quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Sharon

Ariel Sharon: trajetória de um liberal genocida e o legado de ódio Escrito por Ramez Philippe Maalouf Em 11 de janeiro de 2014, faleceu, aos 85 anos de idade, o general e ex-primeiro-ministro israelense Ariel Scheinerman, mais conhecido como Ariel Sharon ou simplesmente “Arik” para os amigos. Amado por alguns e odiado por muitos, inclusive pelos próprios israelenses civis e militares, a vida e especialmente sua conduta militar e política confundem-se com a do próprio Estado de Israel, sempre marcada pelo uso sistemático da extrema violência para a “solução de problemas” políticos. Em Israel, por causa da sua notória arrogância, conduta espalhafatosa, ambição desmesurada nas carreiras militar e política e sua corpulenta figura, ele foi apelidado de bulldozer, um termo visto quase como um elogio. Eterno destruidor das possibilidades de paz Mas há um cruel duplo sentido neste apelido: os bulldozeres são usados para destruir residências dos palestinos (com os moradores dentro, inclusive) nos territórios árabes ocupados militarmente pelos israelenses. O extermínio do povo palestino e dos demais árabes foi a verdadeira profissão de Sharon. Entretanto, segundo a mídia ocidental (da qual a brasileira se filia colonialmente), o velho general foi no máximo uma pessoa “controversa”. De acordo com o governo dos EUA, ele foi uma “pessoa complexa para tempos complexos”. Para a maioria dos árabes, especialmente os não-liberais, os libaneses e os palestinos, será sempre lembrado como “carniceiro”, cuja “obra-prima” foi o Massacre de Sabra e Chatila, como uma das consequências da invasão israelense do Líbano em 1982. Pelo menos 3 mil árabes (palestinos e libaneses) foram assassinados no Massacre. Na realidade, Sharon foi, desde a invasão do Líbano de 1982, uma espécie de catalisador do ódio da chamada “esquerda” israelense, que parece preferir o estilo low-profile de líderes “esquerdistas” como Ben-Gurion, Golda Meir, Yitzhak Rabin ou mesmo de Ehud Barak ao estilo espalhafatoso de Menachem Begin e do general Scheinerman. Isto ficou evidente quando, durante os depoimentos à Comissão Kahan, estabelecida em 1983 para investigar a participação israelense no Massacre de Sabra e Chatila, Sharon cinicamente questionou por que o general Yitzhak Rabin (um “esquerdista”, segundo o jargão israelense) não sofreu a mesma investigação, uma vez que este estava diretamente envolvido no Massacre de Tal al-Za’atar, ocorrido em 1976, também durante a Guerra do Líbano (1975-90), no qual mais de 2 mil palestinos foram exterminados por milícias libanesas direitistas cristãs ultra-liberais, apoiadas simultaneamente, na época, pela Síria e Israel, que era governada por Rabin. O questionamento de Sharon apenas revelava o que pesquisadores acadêmicos sobre o Oriente Médio têm afirmado, inclusive dentro de Israel: o extermínio e a expulsão dos palestinos não são programas de governo de um determinado partido ou coalizão política (“esquerdista” ou “direitista”), mas, sim, uma política de Estado levada a cabo por todas as correntes políticas existentes no suposto “Estado judeu”. Deste modo, “esquerda” (os nacionalista-socialistas do Partido Trabalhista, por exemplo), o “centro” (como o liberal Partido Kadima) e a “direita” (como o nacionalista-liberal Likud) são sócios do mesmo projeto de construção de um Estado “100% judeu” entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão, a qualquer preço. Baluarte do apartheid palestino Ainda podemos afirmar que, a partir da grave denúncia de Sharon, não há verdadeiramente um partido de esquerda antissionista em Israel. Existem, no máximo, críticos do sionismo, ou seja, críticos dos “excessos” (o que quer que isto signifique) da implantação do projeto sionista. Não se questiona a reivindicação de um Estado ou de um governo fundamentado no exclusivismo comunitário numa região marcada pelo pluralismo étnico e confessional e pelo entrelaçamento multimilenar destas comunidades religiosas e étnicas. Devemos ressaltar que a fundação de Israel, como um “Estado judeu”, só foi possível mediante a limpeza étnica e o extermínio de milhares de palestinos em 1948, como resultado culminante da balcanização da Palestina. Assim sendo, mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras e as tropas enviadas pelos governos árabes conservadores (atrelados ainda às potências coloniais europeias) para estancar a limpeza étnica nada mais fizeram do que apenas acertar os novos limites de seus países com o novo “Estado judeu”. Ariel Sharon foi, portanto, uma das encarnações deste projeto racista e segregacionista (sendo, por isto, muito bem aceito pelos liberais em todo mundo): o sionismo. Como militar ou como político direitista ultra-liberal, atuou em comum acordo com as geoestratégias do líder trabalhista Ben-Gurion, que preconizava a aliança com os libaneses cristãos maronitas ultra-liberais e a invasão do Líbano. Em 1953, o então tenente-coronel Sharon comandou a tristemente célebre Unidade 101 e executou uma operação militar contra uma aldeia palestina, Qibya, na Cisjordânia, ainda em poder dos jordanianos, que assassinou 77 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças. Escândalo internacional, o Massacre de Qibya foi levado à ONU, enquanto as lideranças israelenses se preparavam secretamente para a almejada guerra contra o Egito, liderado pelo nacionalista árabe coronel Gamal Abdel Nasser. Durante estes preparativos, o ambicioso e indisciplinado Sharon e sua Unidade 101 promoveram outro massacre contra soldados egípcios estacionados na Faixa de Gaza, em 1955, no qual assassinaram 37 pessoas, ferindo outras 31. O ataque ao QG egípcio em Gaza forçou o pró-americano Nasser a comprar armas da URSS (a extinta União Soviética), que estreitou relações com a potência socialista. Estes massacres contra árabes também tinham propósitos políticos internos, revelando a ambição desmesurada do então jovem oficial do exército. No final do mesmo ano, comandando uma brigada de pára-quedistas, atacou forças sírias ao norte do Mar da Galileia, assassinando cerca de 60 soldados sírios. A ofensiva tinha o objetivo de beneficiar a política “ativista” do então ministro da defesa (sic) Ben-Gurion para desmoralizar a “moderação” do premier de Moshe Sharret, favorável a uma acomodação com os países árabes. A mesma tática sangrenta (assassinar árabes para derrubar rivais políticos internos e galgar o poder) seria usada na invasão do Líbano de 1982. Com estes massacres, o ultra-direitista Sharon tornou-se uma espécie de pupilo do suposto esquerdista Ben-Gurion. Já no curso do ataque tripartite anglo-franco-israelense ao Egito, em 1956, Sharon e suas tropas, ao desobedecerem ordens superiores, caíram numa emboscada egípcia no Passo de Mitla no Sinai, causando a morte de dezenas de soldados israelenses. Uma outra característica de sua carreira militar foi a habilidade em manipular a mídia sobre seus feitos militares, posta em prática nas guerras de 1967 e 1973, onde teve um papel de destaque, liderando campanhas vitoriosas. Porém, em 1973, na Guerra do Yom Kippur, mais uma vez desobedeceu ordens e atravessou o Canal de Suez para cercar tropas egípcias. A manobra de duvidosa eficácia foi vitoriosa unicamente porque Sadat não pretendia vencer os israelenses, mas, sim, forçá-los a aceitarem uma negociação de paz. A indisciplina do general causou fúria entre os seus superiores, mas a sua enorme popularidade entre os civis já era notória. Das guerras à carreira política Foi somente, contudo, com a administração de Menachem Begin (1977-83), do partido Likud, nacionalistas direitistas ultra-liberais, que Sharon transmutou-se de uma vez por todas de militar para político. O Likud era um partido que advogava o expansionismo máximo de Israel, o “Grande Israel”, “do Nilo ao Eufrates”, se possível. A coalizão ultra-liberal e nacionalista chegara ao poder em decorrência do esgotamento da política dos trabalhistas, marcada pela derrota (vista como tal para maioria dos israelenses) na Guerra do Yom Kippur, em 1973, pelos escândalos de corrupção do governo de Yitzhak Rabin e pelo avanço do liberalismo até mesmo nos kibutzins (fazendas de trabalho coletivo). Com os likudistas no poder, liderados por Menachem Begin, a geoestratégia trabalhista forjada por Ben-Gurion de promover a invasão do Líbano voltava à tona. Esta geoestratégia compreendia uma aliança e apoio aos libaneses cristãos maronitas ultra-liberais, que eram refratários à entrega do poder aos libaneses “muçulmanos”, uma das causas da guerra que incendiava o Líbano desde 1975. O plano de ataque ao Líbano, contra qual Israel promovia raids aéreos desde 1968, só seria possível se fosse assegurada a “paz” com o maior exército árabe, o Egito. Em março de 1978, uma vez iniciadas as negociações que levariam à Paz de Camp David (EUA) com os egípcios, Begin ordenou a primeira grande invasão terrestre do Líbano (outra menor havia ocorrido em 1972 e foi rechaçada pelo exército libanês), que exterminou mais de 2 mil árabes (libaneses e palestinos) sem conseguir eliminar as forças da OLP (Organização para a Libertação da Palestina). O fracasso foi tão retumbante que ajudou a aproximar dois inimigos: a liberal OLP com o regime nacionalista da Síria de Hafez al-Assad. Para agravar a situação do “maximalista” Begin, uma das cláusulas do Acordo de Paz de Camp David (1978) e do Tratado de Paz de Washington (1979), com os egípcios, estipulava não apenas a devolução da Península do Sinai ao Egito, mas também o imediato desmantelamento das “colônias” israelenses naquela região. No inverno de 1982, Ariel Sharon, um dos mais fervorosos defensores do “colonialismo” e do expansionismo israelense, foi o encarregado desta tarefa. Pelo visto, ele ficou muito contrariado e determinado a derrubar ou, pelo menos, desmoralizar Menachem Begin (tal como fizera nos anos 1950 com Moshe Sharret) quando houvesse oportunidade, segundo o historiador israelense Baruch Kimmerling, autor de uma biografia nada complacente do general. Podemos afirmar que a invasão israelense do Líbano de 1982 foi o resultado do planejamento e ação de dois homens de origens distintas, mas unidos ideologicamente pelo ódio aos palestinos e pela defesa do Liberalismo (e, portanto, do racismo, do segregacionismo, do autoritarismo, do elitismo, da livre iniciativa e do Estado mínimo): Ariel Sharon e Bachir Gemayel, líder da milícia libanesa cristã direitista e ultra-liberal Falanges (originalmente fundada em 1936, sob inspiração do nazismo). Martírio libanês Bachir queria ser presidente do Líbano e expulsar as forças “estrangeiras” e “terroristas” do país (leia-se sírios e palestinos). Segundo o ex-chefe de segurança de Bachir, o sinistro Elie Hobeika, foi Bachir quem pediu pessoalmente a Ariel Sharon para que as tropas israelenses não invadissem apenas 40 km fronteira adentro do Líbano; era necessário que também atacassem e ocupassem Beirute, a capital do país, pois seria a única maneira de fazê-lo presidente da República. Ainda de acordo com Hobeika e o jornalista israelense Ehud Ya’ari, Bachir Gemayel não escondia de ninguém, muitas vezes em tom de zombaria, os planos de “transformar” os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, na zona sul de Beirute, num estacionamento ou num zoológico. Sharon, por sua vez, tinha planos muito mais ambiciosos. Por meio da ofensiva ao Líbano pretendia, ao mesmo tempo: expulsar os palestinos do País dos Cedros em direção à Jordânia para lá instalarem o Estado palestino, derrubando a monarquia hachemita, tradicional aliada de Israel; expulsar os sírios do Líbano para, assim, expulsar a URSS (tradicional aliada de Damasco) do Oriente Médio; desmantelar a resistência palestina à ocupação militar israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza; implodir o País dos Cedros em pequenos Estados fundamentados no exclusivismo étnico e confessional, à imagem e semelhança de Israel, mas sem poderio militar. A implosão do Líbano serviria de modelo para todo o Oriente Médio, é o que podemos depreender das ações no campo, uma vez que estes objetivos jamais foram declarados explicitamente por nenhum membro de governo israelense. Em 6 de junho de 1982, mais de 100 mil soldados israelenses, comandados pessoalmente pelo ministro da defesa (sic) general Ariel Sharon, invadiam o Líbano para de lá sair somente em maio de 2000, mesmo assim mantendo as Fazendas de Sheba’a sob ocupação até os dias de hoje. O objetivo oficial era expulsar a OLP para longe dos 40 km da fronteira líbano-israelense. Em 13 de junho do mesmo ano, a blitzkrieg alcançava Beirute. Ao longo de 70 dias, a capital libanesa foi cercada e ocupada pelas tropas israelenses lideradas por Sharon, com direito a corte de luz e água. Begin (o seu gabinete e o parlamento israelense) desconhecia os planos para o ataque a Beirute, o que lhe causaria um enorme desgaste político e queda inevitável de seu gabinete no ano seguinte. Enquanto a seleção brasileira de futebol fazia uma brilhante apresentação na Copa do Mundo da Espanha, a capital libanesa era martelada por bombardeios de saturação por mar, ar e terra, com bombas de diversos tipos: napalm, fragmentação, vácuo, fósforo branco, urânio empobrecido, disparadas sobre os civis indiscriminadamente. Somente no dia 10 de agosto de 1982, foram 19 horas de ataques ininterruptos sobre a capital libanesa para forçar a retirada dos palestinos do país. Nem mesmo a única sinagoga da cidade foi poupada dos bombardeios israelenses, sendo parcialmente destruída. Durante o cerco, Sharon tentou persuadir Yasser Arafat, líder da OLP, a levar a organização de volta para a Jordânia (de onde foi expulsa em 1970 pelo rei Hussein) e disse que, se a proposta fosse aceita, Israel “forçaria” o rei da Jordânia a abrir caminho para o grupo palestino. Somente com a presença de uma força de paz da ONU, liderada pelos EUA, foi possível a evacuação total das forças da OLP e das tropas sírias de Beirute, em 21 de agosto. Após a expulsão da OLP, Bachir Gemayel foi “eleito” presidente do parlamento libanês, cercado pelas tropas invasoras. Mas, em seu discurso de presidente “eleito”, revelava algo fora do script combinado com os invasores: ele se proclamava presidente de todos os libaneses e não apenas dos cristãos. Foi “convidado” a dar explicações, como um garoto de recado, a Begin e Sharon, em Nahariya, norte de Israel, em 1 de setembro de 1982. O encontro, que era para ser secreto para não revelar o profundo envolvimento de Bachir Gemayel com a invasão do Líbano e o arrasamento de Beirute, foi divulgado amplamente pelas rádios israelenses, não tardando a chegar a Beirute. Duas semanas após o encontro, Bachir morreu num atentado ao QG das Forças Libanesas (milícia “cristã” que congregava todas as milícias direitistas ultra-liberais, inclusive as Falanges), em 14 de setembro de 1982, promovido por um cristão membro da resistência à invasão, Habib Chatourni, em 21 de agosto. Não há dúvidas de que Israel, ao divulgar o encontro de Nahariya, tinha o objetivo de fazer que os opositores de Bachir (que não eram poucos mesmo entre a direita cristã) soubessem da cumplicidade do líder libanês com os invasores e o liquidassem sem a necessidade de os israelenses “sujarem as mãos”. Mais tragédia para os palestinos A sorte dos palestinos estava lançada. Sharon e os líderes das Forças Libanesas não perderam tempo em acusar os “terroristas” (ou seja, os palestinos) pelo assassinato do presidente “eleito”. Sem autorização do parlamento e do primeiro-ministro Begin, e sem esperar por uma investigação sobre o atentado, no dia seguinte à morte de Bachir, Sharon ordenou o ataque a Beirute Ocidental. O objetivo declarado era caçar os “terroristas” que supostamente assassinaram o presidente eleito. Logo chegando aos campos de refugiados de Sabra e Chatila, ordenou os membros das Forças Libanesas e do Exército do Sul da Síria para que entrassem nos campos e os “limpassem” da presença de “terroristas” supostamente escondidos ali. Em 72 horas de orgia de sangue sem precedentes até mesmo para os padrões do conflito até aquele momento, mais de 3 mil pessoas (homens, mulheres, idosos e crianças) e até cavalos foram assassinados pelo único fato de serem palestinos (ou supostamente, pois havia entre as vítimas libaneses xiitas e mulheres judias casadas com palestinos na época do mandato britânico). Homens, idosos e crianças foram esquartejados e/ou estripados antes de serem assassinados. As mulheres, grávidas ou não, idosas ou não, foram, em sua maioria, estripadas, esquartejadas e, sobretudo, estupradas antes de serem assassinadas, com fetos arrancados, se fosse o caso. O principal chefe dos comandos que invadiram Sabra e Chatila foi Elie Hobeika, então chefe de segurança de Bachir Gemayel. O objetivo não declarado do Massacre era provocar “choque e pavor” nos palestinos de maneira a forçá-los a fugir em direção à Jordânia, de onde deveriam derrubar a monarquia hachemita, aliada de Israel (tal como ocorrera com o Massacre de Deir Yassin, em abril de 1948, no curso da fundação do “Estado judeu”), afinal foi esta a exigência de Sharon enviada a Arafat nas negociações para a retirada da OLP. Houve clamor mundial pelo massacre nos campos de refugiados em Beirute (considerada pela ONU como genocídio), que derrubou o prestígio de Begin em Israel, obrigando-o a instalar a Comissão Kahan. Sharon foi demitido do ministério da defesa por recomendação da Comissão, que o responsabilizou pela autoria indireta da atrocidade. O veterano general, no entanto, permaneceria no poder como ministro sem pasta. Ele era tão popular, segundo o semanário brasileiro Veja, especialmente entre os judeus de mizrahins (de origem árabe) e sefraditas (de origem “oriental”), que não seria surpresa se ele fosse eleito primeiro-ministro de Israel, como previu a revista poucas semanas após a carnificina. Como resultado da visão distorcida da realidade do Líbano e do mundo árabe de Ariel Sharon, compartilhada pelos demais líderes políticos e chefes militares israelenses, a invasão do Líbano de 1982 revelar-se-ia em pouco tempo uma retumbante derrota para Israel, apesar dos mais de 20 mil árabes calcinados pelos bombardeios de saturação aos libaneses, palestinos e sírios, ao longo de 70 dias, excluindo as vítimas do Massacre de Sabra e Chatila. No entanto, todas as vitórias israelenses foram anuladas, uma a uma, pelo “reingresso” da Síria (apoiada pela URSS) no Líbano, a partir de 1983, para impor sua hegemonia na estabilização da crise libanesa. Os sírios conseguiram impedir que o País dos Cedros se tornasse um satélite de Israel ao fazerem Amin Gemayel, irmão e sucessor de Bachir na presidência do Líbano e na liderança da milícia Falanges, se reaproximar do presidente sírio Hafez al-Assad e anular de facto o Acordo de Paz israelo-libanês assinado em maio de 1983; ao expulsarem a OLP do Líbano, após os palestinos reconhecerem Israel nas duas Cúpulas Árabes de Fez (Marrocos, 1982 e 1983), ainda em 1983; e ao também expulsarem do Líbano, de forma humilhante, as tropas dos EUA e da França, que sob os capacetes azuis da ONU agiam como gendarmes de facto do presidente Gemayel, no início de 1984. Toda impunidade aos genocidas Como punição à tentativa da OLP em reconhecer Israel, que isolaria a Síria, Hafez al-Assad, no dia seguinte ao fim do conflito libanês, em 13 de outubro de 1990, impôs nada mais e nada menos do que o chefe dos comandos do Massacre de Sabra e Chatila, Elie Hobeika, como ministro dos Recursos Hídricos e da Eletricidade ao novo governo libanês, permanecendo no cargo até a quarta invasão israelense do Líbano, em 1996. A impunidade de Hobeika e dos demais autores do Massacre de Sabra e Chatila, além dos demais chefes milicianos que promoveram outras carnificinas na longa Guerra do Líbano, garantiria a impunidade de Ariel Sharon e a sobrevida de sua carreira política e criminosa em Israel. Duro opositor dos Acordos de Oslo de 1993, com base na lógica “terra por paz”, não perdia a oportunidade de combater a paz entre palestinos e israelenses. Mesmo que esta “paz” apenas legitimasse a subjugação dos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e as ocupações militares do sul do Líbano e das Colinas de Golã (território sírio). Portanto, a oposição de Sharon ao processo de Oslo foi apenas para desmoralizar, frente aos “maximalistas” ultra-direitistas israelenses, o então primeiro-ministro e líder trabalhista general Yitzhak Rabin, cuja conduta low-profile escamoteava a brutalidade de seu governo na repressão à Intifada (levante popular palestino anti-ocupação entre 1987 e 1993), na qual ordenou a quebra dos ossos dos manifestantes (homens, mulheres e crianças) e o uso de armas de fogo para assassinar quem arremessasse paus e pedras contra as forças repressivas. Rabin seria assassinado por um “colono” extremista israelense, em 1995, contrário à suposta devolução de terras aos palestinos em troca da suposta paz. Pelo desaparecimento da Palestina Visando um pretexto para esmagar definitivamente os palestinos, que se recusaram a aceitar as imposições dos EUA e de Israel nas supostas negociações de paz em Camp David, entre o então primeiro-ministro trabalhista general Ehud Barak e o líder da OLP Yasser Arafat no verão de 2000, Ariel Sharon, em comum acordo com o premier trabalhista, entrou na Esplanada das Mesquitas (em Jerusalém, sendo o terceiro lugar mais sagrado para os muçulmanos) acompanhado por seguranças fortemente armados, num verdadeiro ato de provocação aos palestinos muçulmanos. O plano macabro deu certo, os palestinos se rebelaram mais uma vez e Sharon, sempre brutal e muito popular, foi eleito primeiro-ministro em uma inédita eleição direta, em 2001, prometendo acabar com a chamada Segunda Intifada, desta vez, muito mais brutal e sangrenta em ambos os lados do que primeira. Se na Primeira Intifada a proporção entre palestinos e israelenses assassinados era de 10 para 1, com a Segunda Intifada (2000 – 2006), a proporção cairia para 3 por 1. Sharon, no entanto, já havia evoluído em sua geoestratégia “maximalista” e de eliminação do “problema palestino”. A partir de 2002, em total desprezo à proposta de paz saudita na Cúpula Árabe de Beirute (ou talvez em decorrência dela), após promover o Massacre de Jenin, na Cisjordânia, com o assassinato de dezenas de palestinos, ordenara a construção de um muro para separar os territórios palestinos de Israel, num aparente plano de desengajamento dos territórios palestinos ocupados. Mais uma vez o “desengajamento” não era mais do que uma falácia, apesar da retórica da mídia ocidental em defesa do muro em nome da “segurança” de Israel. Especialistas, tais como o geógrafo brasileiro Gilberto Rodrigues Jr., afirmam que o traçado do muro anexava mais territórios palestinos, sobretudo os mais ricos em recursos hídricos, separando famílias palestinas, impedindo-as de ir e vir. Em busca da “solução final” Na espiral de violência que impunha aos palestinos, na qual recebera luz verde dos EUA, sedentos de sangue após os atentados de 11 de setembro de 2001, Sharon realizava sua “guerra ao terror” criando a sinistra campanha de “assassinatos seletivos”. O primeiro alvo foi o líder espiritual do Hamas (a resistência islâmica palestina) xeque Ahmed Yassin, que era paralítico, bombardeado por um helicóptero, em março de 2004, logo seguido pelo assassinato do sucessor de Yassin, Abdel Aziz Rantissi, em abril do mesmo ano. Ao mesmo tempo, as tropas de Sharon confinaram Yasser Arafat em sua residência oficial em Ramallah, na Cisjordânia. Arafat só sairia da residência com saúde seriamente debilitada sob circunstâncias misteriosas, morrendo num hospital em Paris, em 11 de novembro de 2004, sob causas jamais esclarecidas. Acusações de assassinato do líder palestino não tardaram a aparecer nos diversos meios de comunicação, inclusive ocidentais, como no Le Monde Diplomatique. Sharon finalmente havia cumprido a missão de assassinar Arafat, como pretendia fazer no cerco a Beirute em 1982? De certa forma, o espectro da invasão de 1982 ainda assombrava o líder liberal israelense. Elie Hobeika ameaçava revelar a profundidade da participação israelense e de Ariel Sharon, sobretudo, no Massacre de Sabra e Chatila no Tribunal Penal de Bruxelas, mas foi assassinado pela detonação de uma bomba em seu carro, em 2002. No mesmo ano, seu motorista particular foi assassinado em São Paulo, no Brasil. Ambos os crimes são de autoria oficialmente desconhecida e deram o início a uma campanha de assassinatos de políticos no Líbano, que perdura até os dias de hoje. Não faltou quem apontasse Israel como autor destes homicídios. Quanto mais atrocidades Sharon cometesse contra os palestinos, sem qualquer reação internacional, mais aumentava a popularidade do veterano general em Israel. Foi reeleito facilmente para o cargo de premier, em 2003, e não perdeu tempo em atacar a Síria, pela primeira vez em 30 anos. A política genocida de Sharon era um complemento à invasão da coalizão anglo-australo-americana do Iraque, apoiada pelo Irã e Israel, que exterminara, até aquele momento, centenas de milhares de iraquianos. A contribuição israelense para a destruição do Iraque pela coalizão colonial anglo-saxã foi o envio de “assessores” militares aos “esquadrões da morte” curdos, no norte do país mesopotâmico. Em último ato de uma trajetória marcada por crimes contra a Humanidade, o veterano general ordenou a retirada dos 8 mil “colonos” israelenses que ocupavam a Faixa de Gaza, no verão de 2005. A “retirada” israelense obedecia a um cruel cálculo político: não era viável a manutenção de 8 mil sionistas fanáticos num pequeno território habitado por 1,3 milhão de palestinos hostis. O mesmo cálculo justificava a manutenção e ampliação dos “assentamentos” de mais de 500 mil judeus extremistas numa Cisjordânia habitada por 2,5 milhões de palestinos. Após o “desengajamento” da Faixa de Gaza, Sharon impôs um bloqueio por mar, ar e terra, em comum acordo com o então ditador egípcio, brigadeiro Hosni Mubarak. Portanto, a geoestratégia de Sharon era clara: o genocídio como “solução final” para os palestinos da Faixa de Gaza, enquanto que a limpeza étnica era a única solução possível para a Cisjordânia, denunciou o historiador israelense Ilan Pappé, exilado na Inglaterra. O bloqueio à Faixa de Gaza não foi uma retaliação pela vitória do Hamas nas eleições parlamentares de 2006, sob estritas leis eleitorais impostas pelos próprios israelenses, mas, sim, um resultado da lógica da racionalização do genocídio. Sem os “colonos”, Gaza era um campo aberto para ataques irrestritos dos israelenses. Somente em 22 dias de bombardeio ao pequeno território, na virada de 2008 para 2009, mais de 1.500 palestinos foram exterminados. Dois terços dos mortos eram civis. Lento e melancólico final Com o bloqueio, o pequeno território se convertera no maior campo de concentração já conhecido até os dias de hoje. Apesar deste cruel objetivo político, a “retirada” de Gaza foi vista pelos “colonos”, tão beneficiados por Sharon em toda sua carreira política, como ato de “traição”, e de herói dos fanáticos “maximalistas” o veterano general passou a ser execrado por estes. A mídia ocidental liberal logo o transformou num “estadista”, capaz de fazer grandes sacrifícios em favor da paz com os palestinos. Com os filhos acusados de corrupção, Sharon foi internado num hospital sob circunstâncias pouco esclarecidas e logo foi induzido ao coma por recomendação médica em janeiro de 2006. Pouco mais de 8 anos depois morreria. Seu funeral só teve o parco comparecimento de políticos internacionais decadentes. Nem mesmo o presidente dos EUA esteve presente, uma prova de que o general genocida nada mais era do que um capacho do império. O legado de Sharon não difere dos demais líderes israelenses: limpeza étnica e genocídio em larga escala contra os árabes, especialmente, os palestinos. Pois estes são os únicos meios pelos quais um Estado fundamentado no exclusivismo comunitário religioso pode sobreviver numa região marcada pelo pluralismo e pela coexistência étnico-confessional multimilenares. Portanto, não podemos estranhar que os mais importantes grupos armados do mundo árabe, encarnação dos piores pesadelos dos cidadãos israelenses nos dias de hoje, fossem resultantes (“dano colateral”) das políticas de Sharon para o Líbano e a Palestina ocupada: o Hizbollah, fundado em 1985, como resposta à invasão israelense do Líbano, e o Hamas, fundado em 1988, como uma resistência à política expansionista dos “assentamentos” nos territórios palestinos, iniciada por ele como ministro da Agricultura no governo Begin. O Hizbollah, liderando a resistência árabe (palestina e libanesa), após expulsar a ocupação militar israelense do sul do Líbano, em maio de 2000, repeliu a quinta invasão israelense do Líbano, em 2006, na qual mais de 1200 árabes foram exterminados. Trata-se, portanto, do legado de ódio de um liberal dedicado ao extermínio de um povo. Ramez Philippe Maalouf é Historiador (Uerj) e doutorando em Geografia Humana (USP) (Correio da Cidadania)

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