sábado, 4 de janeiro de 2014

Ditadura

Os inimigos Escrito por Otto Filgueiras Por divergências políticas, ou pelo equívoco do sectarismo, participantes da resistência armada ou não contra a ditadura militar costumam indigitar alguns camaradas, confundindo a miséria do comportamento dos militantes diante da tortura com traidores cooptados pela repressão. Inimigos são os que torturaram ou davam as ordens para as torturas contra prisioneiros ou concordavam e defendiam a brutalidade nas muralhas. A ata da quadragésima terceira sessão do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o AI-5 e o áudio da sessão dão conta do regime de terror que estava sendo institucionalizado, com o apoio quase unânime dos presentes, entre os quais Delfim Netto e o então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho. O “artífice econômico” da reunião era Delfim Netto, ministro da Fazenda, espécie de mestre do terror daquela cerimônia macabra. Ele disse na reunião “que a Revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico que realmente é o nosso objetivo básico. Creio que a Revolução, muito cedo, meteu-se em uma camisa de força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. Mais do que isso, creio que, se institucionalizando tão cedo, possibilitou toda a sorte de contestações que culminaram com este episódio último que acabamos de assistir. Realmente, esse episódio é o sinal mais marcante da contestação global do processo revolucionário. Por isso, senhor presidente, eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada neste Conselho”. O então ministro da Fazenda não se contentou e disse que as medidas estabelecidas pelo AI-5 precisavam ser ainda mais duras: “Se vossa excelência me permitir, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Acredito que deveríamos atentar, que deveríamos dar a vossa excelência, senhor presidente da República, a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez”. O “desenvolvimento” a que se referia Delfim Netto vai se concretizar em seguida com o “milagre econômico”, arquitetado por ele e baseado na liberação dos gastos públicos sem precedentes na história brasileira, destinados ao financiamento de grandes empresas estrangeiras e brasileiras e, particularmente, fazendo a modernização conservadora do campo. Para se contrapor à democratização da terra e à bandeira da reforma agrária defendida pelos camponeses e organizações populares, Delfim Netto liberou grande soma de dinheiro farto e barato para os donos de latifúndios comprarem máquinas agrícolas, insumos e outras tecnologias de ponta. Ele assegurava, assim, o crescimento do mercado interno, mas não pelo consumo de bens nas cidades e sim pela aquisição de tratores, colheitadeiras e outras máquinas, adubos, fertilizantes e agrotóxicos pelos donos de terra, dando os primeiros passos para o estabelecimento do agronegócio no campo. O Produto Interno Bruto, PIB, cresceu 10% anuais no período do “milagre”, houve geração de emprego e, consequentemente, mais consumo, a pequena burguesia urbana e setores importantes da população trabalhadora no país foram neutralizados. O “milagre econômico” de Delfim Netto precisava de um Brasil amorfo e sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista. Com a repressão policial que se seguiu ao AI-5 as praças ficaram vazias, as fábricas vigiadas pela polícia, centenas de sindicatos sob intervenção, suas diretorias destituídas, grêmios estudantis fechados, teatros invadidos, músicas, filmes, jornais, livros e peças teatrais censuradas, parlamentares cassados, jornalistas e intelectuais amordaçados e as prisões lotadas de brasileiros opositores do regime. Quase todos torturados e muitos deles assassinados, executados nas masmorras da brutalidade. Embora as provas documentais indiquem que Delfim Netto não se envolveu diretamente na tortura e assassinato de presos políticos, o então poderoso ministro da Fazenda ajudou o sistema repressivo. Não só pelo modelo econômico que adotou e que implicou arrocho salarial e mais repressão contra os operários e suas entidades sindicais, mas também reunindo empresários para que contribuíssem financeiramente com a organização e sustentação da Operação Bandeirantes, OBAN, em São Paulo, órgão oficioso da ditadura militar e mantido por industriais para prender, torturar e matar opositores do regime. Posteriormente, a OBAN, espécie de projeto piloto, foi oficializada e se transformou no DOI-CODI, Departamento de Operações Internas/Centro de Operações Internas, estruturado em todo o Brasil, com o objetivo de liquidar os movimentos de oposição ao regime militar, por meio da tortura e assassinatos de prisioneiros políticos. A participação de Delfim Netto no estabelecimento e financiamento da OBAN está evidente no documentário Cidadão Boilesen, que narra a trajetória de Henning Albert Boilesen: esse dinamarquês radicado no Brasil foi presidente da empresa Ultragás, ligada a grupos militares, paramilitares e que assistia às sessões de tortura e emprestava veículos do grupo Ultra para operações da repressão. Em 15 de abril 1971 foi metralhado e morto numa rua da cidade de São Paulo por militantes do Movimento Revolucionário Tiradentes, MRT, e da Ação Libertadora Nacional, ALN. No documentário Cidadão Boilesen, são exibidas imagens da época, nas quais Delfim Netto aparece em palestras com empresários, militares do sistema repressivo e o próprio Boilesen, recolhendo contribuições financeiras para a OBAN. No entanto, o lulismo ou social-liberalismo dos governos Lula e Dilma alinharam-se aos inimigos e adotaram um modelo econômico referendado por eles, entre os quais Delfim Netto, keynesiano de direita. Da mesma forma, o coronel Jarbas Passarinho abraçava-se e congratulava-se no Congresso Nacional com um deputado petista, que dizia ter sido guerrilheiro, embora não tenha participado de guerrilha e dado um só tiro. A tragédia da ditadura implicou que alguns jovens militantes de organizações militaristas e foquistas fossem a televisão renegar a esquerda. Traidores perante a história, se cobriram com o manto da vergonha e um deles terminou se suicidando. O AI-5 é resultado das contradições entre as várias correntes militares que deram o golpe de 1964. Mas também dos erros da esquerda, seja na radicalização infantil dos movimentos estudantil, operário e camponês, seja nas ações armadas que as organizações militaristas e foquistas já faziam antes de dezembro de 1968, além dos equívocos daquelas que pregavam a luta armada junto com o movimento operário e popular, incluindo a Ação Popular (AP). Na pesquisa para o livro da AP, constatei documentalmente os erros da esquerda e que a ditadura não foi derrotada pela luta armada, e sim pela luta política. Claro que houve transição conservadora, como muitos equívocos de correntes reformistas da esquerda e foi vitorioso o projeto de Ernesto Geisel. Se quisermos entender o presente, é fundamental pesquisar e estudar o passado, pois só assim poderemos ver alguma luz marxista no futuro. Mesmo com críticas às estratégias e táticas militaristas e foquistas das organizações de esquerda, e a uma série de erros de vários agrupamentos, é preciso ter claro quem são nossos mortos e não chutar cachorro morto. Por esses mortos, os nossos mortos, por Mario Alves, Carlos Marighela, Carlos Lamarca, Davi Capistrano, Célio Guedes, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Angelo Arroyo, Helenira Rezende, Alexandre Vanucci, Luiz Eduardo Merlino, Carlos Danielli, Jorge Leal Gonçalves, Raimundo Eduardo da Silva, Luiz Hirata, Paulo Stuart Wright, José Carlos da Mata Machado, Gildo Lacerda, Humberto Câmara, Honestino Guimarães, Eduardo Collier, Fernando Santa Cruz, e tantos outros, pedimos castigo para os inimigos. Otto Filgueiras é jornalista e está lançando o livro Revolucionários sem rosto, uma história da Ação Popular. (Correio da Cidadania)

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