domingo, 19 de janeiro de 2014

Putas

Gabriela Leite lança Filha, Mãe, Avó e P. Gabriela Leite está soltando um livro sobre sua vida puta. É ontologia pura. Ontologia puta. Que ela pariu. O erotismo, o orgasmo, os lapsos de lucidez são parte dos comércios a afeto, a presentes ou a dinheiro. E espalhar erotismo é trabalho, é militância, é ativismo. Sempre há economia. Muitas economias. Ou então nem arrumem a casa, deixem a vassoura largada na porta e saiam pelas ruas, nossa casa é nossa rua – em linha reta. Ou fazemos as voltinhas, o chamego vale o feijão, a lambida vale o lero. Gabriela Leite (MILK) ferve. Uma entrevista com ela: “Trabalhadora do sexo é hipocrisia” Dom, 19 de Abril Gabriela Leite, criadora da ONG Davida, diz que seria bom que os nomes considerados palavrões se tornassem comuns e lança livro explicando por que, mesmo não precisando, decidiu ser prostituta. Hoje, aos 51 anos, há duas décadas dedicada às causas das trabalhadoras do sexo e criadora da ONG Davida, de onde surgiu a grife Daspu, ela lança seu livro de memórias. Filha, mãe, avó e p… (Editora Objetiva) conta a história desta decisão e os caminhos por onde ela passou, além de orientar suas “colegas” em relação à profissão. Martha Mendonça – revista Época A filósofa paulistana Gabriela Leite não precisava ser prostituta, mas decidiu que esta seria sua profissão. Hoje, aos 51 anos, há duas décadas dedicada às causas das trabalhadoras do sexo e criadora da ONG Davida, de onde surgiu a grife Daspu, ela lança seu livro de memórias. Filha, mãe, avó e p… (Editora Objetiva) conta a história desta decisão e os caminhos por onde ela passou, além de orientar suas “colegas” em relação à profissão. Casada, duas filhas e uma neta, Gabriela garante que não tem nenhuma vergonha de seu passado. Quando alguém pergunta, não hesita em dizer que é “prostituta aposentada” – mesmo sabendo que vai chocar seu interlocutor. Também não desaconselharia sua neta, caso ela quisesse seguir a mesma profissão. “Eu diria apenas que ela lutasse por seus direitos”, afirma. ÉPOCA – Por que você escreveu este livro? Gabriela Leite – Sempre quis escrever alguma coisa sobre o que já vivi. Acho que boas histórias merecem ser contadas. Há três anos recebi o convite da editora Objetiva e comecei. Demorei a entregar. Escrever foi dolorido, lembrar de certas coisas não foi fácil. ÉPOCA – Você não virou prostituta por dificuldades financeiras, mas, nas suas próprias palavras, “por curiosidade e pela vontade de fazer uma revolução pessoal”. Pode explicar isso melhor? Gabriela – Sempre gostei muito da noite. Meu pai foi crupiê profissional. Ele estava sempre elegante, esse glamour da década de 50 me impressionava. Quando eu era estudante, ficava num bar e via as meninas que frequentavam uma boate embaixo do hotel Hilton, em São Paulo. Achava muito charmoso, queria saber como era viver aquilo. No fundo, eu queria trabalhar na noite. Além disso, sou da geração da virada. Fui criada para casar virgem, mas depois inventaram a pílula, a liberdade começou e tudo mudou. Eu era uma bobinha, queria aprender mais. Achei que ser prostituta seria uma forma de conhecer muita coisa. ÉPOCA – Você alguma vez sentiu vergonha por ser ou por ter sido prostituta? Gabriela – Jamais. Não me sinto carregando nenhum estigma. No começo da vida na prostituição, senti o peso. Hoje gosto, tenho orgulho. No livro, não foi nada difícil escrever sobre prostituição. Saiu tão fácil quanto comer arroz com feijão. Difícil foi relembrar outras coisas, familiares, afetivas. ÉPOCA – O preconceito hoje é menor do que quando você estava na ativa? Gabriela – É menor, sim, mas ainda existe muita hipocrisia. Ainda querem manter a prostituta no escuro do mundo. Outro dia eu estava num bar e havia um senhor destes solitários, que fica puxando conversa com todo mundo. Eu estava com umas amigas e lá pelas tantas ele perguntou o que nós fazíamos. Respondi: sou prostituta aposentada. Ele levou um susto: “O que é isso, minha senhora? Se é verdade, não precisava ficar falando por aí! Hoje a senhora era uma mulher direita. Esconda o passado!” Mas é verdade que diminuiu bastante. As prostitutas das novelas são sempre amadas, como a Bebel da Camila Pitanga em Paraíso Tropical. Ela fez laboratório conosco para viver o papel. ÉPOCA – Esse personagem foi um marco para as prostitutas? Gabriela – Sim. Ela começou com um papel coadjuvante e virou a personagem mais querida da novela. As novelas brasileiras são muito importantes na formação cultural do país. Numa novela mais antiga, Laços de Família, a Giovanna Antonelli viveu a Capitu, uma garota de programa. Mas ela sofria demais, sabe? A Bebel era mais parecida com a realidade das prostitutas, que são alegres, irreverentes. ÉPOCA – Mas não existe uma tendência a se romantizar a vida da prostituta? Gabriela – O que existe são dois polos opostos: ou se romantiza ou se apresenta como pior do que realmente é. Ambos são falsos e não ajudam as pessoas a entender o que realmente é esta vida. ÉPOCA – Como suas filhas e sua neta encaram a sua exposição como prostituta e o lançamento do livro com suas histórias? Gabriela – Minha neta de 16 anos acha tudo maravilhoso, ela é uma fã da história e não tem preconceito. Já com as minhas filhas é diferente, houve altos e baixos. Eu as compreendo. Elas sofreram na escola. Elas eram o maior palavrão da sociedade, eram as filhas da p… Não foi fácil. Fui mãe solteira das duas. Não de clientes, mas de homens que eu amei. ÉPOCA – Se uma de duas filhas ou sua neta resolvesse ser prostituta, qual seria a sua reação? Gabriela – Eu diria a elas que, na baixa prostituição, as condições não são boas. Mas existe a alta prostituição, onde a situação é melhor e se ganha mais. Mais do que tudo, elas precisariam ser batalhadoras, como eu, que me dediquei à luta pelos direitos da classe. ÉPOCA – Por que você largou a prostituição? Gabriela – A militância me tirou do trabalho. Aos poucos eu tinha pouco tempo para atender os clientes e fui, naturalmente, me aposentando. Mas não foi fácil. ÉPOCA – Por quê? Gabriela – Foi um choque para mim. Eu morava na Vila Mimosa, região de prostituição no Rio. Saí de lá e passei muito tempo para lá e para cá com uma sacolinha, que era a minha mala. Lá dentro tinha umas roupas, calcinha, xampu, sabonete. Não tinha mais casa, não podia mais morar na zona se não estava mais na ativa. Então ficava em casa de amigas, viajava para formar associações e me hospedava onde podia, como hotéis baratos. Deixei minhas coisas no guarda-móveis e demorei muito a fixar residência de novo. A mudança me abalou muito. ÉPOCA – E seu marido? Quando vocês se conheceram, você ainda trabalhava como prostituta? Gabriela – Sim, nós nos conhecemos numa ONG em que ele trabalhava e me aproximei para parcerias ligadas aos direitos das prostitutas. Ele não demonstrou preconceito. Começamos meio de bobeira, depois é que foi ficando mais sério. Ele é muito especial. Não poderia ser outro homem. ÉPOCA – No livro, você fala dos mandamentos das prostitutas. Um deles é jamais se apaixonar por um cliente. Nunca aconteceu com você? Gabriela – Nunca. Eu até me divertia, podia ter prazer. Mas me apaixonar, jamais. Ter relação com um cliente é uma chatice. Mas há muitas profissionais que anseiam por um dia se casar com um cliente. O problema é que, na primeira briga, eles vão jogar na cara delas: “Se não fosse eu, você ainda estaria na zona”. Não dá certo. Homens são complicados, se sentem donos das mulheres. Eu me apaixonava por outros homens. Apesar de morar na zona, eu frequentava samba, gafieira e conhecia muita gente. ÉPOCA – Outro mandamento é não ter cafetão. Você nunca teve? Gabriela – Não. No começo eu era bobinha e um português chegou a se aproximar de mim, me convencer. Mas logo senti a pressão e fui embora. Imagina, ganhar dinheiro e dar tudo para outra pessoa que fica controlando sua vida e muitas vezes é violento. O ideal é ficar longe. Hoje oriento as prostitutas para isso e a grande maioria trabalha sozinha. Os ventos da libertação das mulheres chegaram à zona. ÉPOCA – No seu relato, você fala que há muitas prostitutas lésbicas. Arrisca alguma explicação para isso? Gabriela – Há quem diga que as prostitutas ficam de saco cheio dos homens. Ou talvez pareça que há mais lésbicas no universo das prostitutas porque há mais liberdade, menos preconceito, para expor as preferências sexuais. ÉPOCA – Quais são os seus preconceitos? Gabriela – Em termos morais, nenhum. Mas tenho preconceito com o politicamente correto, que limita o mundo, engessa as pessoas e crias definições simplistas para coisas complexas. ÉPOCA – Como a prostituta prefere ser chamada? Há tantos nomes. Gabriela – As minhas colegas das América Latina detestam ser chamadas de prostitutas ou putas. Gostam de “trabalhadoras do sexo”. No Brasil, também gostam de “profissionais do sexo”. Mas, na minha opinião, isso também preconceito. Seria bom é que os nomes considerados palavrões se tornassem comuns, sem a carga que têm hoje. Por exemplo: p… é um nome forte, sonoro. Gosto de ser chamada de p…, prostituta. Meretriz, então, acho lindo. ÉPOCA – Você teme as críticas ao seu livro? Gabriela – Outro dia um site falou do meu livro e, nos comentários, um leitor me xingou, disse que eu não valia nada. Por outro lado, recebi o email de uma mulher que achou o meu livro lindo. Está chegando às livrarias esta semana. Vamos esperar pra ver. (Esquizotrans)

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