quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Drogas

O que não aprendemos com a “Lei Seca” estadunidense Júlio Delmanto O fracasso da “Lei Seca”, criada nos Estados Unidos em 1919 e responsável pelo surgimento do crime organizado no país, nos ensina muito sobre o proibicionismo O começo do século XX nos Estados Unidos foi marcado por uma dupla atuação dos grupos puritanos proibicionistas, como a Liga Anti-Saloon, a fim de, através da atuação internacional de seu governo em convenções e tratados, abrir caminho internamente para a consolidação da proibição de diversas drogas e a consolidação de um ordenamento jurídico que visava “proteger o indivíduo de si mesmo”, nas palavras de Thomas Szasz. A partir de convenções internacionais, os Estados Unidos difundem pelo mundo a necessidade de se controlar primeiramente o uso não medicamentoso e posteriormente qualquer uso de certas drogas, com enfoque primordial no ópio — substância importante no comércio exterior da então rival Grã Bretanha. Isto abriu caminho para que internamente fossem criadas legislações mais duras com os psicoativos, sendo neste caso o álcool o alvo primordial do “fervor puritano”, que consegue aprovar o Volstead Act, popularmente conhecido como Lei Seca, no ano de 1919. Estava inaugurado o crime organizado no país, como bem definiu Thiago Rodrigues. Em seu fundamental livro Política e drogas nas Américas, Rodrigues sintetiza bem este período: “A ilegalidade tornou possível o fortalecimento e a prosperidade das máfias. A exploração da produção e da venda clandestina de álcool dinamizou exponencialmente os negócios das ‘famílias’ criminosas judias, irlandesas e italianas, bem como potencializou as funções do Estado, já que departamentos e agências foram criados ou ampliados para que a fiscalização e a coerção fossem devidamente aplicadas. O Volstead Act proporcionou a proliferação de quadrilhas, prisões, armas, de mortes, de agentes federais, de juízes, promotores e de viaturas policiais. Enfim, havia boas oportunidades de lucro e emprego para os lados legal e ilegal da economia”. O consumo de álcool não diminuiu, e na esteira da proibição vieram o crime organizado, o crescimento absurdo do aparato estatal e do investimento público na coerção a este mercado, e o também enorme aumento no índice de problemas de saúde causados por substâncias vendidas sem o menor controle. A Lei Seca, promovida por uma minoria ativa e fanática e imposta opressivamente à maioria, como define Johnathan Ott, cai apenas em 1933, fruto de sua inexequibilidade e também por conta da crise de 1929, que fez com que os impostos de um comércio legal de álcool surgissem como fundamentais ao Estado estadunidense. Apenas quatro anos depois é que a maconha seria proibida, através do Marijuana Tax Act, lei que também tem relação com a crise de 1929. O alvo desta vez eram os mexicanos, estigmatizados como principal grupo consumidor de maconha nos Estados Unidos e detentores de empregos de baixa remuneração que, se antes do crack da bolsa eram pouco desejados pelos cidadãos estadunidenses, passaram a ser fundamentais nos tempos de New Deal. Como lembra Rodrigues, o fim da Lei Seca não dissipou a sanha proibicionista estadunidense, já que a “relegalização do álcool foi compensada com a inauguração da grande guerra estatal contra uma variedade muito maior de drogas. Se a campanha contra o álcool mobilizou amplos setores da sociedade, a luta contra outras drogas ilegais partirár preferencialmente de iniciativas estatais”. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos garantem a permanência dos órgãos internacionais de combate às drogas em Nova Iorque — situação que já vinha dos tempos da antecessora Liga das Nações mesmo com o país de Obama não fazendo parte dela — e também a hegemonia e propagação de seu discurso proibicionista. As lições dos tempos da Lei Seca foram, convenientemente, “esquecidas”. Até que hoje, no seio de mais uma pesada crise do capitalismo, importantes vozes do sistema começam a apontar que os ingressos de um comércio regulamentado de drogas pode ajudar na recuperação de Estados à beira da falência. Se milhões de vidas destruídas por mortes e prisões não servem de argumento, quem sabe esse não ajude a convençê-los do absurdo da profecia autocumprida do proibicionismo, como aponta o antropólogo antiproibicionista Edward MacRae: Na falta de um debate público e com a repetição de ideias falseadas, autoritárias e preconceituosas, tem-se operado uma desqualificação e demonização do usuário e do “traficante” (também tratado de maneira pouco matizada). O reducionismo dessa estereotipação ao encobrir alguns dos reais problemas estruturais da sociedade criando um inimigo imaginário, que tem sua utilidade na manutenção do status quo, acaba por aumentar a marginalização dos usuários assim como leva à cristalização uma “subcultura da droga” de pouca permeabilidade a agentes de saúde ou a representantes de qualquer tipo de discurso oficial. E, como uma profecia que cumpre a si mesma, isso leva à criação de novas ameaças à ordem e à saúde nessa sociedade. (Outras Palavras)

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