir 40 mil arrobas em alguns anos”. Agora imaginem tamanha fortuna se construindo sob o regime de uma caridosa escravidão. O gênio Charles Darwin no diário da sua passagem no Brasil, em 1871, escreveu que uma vez, ele irritado, falando alto, gesticulou com a mão próxima ao rosto de um escravo. E teve como resposta, diante de si, um homem com os braços soltos para baixo, com a fisionomia transfigurada pelo terror, com os olhos semicerrados, na atitude de quem esperava uma bofetada, e dela não podia se esquivar, paralisado. E Darwin anotou: “Nunca me hei de esquecer da vergonha, surpresa e repulsa que senti ao ver um homem tão musculoso ter medo até de aparar um golpe, num movimento instintivo. Este indivíduo tinha sido treinado a suportar degradação mais aviltante que a da escravidão do mais indefeso animal”. Agora, a Igreja deseja tornar santos dois senhores de escravos. As pessoas de Jerônimo e Zélia, como novos Romeu e Julieta, para o conjunto de escravocratas talvez fossem até generosas. Talvez oprimissem mais suave, sob a doce e benevolente coerção, quem sabe, algo do gênero “se o negro faltar à produção, papai do céu castiga”. Jerônimo e Zélia podem ter sido até mesmo boas almas, cristãs, fervorosas. Mas santificar o casal de escravocratas é o mesmo que santificar uma ordem injusta. Ninguém jamais foi santo possuindo escravos. Urariano mota (Direto da Redação)

Allende

O governo de Salvador Allende: um legado inspirador? Escrito por Jorge Magasich Quando, em 1970, a coalizão que reuniu praticamente toda a esquerda lançou um programa de promoção da socialização e liberdades democráticas, muitos olhos se voltaram para Santiago. O impacto do sucesso excederia a América Latina: os estudantes, entre outros, aqueles que pensam na Espanha pós-Franco, aqueles que buscam formar uma coalizão semelhante na Itália, ou aqueles que preparam a l'Union da gauche francesa. Quase quatro décadas depois do fim trágico, seu legado parece ganhar importância. É talvez uma das poucas experiências socialistas do século XX que pode inspirar outras no século XXI. A edição chilena do Le Monde Diplomatique ofereceu uma série de artigos, traduzidos pelo Correio da Cidadania, sobre os principais aspectos do governo da Unidade Popular (UP) e sua projeção para os nossos tempos. Aqui vamos dar uma visão geral dos temas a serem discutidos. Instalado em La Moneda, o governo de Salvador Allende lança seu projeto de nova sociedade. Transformar 4.400 fazendas obsoletas em cooperativas, num total de 5,8 milhões de hectares. Nacionalizar o sal, carvão, ferro e cobre, talvez a medida econômica mais transcendental do século. Organizar o setor social da economia, incluindo quase todos os bancos e mais de 150 empresas que produzem a plena capacidade, sem que haja denúncias de corrupção. E implantar um sistema de planejamento computadorizado inovador (então chamado cibernética). O aumento da produção permite um aumento significativo na receita para a maior parte dos quase 10 milhões de chilenos, especialmente os mais humildes. Não se conhece mudanças tão profundas e rápidas na América Latina. Nem o presidente mexicano Lázaro Cárdenas, pai da primeira reforma agrária e da nacionalização do petróleo, nem Jacobo Arbens na Guatelama, nem João Goulart no Brasil, nem o próprio Fidel Castro, transformaram tanto em tão pouco tempo. Embora os resultados econômicos sejam difíceis de avaliar em virtude do boicote, que desde 1972 se traduz em filas e mercado negro, pode-se constatar que os resultados do primeiro ano, quando o projeto se desenvolveu em condições normais, são positivos. Em 1971, os deserdados viviam melhor, o que se traduziu nos resultados eleitorais: a Unidade Popular passa dos 36,4% obtidos nas eleições presidenciais de 1970 a 50,2%, alcançados nas eleições municipais de abril de 1971, sendo assim, o primeiro bloco político que propõe o socialismo que consegue a maioria absoluta. Nas parlamentares de março de 1973, chega a 43,7%, um dos melhores resultados de uma coligação governante aos três anos de mandato e, neste caso, afrontando os efeitos da crise econômica instalada. Fazendo história O "governo popular" suscita uma torrente de esperanças para operários, agricultores, empregadas domésticas e servidores de todos os tipos, até então desprezados pelas elites. Os despossuídos vivem pela primeira vez a sensação fascinante de poder forjar destinos, de ser protagonistas da revolução para incidir no curso da história. E atenção: o tratamento aos humildes é o reconhecimento mais respeitoso com a mudança dos tempos. O clima de contentamento popular é revelado nos rostos dos manifestantes de esquerda, dos que emanam alegria e esperança, ao contrário de seus adversários que refletem uma mistura de raiva e angústia (2). E neste triênio de efervescência, discutiu-se iradamente de política, mas também arte, em todas as suas formas. Um clima excepcionalmente inovador incentivou, como nunca, voltar-se à cultura. A produção cinematográfica, musical e literária vive um momento especial. A edição em grande cadência dos clássicos nacionais e estrangeiros, em tiragens impressionantes, de 50 a 100 mil exemplares vendidos nas bancas a preços pouco acima de um maço de cigarros. O país em mutação acolhe numerosos estrangeiros, como terra de asilo ou simplesmente de observação. Nas universidades, construiu-se um amplo restaurante para os delegados da UNCTAD, aberto ao público em 1972 a preços populares, escutava-se o espanhol em todas as suas faixas, incluindo ressonâncias portuguesas, norte-americanas e europeias. A transgressão das hierarquias é subversiva na sociedade classista chilena, a tal ponto que muitos setores altos e médios não toleravam a emergência de "inferiores" e, de fato, temem irracionalmente, a ponto de clamar para que alguém restabeleça a "ordem "a qualquer preço. Desde o primeiro ano de governo, as correntes conservadoras conhecem uma mudança surpreendente. De defensores dos valores tradicionais se transformam em organizadores da insurreição, que toma a forma de greves destinadas a paralisar o aparato produtivo, campanhas de imprensa extremamente agressivas nos meios que controlam, chegando inclusive a difundir falsas informações. E recorrem ao terrorismo contra as ferrovias, pontes e dutos para matar pessoas. No entanto, a direita sozinha não poderia agir. A CIA se orgulha, segundo o relatório Covert, da ação no Chile, de ter influenciado os democratas cristãos a se unir com o Partido Nacional de extrema-direita com o objetivo de derrubar o governo. Golpe documentado Embora algumas sombras existam, o golpe de 1973 é um dos mais bem documentados. As comissões parlamentares organizadas pelos EUA para investigar seu envolvimento no Chile fizeram relatórios esclarecedores, ao que se adiciona a publicação de documentos secretos “desclassificados”. Foram as medidas da UP pouco ou radicais demais que provocaram o golpe? Hoje sabe-se que não. A decisão foi tomada na Casa Branca em 15 de setembro de 1970, 50 dias antes da posse de Allende. Já em março de 1970, Agustín Edwards alerta David Rockefeller que os “EUA teriam que impedir a eleição de Allende”, e conseguem contatar Henry Kissinger. Depois da eleição, o proprietário do El Mercúrio tem duas decepções: descobre que os rumores de uma revolta naval não são mais que isso (3) e o embaixador Edward Korry responde que os EUA não farão nada (4). Voa para Washington. Numa segunda-feira, 14, na casa de Donald Kendall, presidente da PepsiCola e aliado de Richard Nixon, "adverte" Kissinger e o procurador-geral John Mitchell sobre as "consequências de derrubar Allende". Em outra reunião, Edwards discute com o diretor da CIA, Richard Helms, as chances de parar Allende legalmente e também "uma possível ação militar." Kendall parte para fazer lobby na Casa Branca. No dia 15, Nixon convoca Kissinger, Mitchell e Helms. Determina que o governo Allende não é aceitável e ordena a CIA a organizar uma "operação secreta" para impedir a posse de Allende, tomar ou derrubar seu governo: "Há talvez uma possibilidade em 10, mas salvem o Chile", "10 milhões disponíveis, mais se for necessário", " trabalho em tempo integral, os melhores homens"," faça a economia gritar de dor", "48 horas para um plano de ação". Os fatos são categóricos. Primeiro, impacta o desprezo de Edwards e Kendall pela vontade popular, só podem existir os governos "aceitáveis" para eles. Em seguida, o poder de influência da Casa Branca, que também zomba do processo democrático. E, finalmente, a reveladora documentação. É - diz Peter Kornbluh - o primeiro registro de um presidente americano dando instruções para derrubar um governo democrático. Notas: 1.Martner G. Gonzalo, 1988, O governo do presidente Salvador Allende, 1970-1973. Uma avaliação, Ed. Programa de Estudos e Desenvolvimento Nacional e Edições literatura americana reunida, p. 161 2. Esta observação foi confirmada por pessoas que, na época, eram ativistas de direita. 3. ARANCIBIA Patricia, de 2005, conversando com Roberto Kelly V. Memórias de uma vida, Ed. Biblioteca Americana de Santiago, p 124. 4. As atuações de Edwards quando ele vai para os Estados Unidos para insistir que um golpe de Estado no Chile são expostas por Peter Kornbluh em 2003; Os EUA e a derrubada de Allende. Uma história desqualificada. Ed B. Os documentos foram publicados pelo Arquivo de Segurança Nacional. Jorge Masasich é historiador chileno e leciona em Bruxelas. Próximo artigo: O desemprego de outubro de 1972 e a primeira tentativa de derrubar o governo, freada por uma a mobilização original popular. Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.