domingo, 19 de janeiro de 2014

Espionagem

O pré-Snowden: o agente britânico Peter Wright Em meio a toda a poeira levantada por e em torno de Edward Snowden, houve um precedente que passou desapercebido, o caso de Peter Wright, ex-agente do MI5. Flávio Aguiar Em meio a toda a poeira levantada por e em torno de Edward Snowden, graças a suas denúncias sobre a espionagem da National Security Agency em escala mundial, houve um precedente que passou desapercebido. Falou-se muito em Daniel Ellsberg (The Pentagon Papers) e outros “whistle blowers”. Mas não vi menção ao livro “The Spy Catcher”, do ex-agente do MI5 britânico Peter Wright, já falecido. O livro, lançado em 1987 e 1988, primeiramente na Austrália, depois nos Estados Unidos e na Escócia, esteve proibido na Inglaterra durante anos. A primeira-ministra Margareth Thatcher fez tudo para impedir a sua publicação: até entrou com um recurso judicial para proibi-lo na Austrália, mas foi derrotada por decisão da Suprema Corte daquele país, que alegou o princípio da liberdade de expressão. O livro tornou-se um best-seller mundial. Milhões de exemplares circularam, inclusive na Inglaterra, contrabandeados da vizinha Escócia. No Brasil foi lançado pela Bertrand Brasil, e hoje só é encontrável em sebos. Ele contém uma série de revelações bastante constrangedoras sobre as atividades e os métodos de espionagem e contra-espionagem britânicos e dos Estados Unidos. Foi a primeira vez, por exemplo, em que um naquela altura ex-agente do serviço secreto britânico (já aposentado) admitiu de público que o MI6 (o mesmo serviço do ficcional James Bond) organizara um complô para matar o líder egípcio Gamal Abdel Nasser. Peter Wright (1916 – 1995) não foi nenhum Edward Snowden. Preocupações em torno de temas como “direito à privacidade”, “cidadania”, “escutas ilegais” ocupam pouco espaço – se ocupam algum – em seu livro. Este é escrito com ressentimento e espírito de vingança, contra o que ele pensa ser uma injustiça cometida em relação 1) ao seu trabalho e dedicação ao MI5, setor do serviço secreto britânico em que ele trabalhou, e 2) à sua pensão de aposentado, que ele julga muito pequena em relação ao que ele fez. Peter Wright é um anti-comunista convicto e convencido. Convencido de que ele é dos melhores, senão o melhor anti-comunista do MI5, um cientista da contra-espionagem cercado por um bando de buldogues incompetentes, subordinados e superiores inoperantes ou potenciais traidores, ou seja, espiões para os soviéticos. Poucos servidores da causa (ele reconhece alguns) estão à sua altura. O livro é um extenso plaidoyer em favor de sua tese de que o próprio diretor do MI5, sob o qual ele serviu por anos a fio, Sir Roger Hollis, era um espião soviético, o que teria provocado muitas falhas em várias operações do serviço, algumas montadas por ele, Wright. Este, ao fim do livro, não consegue comprovar sua tese, mas atribui este fracasso à inoperância do próprio serviço e de políticos que temem que tal escândalo pudesse provocar danos irreparáveis à reputação do órgão, já prejudicada por outros casos de espionagem, além de à própria Grã-Bretanha no plano das relações internacionais. Sir Hollis chega a ser investigado e até interrogado, mas apenas depois de sua aposentadoria, e sem sucesso. O caso é encerrado, mas Wright permanece convicto de que ele era o principal traidor, sendo o personagem conhecido como “o quinto homem do círculo de Cambridge”. Voltaremos a este personagem misterioso, cuja identidade permanece controversa até hoje. Antes disto, percorramos algumas das revelações que o livro de Wright traz para nós, leitores do século XXI e já informados pelas denúncias de Snowden. 1) Em primeiro lugar, ao lado das operações realizadas, tomamos conhecimento do clima de rivalidade, desconfiança e futrica, de mútua sabotagem, entre as três grandes agências do serviço secreto britânico: o MI6, de espionagem e muito atuante no plano externo, o MI5, de contra-espionagem e muito atuante no plano interno, e o GCHQ, General Communications Headquarters. Além disto, há as rivalidades com a CIA, a National Security Agency e o FBI, dos Estados Unidos, e também entre estes. Wright insiste muito no verdadeiro desprezo com que, por exemplo, o diretor do FBI durante décadas, J. Edgar Hoover, tratava os britânicos. 2) Por seu intermédio tomamos conhecimento que, apesar destas tensões, o processo de conurbação entre os serviços secretos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da Nova Zelândia, Austrália e Canadá se consolidou definitivamente já em 1967. E também que um dos alvos próximos desta conurbação foi a França – cujos motivos envolviam “experiências” que os britânicos – inclusive o próprio Wright – queriam fazer em sistemas de rádio-escuta, bem como desconfianças e rivalidades em relação às atitudes do General De Gaulle. 3) Entretanto os alvos preferenciais das investigações e ações do MI5 e do próprio Wright foram sempre, entre 1955, quando ele adentra o serviço, e 1976, quando se aposenta, a) a União Soviética; b) os demais países comunistas; c) o Egito, de Gamal Abdel Nasser. À luz de contra-espionar a espionagem soviética na Grã-Bretanha, além de nos Estados Unidos, em cooperação com a CIA, e no Canadá, em cooperação com a Real Polícia Montada, os serviços secretos não só dedicaram milhares de horas de trabalho e milhões de libras esterlinas a montar complicadas operações de escuta em embaixadas, consulados, navios, hotéis, etc., como também dedicaram outros milhares de horas e outros milhões de libras esterlinas a espionar, por vezes ilegalmente, sedes e membros (e seus familiares e casas) do Partido Comunista Britânico, arrombando lares, sequestrando documentos, violando privacidades, etc. 4) Wright brinda os leitores com informações bastante detalhadas sobre a técnica das operações de rádio-escuta e escuta telefônica (trata-se de um mundo onde os computadores estão alvorecendoe sem internet), através de paredes duplas, falsos forros, microfones ultra-sensíveis. Mas por este caminho começa a dar pistas também sobre a inevitabilidade da conurbação deste mundo da espionagem e contra-espionagem com empresas privadas, em duas linhas de atuação: 1) nos setores, por exemplo, de telecomunicação, aviação e produção de armamentos, pelas necessidades de bisbilhotice e pesquisa; 2) como alvo de espionagem, entrando aí o sistema bancário e financeiro como um dos alvos principais. Wright relata como a certa altura o MI5 recebeu uma solicitação – feita por membros de governo a pedido de empresas privadas – de montar um sistema de escuta no hotel onde se hospedaria uma delegação argentina que vinha a Londres negociar... a venda de carne para o mercado local! A proposta, diz ele, foi recusada por ser considerada um aviltamento das funções do órgão. Outro setor focado é o dos testes de venenos a serem usados em operações de assassinato, como o plano (que ele denuncia) para matar Nasser, usando-se líquidos ou gases. 5) O livro introduz o leitor também ao complicadíssimo troca-troca no mundo dos agentes duplos, delatores, agentes que passam de um lado para o outro, provocando muitas vezes até mortes por fuzilamento ou outros métodos. Há vários casos espetaculares, mas aqui ressalterei apenas dois: a) o caso conhecido como o da “Operação do Túnel de Berlim”; e b) o já mencionado caso do “círculo – ou dos cinco – de Cambridge”. 6) O “Túnel de Berlim”. Esta Operação, conhecida como “Operação Ouro” foi levada a cabo a partir de 1953. Neste ano, Reinhard Gehlen, o ex-SS que montara e dirigia o serviço secreto da Alemanha Ocidental, alertou os norte-americanos sobre uma conexão crucial de três grandes cabos telefônicos ligados ao QG soviético, numa zona próxima à divisa com o setor aliado, e a poucos metros de profundidade. A partir daí a CIA e os serviço secreto britânico planejaram e cavaram um túnel sob a divisa até a junção para montar um sistema de escuta, coisa que ficou pronta e entrou em operação em meados de 1955. Entretanto um agente pró-soviético, infiltrado no serviço britânico, denunciou o esquema, ainda no começo. Os soviéticos decidiram deixar a operação prosseguir para a) não queimar o agente, George Baker; b) para alimentá-lo com informações filtradas, falsas ou não, “aquilo que eles queriam que o Ocidente escutasse”. Quando Baker foi transferido para o Oriente Médio, os soviéticos decidiram “descobrir” o túnel e a operação, o que foi feito com estardalhaço, imprensa, fotos, etc., para constrangimento do Ocidente. George Baker acabou denunciado por um agente polonês, Michael Golienewski (1922 – 1993) que trabalhava para a KGB soviética e que mudou de lado em 1961. Baker foi preso e condenado a 42 anos de prisão. Entretanto conseguiu fugir espetacularmente em 1966, com ajuda de outros 3 prisioneiros que nada tinham a ver com atividades comunistas. Foi para a União Soviética, onde vive até hoje (agora Rússia). Em 2012, por ocasião de seu 85º. aniversário, foi condecorado pelo próprio Vladimir Putin. Golienewski morreu alegando que era o herdeiro do trono russo. 7) Os “Cinco de Cambridge”. Este é o nome genérico dado a um dos maiores escândalos dentro da espionagem britânica, e se refere à identificação de quatro (como já disse, havia um quinto que nunca foi identificado com precisão) espiões pró-soviéticos dentro do serviço secreto britânico. Todos os cinco eram membros da aristocracia, ou próximos dela, e eram formados na Universidade de Cambridge (daí o nome). Foram arregimentados para a espionagem soviética ainda na década de 30, e só começaram a ser descobertos a partir da década de 50. Dois deles – Guy Burgess e Donald Mc Lean – foram identificados em 1951. Alertados por um terceiro – que até hoje parece ter sido o líder do grupo, Kim Philby – conseguiram fugir para a França e depois para a União Soviética. Por sua vez, Philby – o “terceiro homem” – teve um percurso mais acidentado. Acusado de ser um espião infiltrado em 1955, Philby negou tudo, mas deixou o serviço e tornou-se repórter no Líbano, para o Observer. Entretanto, denunciado novamente em 1961, confessou sua condição a um enviado do serviço secreto britânico para interrogá-lo. Ainda assim, conseguiu embarcar num cargueiro soviético e embarcar para Moscou. O quarto homem era Sir(!) Alistair Blunt, um erudito encarregado da pinacoteca da Rainha e que trabalhara para o MI5, foi denunciado em 1964. Confessou sua participação num esquema de ‘delação premiada’. Wright interrogou-o várias vezes, e este é um dos momentos mais interessantes do livro. Obcecado com a ideia de identificar o quinto homem, e já desconfiado de Hollis, Wright decide que a única maneira de levar a cabo sua “missão” é estudar o que se passara na dácada de 30, levan do aqueles proeminentes estudantes de Cambridge a aderir ao comunismo e à espionagem. Nas entrevistas com Blunt fica claro o enorme peso que cai sobre a consicência destes “agentes secretos”. Curiosamente, além de um alívio, a confissão lhes propicia alguma forma de reconhecimento sobre uma parte ponderável de sua vida que, de outra forma, permaneceria para sempre nas trevas. O livro de Wright nos leva ainda ao encontro de outras narrativas impressioantes. Por exemplo, impressiona a quantidade de álcool consumida pelos agentes e contra-agentes ao longo dele – não horas vagas ou nas happyhours depois do expediente – mas durante as operações! São litros e litros de scotch e gim ou de outra bebida que estiver à mão enquanto instalam fios, escutam mensagens oju interrogam suspeitos – álcool às vezes compartilhado com os suspeitos, por consideração ou método de soltar-lhes a língua. Também impressiona a menção da verdadeira conurbação entre vários membros dos serviços secretos (cerca de 30, na época, segundo outras fontes) e o Partido Conservador britânico, sobretudo na tentativa de derrubar o primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson. Também comenta o envolvimento do MI5 em espionar os movimentos sindicais e de estudantes britânicos. Peter Wright, como já disse, não é um Snowden. O seu livro é um livro de memórias – criticado como falho e obsessivo por outros colegas e comentaristas. Não há anexos, nem ele cita documentos. Mas há documentos em outras partes que começam a vir à luz, que atestam algo de seus comentários. Isto pode trazer alguma explicação – além dos constrangimentos internacionais – para o empenho de Margareth Thatcher em impedir a sua publicação. Se Wright fracassou no seu intento de comprovar a acusação contra Sir Roger Hollis, Thatcher também fracassou no seu. Felizmente. (Carta Maior)

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