sábado, 4 de janeiro de 2014

Europa

Quando a Europa se estrepou? O velho continente vive um retrocesso de dimensões civilizatórias, porque o Estado de bem estar social europeu foi uma referência em escala mundial. por Emir Sader Logo no começo da obra prima de Vargas Llosa, Conversas na Catedral, um peruano pergunta ao amigo: - E quando se estrepou o Peru? A conversa dá por estabelecido que o Peru se estrepou, está estrepado. Se trata de saber desde quando, a partir de quando, para tentar entender o porquê e o para quem. Hoje se dá por estabelecido que a Europa está estrepada, que se estrepou. Há distintos diagnósticos, uns que se deve à preguiça dos do Sul, que o ar mediterrâneo e a sesta os teria feito viver acima das suas possibilidades (isso que nós escutamos durante tanto tempo na América Latina). Outros, pela rigidez do Banco Central da Alemanha, que domina a troika e se impõe às outras economias. Os remédios se diferenciam um pouco, mas no fundo, são amargos todos. Porque todos aceitam que a Europa se estrepou. O que é um fenômeno de imensas proporções, representa um retrocesso de dimensões civilizatórias, porque o Estado de bem estar social europeu foi uma construção solidária, que tinha se tornado uma referência em escala mundial. Terminar com ele implica assim em um retorno aos tempos de exclusão social e de abandono, que a Europa havia deixado para trás. Quando se estrepou a Europa? Seria possível localizar esse momento na explosão da chamada primeira guerra mundial, a guerra mais selvagem no meio do mundo que se considerada o mais civilizado, quando as contradições interburguesas que Lenin disse que comandariam a história mundial na entrada do novo século e sua visão se confirmou dramaticamente. Seria possível também localizar esse momento na divisão da social democracia entre belicistas e pacificistas, com a IIª Internacional abandonando oficialmente o pacificismo e o internacionalismo que havia caracterizado a esquerda até aquele momento, abrindo feridas que não voltariam a cicatrizar-se. Seria possível igualmente localizar o momento em que a Europa se estrepou quando gerou os monstruosos regimes fascistas e nazistas no seu seio e não foi capaz de derrotá-los, tendo que apelar para apoios externos. Mas nada disso explicaria a virada atual, porque depois de tudo isso, a Europa ocidental foi capaz de construir Estados de bem estar social, que ao longo de três décadas, foi uma das mais generosas construções sociais que a humanidade tinha conhecido. Foi então, depois desse momento, que é necessário encontrar o momento em que a Europa realizou a virada que a levou a estar estrepada. Eu localizaria esse momento na passagem do primeiro para o segundo ano do primeiro governo de François Mitterrand, na França. A vitória, finalmente tão comemorada, da esquerda francesa no segundo pós-guerra, propiciou a Mitterrand um primeiro ano de governo centrado nas nacionalizações, na consolidação dos direitos sociais, em uma política externa solidária e voltada para o Sul do mundo. Mas o mundo tinha mudado, Teagan e Thatcher impunham um novo modelo e uma nova política internacional, com a França sofrendo em carne própria as consequências desse novo cenário. Uma possibilidade seria que a Franca estreitasse suas alianças com a periferia, com a América Latina, a África e a Ásia, liderando aos países que mais duramente sofriam as viradas da globalização. O outra, que foi a que predominou, foi a mudança radical de orientação do governo socialista francês, adaptando-se à nova onda neoliberal, à sua maneira, somando-se como aliado subordinado ao bloco liderado pelos EUA e pela Grã Bretanha. Essa virada, que consolidou a nova hegemonia, de caráter neoliberal, em escala mundial, inaugurou a modalidade de governos e forças social democratas assimilados à hegemonia dos modelos centrados no mercado e no livre comercio. A Espanha de Felipe Gonzalez não tardou em aderir a essa nova orientação social democrata, no que foi seguida por outros governos e abriu caminho a que, também na América Latina, essa via se estendesse a países como o Mexico, a Venezuela, o Chile e o Brasil, entre outros. Essa nova linha política ja apontava para a condenação do Estado de bem estar social – um modelo contraditório com o Consenso de Washington, centrado nos direitos sociais -, que mais cedo ou mais tarde faria a Europa pagar o seu preço. A própria unificação europeia se deu já sob essa orientação, com as consultas nacionais centradas não na unificação política da Eurpa, mas na adesão à criação de uma moeda única, impondo um caráter basicamente monetário a essa unificação. A crise iniciada em 2008 afetou a Europa absolutamente fragilizada, porque imersa nos consensos neoliberais, o que a impediu de reagir como fizeram governos latino-americanos, que atuaram inspirados exatamente nos modelos reguladores que tinham sido hegemônicos na Europa durante três décadas, reagindo positivamente diante da crise. O resto é a fisionomia atual da Europa, de destruição do Estado de bem estar social, jogando álcool ao fogo, tomando remédios neoliberais para a crise neoliberal, que só se aprofunda e se prolonga. (Carta Maior)

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