domingo, 31 de julho de 2011

Comunicado!

N custa lembrar q esta é a 'última' postagem do início da semana.
Agora só quando voltarmos do interior da Bahia, no final de semana...

Vandré

Tenho lido muitos textos sobre o Vandré. Gostaria de colaborar com uma pequena reflexão.
Desconfio que está na hora de desconstruirmos mitologias, totens e tabús e darmos uma espiadinha na realidade. Converse com os contemporâneos que viveram no Chile na mesma época que o Vandré e poderá constatar que nem tudo ia bem com o poeta. Afeito ao consumo de cannabis & efluvios lisérgicos num país onde a esquerda no poder era extremamente conservadora no que diz respeito a experiências com as chamadas drogas, o cantor ia abastecer-se entre, os chamados pejorativamente de, "hippyes"que ficavam no parque a beira do rio Mapocho e que se encarregaram de depenar a casa do músico de seus eletro-eletrônicos, num Chile onde não abundavam sofisticados equipamentos de gravação, como os que trouxera da europa, gerando enorme cobiça por parte de seus companheiros de "viagem".
As pessoas perceberam que nada ia bem com ele quando saiu de carro pela Avenida Coatanera, uma espécie de Marginal Tietê dirigindo pela contramão até bater. A partir daí buscou-se uma solução negociada para o retorno de um dos maiores talentos da arte brasileira.
Ao exílio, as pessoas reagem como podem: Jango cunhou a melhor definição: "O exílio é uma invenção do diabo", Ferreira Gullar escreveu o Poema Sujo, Boal montou o Teatro do Oprimido e disseminou sua idéia mundoi afora. Glauber tentou filmar numa série de paises e viajava furiosamente como se fosse em busca de si mesmo. Para Vandré acharam a solução do retôrno, caminho adotado por tantos outros como Cacá Diegues, Chico Buarque, Gil e Caetano que sairam do Brasil pós AI-V para salvar suas peles. Vandré retornou, mais solitário do que nunca.
Ao invés de buscar explicações políticas para o Vandré, conversem com seus amigos e encontrarão razões mais humanas para o que ocorreu com o nosso grande artista. Sejamos generosos com ele, como seríamos com um irmão ferido e que precisa de afeto, não explicações comportamentais. Não basta colocar a culpa na ditadura, é preciso entender o Homem
Silvio Tendler
--

Paris

Chéri à Paris: Creche em greve
By
admin
– 13/06/2011Posted in: Posts
Buzz

“Quer ver o que estou escrevendo? Ainda não tem uma linha terminada. E se você ficar apertando as teclas, aí é que não sai nada, mesmo”
(Chéri à Paris, por Daniel Cariello)
- Louise, hoje você vai passar o dia inteiro comigo, a creche tá de greve. Já planejei tudo: depois do café, a gente brinca um pouquinho e você tira seu cochilo da manhã, enquanto eu tomo banho e escrevo a crônica do dia. Aí você acorda, come, a gente brinca e você engata mais uma soneca. Nesse tempo eu termino o que tenho que fazer e então a gente vai passear. Tá bom assim?
- Papa.
- Ótimo. Estamos combinados.
- Chegou a hora de ir pra cama.
- Unhéééé!
- Só um pouquinho, preciso trabalhar.
- Unhéééé!
- Bom, vou te deixar no seu cantinho enquanto eu escrevo a crônica de hoje.
- Unhéééé!
- Tá legal, tá legal. Vamos brincar, daqui a pouco eu acabo esse texto.
- Louise, a gente brincou à beça, agora você me deixa fazer meu trabalho, é importante.
- Pi pi.
- Você quer ir à varanda ver os piu pius?
- Pi pi.
- Ok, a gente vai dar bom dia pros passarinhos. “Oi, piu piu, a Loulou veio ver você. Vem cá, piu piu”.
- Cá, pi pi.
- Finalmente, acho que agora consigo começar a escrever.
- Unhééé!
- Mas o que foi, Louise?
- Unhééé!
- Quer brincar com seus cubos?
- Unhééé!
- Quer que eu leia um livro pra você?
- Unhééé!
- Quer que te pegue no colo?
- Unhééé!
- Ah, é mesmo, tá na hora de comer. Segura as pontas aí que vou preparar seu almoço.
- Papa!
- Senta ali um pouquinho pra fazer a digestão enquanto eu cuido das minhas tarefas.
- …
- Mas o que você está fazendo, Louise, tentando me escalar?
- …
- Quer ver o que estou escrevendo? Mas ainda não tem uma linha finalizada. E se você ficar apertando as teclas ao mesmo tempo que eu aí é que não vai ter nada mesmo.
- …
- Tá batendo palminha… Aposto que quer ver um vídeo. Atirei o pau no gato?
- Papa!
- Vamos cantar juntos: aaaaatirei o pau no ga-to-to…
- Legal, agora, berço. Isso, fecha os olhos… Peraí, que cheiro é esse? Vixe, tem que trocar sua fralda. Depois você volta a dormir, tá? Pronto, limpeza feita! E agora de volta pros braços de Morfeu.
- Unhéééé!
- Diacho.
- Loulou, vamos combinar uma coisa? Você fica sozinha um pouco e eu prometo que tento fazer minha crônica o mais rápido possível. Depois a gente sai pra passear.
- Papa!
- Muito bem, filhinha. Você é compreensiva.
Plaft!
- Unhéééééééééééééééééééé.
- Ai, meu Deus, caiu. Calma, Loulou, não é nada, foi só um susto. Nem machucou.
- Unhééé!
- Vem cá, vou te fazer um carinho. Depois eu volto pro meu texto.
- Papa!
- Louise, assim eu não vou conseguir nunca mais trabalhar.
- Papa!
- Eu sei que você quer brincar, mas nesse momento eu não posso.
- Papa! Papa! Papa!
- Ah, você não quer o papai, você quer papar. Mas já tá na hora do lanche?
- Papa?
- Agora você descansa um pouquinho, Loulou, porque senão essa crônica não sai.
- Pé!
- O que tem seu pé?
- Pé!
- Por que você tá tentando colocar o sapato? Quer ir passear?
- Pé!
- É mesmo, hoje a gente não colocou o nariz fora de casa. Vamos lá.
- Quer saber, tá impossível escrever qualquer coisa, a solução vai ser fazer hora extra de madrugada. Vou aproveitar para brincar com a minha filha. Louise! Louise, vem cá!
- …
- Ah, dormiu.

Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular daBiblioteca Diplô/Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui.
(Outras Palavras)

Palestina

Diário de uma activista na Palestina (5)


A lenta, cruel e injusta asfixia de Qalqilya - Ezbet Altabib

O calor é tanto que, a partir das cinco da manhã, é impossível ficar na cama. O campo acorda ao ritmo dos animais que convivem com os habitantes em espaços reduzidos. As ovelhas dos vizinhos começam a se manifestar . O galo e as galinhas, que povoam o primeiro andar de uma casa que parece estar em construção, juntam-se numa das paredes de cimento, observando os movimentos lentos de um gato. Todas as manhãs, o lixo é recolhido e as ruas desajustadas varridas. Todas as manhãs, passa a carriola do vendedor de pão que anuncia a sua passagem ao som de uma voz melodiosa. Os comerciantes tomam um café turco com cardamomo à porta das pequenas lojas.

Esta manhã, repartimo-nos em dois grupos e apanhámos táxis colectivos, em Beit Sahour, para irmos para Qalqilya - Ezbet Altabib. Quando chegámos a Ezbet Altabib, já havia um grupo de activistas internacionais e palestinos à nossa espera. Entrámos num pátio acolhedor e umas crianças ofereceram-nos café. O perfume do cardamomo acompanhou o pequeno discurso elucidativo sobre a situação em Ezbet Altabib. É sempre a mesma coisa. Espoliação de terras, construção ilegal do muro, destruição ilegal de casas, abuso de poder pelo exército, detenções arbitrárias e violência.


Hoje, vamos cortar a rede de arame farpado que define a futura passagem do muro. O avanço do muro tem vindo a ultrapassar os limites da linha verde e a incursão em território palestino é cada vez mais profunda, envolvendo vastos espaços vazios, zonas tampão, zonas de interdição, zonas militares fechadas, rompendo a paisagem, dividindo famílias, impedindo os camponeses de trabalharem as suas terras. No caso de Ezbet Altabib, o traçado do muro está planeado para ir até à entrada da aldeia.

O arame está profundamente enterrado e as ferramentas que tínhamos quebraram-se várias vezes. Chegaram vários jipes com soldados, alguns pela estrada de cima, outros pela estrada de baixo. Enquanto alguns activistas retiravam o arame, outros vigiavam os movimentos dos soldados. Como tem acontecido, frequentemente, a estratégia é de tentar cercar os manifestantes. No caso de ficarmos cercados, foi nos dito que devíamos correr pelo campo de oliveiras junto à estrada até à floresta de pinheiros mansos e, daí, regressar à aldeia.
Após muitas dificuldades, retirámos o arame farpado e fizemos recuar os soldados até à entrada da aldeia. Uma pequena vitória com sabor amargo, pois amanhã a luta continua!

GAP

Galeano

Caí do mundo e não sei como voltar - Eduardo Galeano
Criado em: 23/02/2011 15:45:58 por La lectrice
Categoria: literatura
Share | |
O que acontece comigo, que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte, só porque alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco?
Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos,pendurávamos no varal junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujas.
E eles, nossos nenês, apenas cresceram, tiveram seus próprios filhos e se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Entregaram-se, inescrupulosamente, às descartáveis!
Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem osdefeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, eu me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.
O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O queacontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.
Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!
É mais! Compravam-se para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.
E acontece que em nosso, nem tão longo casamento, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes.
Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar.
Nada se arruma, não se conserta. O obsoleto é de fábrica. Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viualgum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas: o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para os seleiros?
Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.
Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só víamos nas rodas dos carros e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava.
Desse tempo venho eu. E não que tenha sido melhor... É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram com "guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já tem um novo modelo".
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus! Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher, a mesma e o mesmo nome? Educaram-me para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Porque, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.

Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.

Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular poucos meses depois de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?

Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres. A terceira e a quarta para tudo o que não fosse toalha ou talheres.

E guardávamos... Como guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrigerantes!!! Como, para quê? Fazíamos capachos, colocávamos diante da porta para tirar o barro dos sapatos. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.

Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar isqueiros descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para isqueiros descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de fiambre, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.

E as pilhas! As pilhas dos primeiros radinhos transistores passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos bem se se devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim.

As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.

Os jornais!!! Serviam para tudo: como de forro para as botas deborracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisaspara enrolar. Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um embrulho de bananas. E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Cosmopolita era a marca de um fogão que funcionava com gás) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um val ete de espada que dizia "esta é um 4 de paus".

As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu sei o que nos acontecia: custava-nos muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis. Aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!

E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, nos disseram: comam o sorvete e depois joguem o copinho fora! E nós dizíamos que sim, mas, imagina que a lançávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as rolhas de cortiça esperavam encontrar-se com uma garrafa.

E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!! Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o casamento e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.

Mordo-me para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer! Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco fizeram eterno. Não vou dizer que aos velhos se declara a morte quando apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com gel no cabelo e glamour.
Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, semisturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar neste mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue...


Autoria atribuída a Eduardo Galeano, jornalista uruguaio, escritor de "As veias abertas da América Latina"
(Fonte???)

Nosso Beto

O ROTEIRISTA APRENDIZ

Este diálogo aconteceu dia 2 de setembro deste ano entre um PRETENSO CINEASTA de quase 100 anos e um EMPRESÁRIO mais jovem : 75 anos. Foi no próprio escritório do empres´pario,de onde amplas janelas mostravam o Recife como uma vista aérea.
O papo começa com uma dope de uísque Johnnie Walker,garrafa azul.
PRETENSO CINEASTA:O problema então é o financiamento da repressão como está no roteiro ?:
EMPRESÁRIO :Também.
PRETENSO CINEASTA :Para o senhor isso existiu ou não ?
Nada como um Johnnie Walker garrafa azul pra aproximar as classes. O EMPRESÁRIO sai da sua cadeira dele para o sofá onde estou.
EMPRESÁRIO: Sabe,cineasta: tive muitos pesadelos com a foice e o martelo girando sem parar. Parecia que a foice vinha cortar a minha cab eça. Bem, fica claro : ou a cabeça dos guerrilheiros, ou a nossa.
PRETENSO CINEASTA : Como nós estamos conversando agora , fica claro e evidente que as cabeças dos empresários ficaram nos seus devidos pescoços.
O EMPRESÁRIO nem riu nem ficou sério. Preferiu entornar mais uísque no copo dele e no meu.
EMPRESÁRIO : Vocês não entendem que nós,empresários, não agimos como seres individuais. Só nas licitações,concorrências e competição entre empresas. Na verdade somos um coletivo : representamos a massa que detém os meios financeiros da nação.O que construimos com tanto trabalho ia sustentar quem não gosta de trabalhar.
PRETENSO CINEASTA : o senhor sabe que acabou de citar um conceito de Marx no volume 1 de “O Capital”? Os capitalistas são suportes do capital. Eventualmente, se dividem na concorrência.O senhor leu o Capital de Marx ?
EMPRESÁRIO : Nunca li. Só leio Carta Capital.
E baixou a voz e a cabeça como se fosse contar um segredo pornográfico.Mas só saiu mesmo a velha e infame piadinha.
EMPRESÁRIO : Prefiro as velhas comédias com Groucho Marx.
Tentou rir e beber em um só lance e se engasgou. Engasgo complicado. E eu tive que meter a mão nas costas dele para não sair preso como o homem que matou o empresário. Mas me arrependi de não ter um punhal ou até mesmo a nordestina peixeira para acabar DE VEZ com o sofrimento do homem que se engasgou com Johnnie Walker azul.
PRETENSO CINEASTA : E financiamento pro filme tá difícil ?
EMPRESÁRIO : Vou consultar o pessoal do clube. Mas tem também o problema do Delegado paulista. Meu amigo, você exagera : peruca loura, beijando mão de travesti, dançando ciranda com guerrilheiros.
PRETENSO CINEASTA : isso tudo aconteceu. Eu era reporter de jornal e apurei tudo isso.
EMPRESÁRIO : E foi publicado?
PRETENSO CINEASTA : Não.A censura não deixou.
EMPREESÁRIO : Você que é hoje um homem de cinema assistiu o caubói”O Homem ue Matou o Facínora”?
PRETENSO CINEASTA : Grande filme.Um classico de Johnn Ford.
EMPRESÁRIO : Pois acho que é esse John Ford que diz :entre a verdade e a lenda,imprima-se a lenda. Você nem a lenda conseguiu imprimir.
Me lembrei de uma amiga : “que con versa indigesta! Mete logo uma tijnolada na testa!” E não era John Ford ,o director, que dizia a frase. Era o ator que fazia o papel do dono de um jornal.
EMPRESÁRIO: O delegado paulista não agiu de forma tão violenta assim como está no seu roteiro.
PRETENSO CINEASTA : O senhor sabe que é a primeira pessoa que diz que o delegado Fleury não era violento ? O homem que matou tanta gente e foi responsável pelo suicídio do Frei Tito, por ele torturado e humilhado?
EMPRESÁRIO : Ninguém induz outro a suicídio.
PRETENSO CINEASTA: Fleury era ou não violento9?
EMPRESÁRIO : Digamos que ele usava a violência de forma adequada, justa e pertinente.
Agora , com licença, vou ter que sair : tenho um compromisso. Lembre-se : isso tudo foi em off. E uma coisa : por que você usa tanto off em seu filme ?
PRETENSO CINEASTA : O senhor leu o meu roteiro ? Leu aqui,leu em casa?
EMPRESÁRIO : Conmfesso que não li.Não tenho tempo. Mandei um assessor fazer isso. Ele me deu um resumo com os pontos destacados na nossa conversa.
Um almofadinha entrou e chamou o empresário,lembrando o compromisso. Ao mesmo tempo, me convidou a sair: a entrevista tinha terminado,a sala ia ser fechada O empresário desceu pelo elevador privativo. O assessor desceu comigo no outro. Ao se despedir , pôs, delicadamente, a mão sobre o meu ombro.
ASSESSOR : Seu roteiro é muito bom. É forte. Só precisa de uns ajustes.
PRETENSO CINEASTA: Off demais não é ?
ASSESSOR : Saquei certo ?
Sacoiu bem a sua arma, canalha. Eu não estava diante do Homem Que matou o Facínora. Mas do facínora que matou o homem.
E ele se afastou para entrar no carro onde já estava o EMPRESÁRIO. O carro passou por mim e ele, O ASSESSSOR, fez um cháu simpatico. Eis aí um colega de future nesta invcenção sem futuro que é o cinema: : aprendendo a fazer roteiro lendo os que chegavam nas mãos do seu patrão. Breve,breve teríamos um novo roteirista e cineasta. Concorrente forte, com seus quase 30 anos e amizades influentes. Faria um filme com a rapidez do Goidard dos anos 60.E eu há um ano tentando viabilizar um filme. Por que fui me envolver com uim tema que causa engasgos e pesadelos de foices cortando cabeças ?Abestelhado.

Capitalismo

O Capitalismo de “Veja”-Fraga
Uma crítica ao engodo da ideologia neoliberal
Marco Antonio V. dos Santos
O capitalismo sempre precisou de arautos. O capitalismo sempre precisou de seus ideólogos, prontos a justificar o sistema e a ocultar a exploração. Justificar o sistema mediante, entre outras, a velha tática de propaganda de selecionar “casos de sucesso”. Tática velha que implica, necessariamente, ocultar a miséria que é sua contrapartida inevitável. Ocultar a miséria e a exploração, constitutivas do capitalismo, culpando aos próprios explorados pela sua exploração, pois não teriam dado “certo” como no caso dos exemplos escolhidos a dedo. A justificativa ideológica do capitalismo por esses seus propagandistas parece ainda mais atrativa quando eles se constituem, a si próprios, em exemplos maiores desses “casos”. De preferência, com a maior qualidade almejada por um capitalista: ser milionário. Assim seguem a revista “Veja” e Armínio Fraga [1] a elogiar o “Brasil novo” (pg. 62), obra cujos méritos eles civilizadamente dividem entre Fernando Henrique e Lula [2].
Com uma capa que se pretendia de impacto – um Clark Kent brasileiro abrindo sua camisa verde para transformar-se em Super-Homem, com um cifrão verde e amarelo no peito – mas que expressa apenas sua falta de criatividade (e a sua ideologia), “Veja” pretende apresentar a seus leitores a “supereconomia” brasileira. Na verdade, apresentar “lições de quem triunfou no boom econômico”, os novos milionários, aqueles a quem “Veja” nomeou seus “heróis” [3]. Tomar os milionários como representativos do país, ou mesmo das aspirações da população, eis a enganosa metonímia que a ideologia de “Veja” quer contrabandear como fato. A isso voltaremos adiante.
O “Brasil novo” de “Veja”-Fraga
Primeiramente é preciso não esquecer o passado. Armínio Fraga utilizando a expressão “Brasil novo” deve ser recalque ou saudade de sua própria trajetória. “Plano Brasil Novo” era o nome oficial daquele que ficou mais conhecido como Plano Collor I, o que confiscou a poupança e jogou o país em uma profunda recessão. Após seu fracasso, foi lançado o Plano Collor II, que contou com a valiosa colaboração de Fraga como Diretor da Área Externa do Banco Central em sua implementação. Isso mesmo. Já houve Collor e Fraga, antes de haver sua parceria com FHC. Mais de quinze anos depois a expressão farsesca retorna para novamente buscar celebrar a “modernidade” e o avanço do neoliberalismo...
Assumindo o método de iniciar com o geral para em seguida sermos capazes de analisar o específico ou particular, vejamos o seguinte parágrafo de Armínio Fraga. Poucos ideólogos poderiam resumir a ideologia neoliberal de forma tão condensada:
“Trata-se de um esboço de um Brasil novo, mais estável, globalizado e competitivo. Faz parte de um modelo de nação mais livre e aberta, que oferece uma alternativa de desenvolvimento viável se apoiado por um estado eficiente e justo” (pg. 62).
Salta aos olhos, antes de tudo, a quantidade de adjetivos. Vejamos como os ideólogos do capitalismo são bons de marketing. Capazes de vender geladeiras para esquimós, apregoam impunemente “liberdade”, “abertura”, “justiça”, “eficiência”, “competição”, “estabilidade”, utilizando-os todos quase como sinônimos, ou melhor, como decorrentes uns dos outros e, todos eles, do capitalismo. Do capitalismo em geral e do “novo” capitalismo brasileiro em particular. Na verdade, o capitalismo dos milionários, os valores dos milionários, a liberdade que o dinheiro pode comprar, a justiça para os ricos, a eficiência e a competição como eliminação de entraves para os seus lucros. Quanto aos lucros, é aqui que o véu cai e a luta de classes aparece explicitamente. É assim que acaba o artigo da “Veja” e com essa crítica concluiremos nosso artigo.
Mas voltemos a Armínio Fraga e passemos ao que nele é mais substantivo. Do que ele está falando quando menciona um “esboço”? Surpreenda-se, caro leitor. Para ele – é o próprio início do seu artigo – a grande novidade é o “espetacular boom do mercado de capitais no Brasil nos últimos anos [que] está revolucionando a maneira de pensar dos empresários brasileiros” (pg. 62). Esse boom cria uma “cadeia financeira inédita” e “extremamente poderosa” (pg. 62).
Quanto ao mercado de capitais, não o subestimemos. Fraga sabe do que fala. Deixou o Banco Central, em 1992, para trabalhar em Nova Iorque para o especulador-mor global George Soros em pleno crescimento da bolha especulativa dos anos 1990 nos EUA. Bolha especulativa no mercado acionário que constituiu a principal forma concreta na qual se manifestou a geração de capital fictício então. Bolha especulativa cujo estouro foi a gota d’água da recessão de 2001, cujas medidas para superá-la estiveram na raiz da bolha imobiliária que agora estourou, levando os EUA a uma nova recessão [4]. Após mais uma passagem pelo Banco Central, no segundo mandato de FHC, Fraga voltou ao mercado financeiro, como dono de uma gestora bilionária de fundos.
Vamos tentar quantificar esse “boom” da Bovespa comparando-o com as bolhas acionárias dos EUA de meados dos anos 1990. O gráfico abaixo compara essa evolução das bolsas no Brasil e nos EUA. Para isso, selecionamos os períodos mais recentes de aceleração da geração do capital fictício (as “bolhas” acionárias) nos EUA, a partir de 1995, até o menor ponto alcançado em sua desvalorização após a crise. No caso da bolsa de valores de Nova Iorque (Dow Jones Industrial Average, DJIA), março de 2003, e, para o Nasdaq (Nasdaq Composite), índice das empresas de tecnologia e principal foco da especulação, outubro de 2002. Em seguida, os pontos de cada bolsa foram transformados em índices, com base 100 no início de cada período, para facilitar sua comparação [5]. Selecionamos o período para a Bovespa de acordo com as mesmas regras e, não por coincidência, saiu-nos um período, ainda não terminado, que se inicia com o mandato de Lula e do PT, em 2003.

Quais conclusões podem ser tiradas dessa evolução das bolsas (Bovespa e Nasdaq), tão semelhantes entre si, na escalada de valorização fictícia? Em primeiro lugar, confirma-se o que Fraga chama de “espetacular boom”. Estamos inteiramente de acordo. Só queremos acrescentar um “detalhe”. Crescer em média 41,5% ao ano, por cinco anos, quase quintuplicando de valor, nos mostra claramente a geração de capital fictício que se manifesta na Bovespa nos últimos anos. Em segundo lugar, aponta para uma tendência ao estouro da bolha especulativa no mercado de ações no Brasil.
Já analisamos essa tendência do capitalismo das últimas décadas como constituindo “uma permanente e contínua sobreacumulação na esfera financeira de capitais que não encontram aplicação no setor produtivo à taxa média de lucro” (A crise do imperialismo expressa o agravamento de todas as suas contradições). A partir desse movimento resultam “sucessivas crises financeiras, ou melhor, uma crise financeira latente: tendência a uma crise financeira geral” (Luta de classes e crise do imperialismo).
O duplo caráter das ações
Isso nos leva a outro aspecto “esquecido” por Fraga: o duplo caráter, produtivo-fictício, do mercado acionário capitalista. Vejamos como ele define as ações:
“As ações negociadas nas bolsas de valores nada mais são do que pedaços do capital de uma empresa. Quem compra ações na bolsa o faz com a expectativa de obter um bom retorno, advindo da lucratividade e do crescimento da companhia” (pg. 62).
Essa é, para nós, uma questão fundamental. As ações são partes do capital de empresas assim como casas são feitas para moradia. Investidores em ações buscam receber dividendos da empresa da mesma forma que compradores de imóveis buscam solucionar o problema da casa própria. A análise do capitalismo que se limita às aparências mais evidentes e superficiais corre o risco de só chegar até os limites ideológicos e enganosos de “Veja”-Fraga, risco, aliás, para a qual nos alerta Marx por todo “O Capital”, o efeito de ocultação decorrente da produção capitalista para esconder “a verdadeira natureza da mais-valia e, daí, o verdadeiro mecanismo do capital”.
“A divisão do lucro em ganho empresarial e juros (para não falar da interposição do lucro comercial e do lucro no comércio de dinheiro, que estão baseados na circulação e que parecem originar-se de modo total e absoluto dela e não do processo de produção) completa a autonomização da forma da mais-valia, a ossificação de sua forma em relação a sua substância, a sua essência. Uma parte do lucro, em oposição à outra, separa-se completamente da relação de capital enquanto tal e se apresenta como se originando não da função de exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho assalariado do próprio capitalista. Em oposição, os juros parecem então ser independentes, seja do trabalho assalariado do trabalhador, seja do próprio trabalho do capitalista, como que se originando do capital como sua fonte própria e independente. Se, originalmente, na superfície da circulação, o capital apareceu como fetiche de capital, valor gerador de valor, agora ele se apresenta novamente na forma de capital que rende juros, como em sua forma mais estranha e peculiar. Por isso também a fórmula: “capital – juros”, como terceira para “terra – renda” e “trabalho – salário”, é muito mais conseqüente do que “capital – lucro”, à medida que no lucro, fica sempre uma lembrança, quanto à sua origem, de que, nos juros, não só é apagada, mas é colocada numa forma firme oposta a essa origem.” (MARX, Karl. O Capital, vol. III, tomo 2, São Paulo: Abril Cultural, 1983, pg. 279 – Os Economistas).
Como bem sabe Fraga, essa é a forma de atuação de “market makers” [6], “day traders” [7] ou, simplesmente, especuladores, cuja lucratividade deriva-se, fundamentalmente, da compra e venda sucessiva de ações, títulos de dívida ou qualquer outro ativo financeiro, com escassas preocupações com perspectivas de longo prazo. A partir de uma sobreacumulação permanente de capitais, que está na origem da crise e que cria a necessidade de sua valorização crescentemente fictícia, a ampliação dos capitais que buscam a bolsa gera uma elevada procura pelas ações e, consequentemente, resulta em tendência de elevação do seu preço. Exatamente esse movimento de especulação em torno das ações que resulta na sua valorização fictícia. Valorização fictícia que é produzida pelo descolamento que essa atividade especulativa acarreta entre preços de mercado em constante elevação e os “fundamentos”, ou seja, as condições reais da economia (nos termos de Fraga, “retorno”, “lucratividade” e “crescimento da companhia”).
Descolamento que também se observa quando do desinflar das bolhas, quando rapidamente se observam enormes queimas de capital fictício. Um exemplo bastante recente como ilustração. “Bolsas perderam US$ 5,2 tri em janeiro”, afirmou a Folha de São Paulo (FSP, B1, 09.02.2008) [8]. O jornal também busca traduzir essa enormidade em termos comparativos: “O valor perdido pelas Bolsas globais equivale a praticamente cinco PIBs ... do Brasil, que em 2006 foi de US$ 1,068 trilhão. Apenas os EUA, com US$13,195 trilhões, teve um PIB superior às perdas dos mercados no mês passado”. Ou seja, o valor das ações negociadas nas bolsas mundiais registrou, em um mês, perda maior que o valor de tudo o que o Japão (ou a China, ou a Alemanha, ou qualquer país isoladamente, exceto os EUA) produz em um ano inteiro.
Para o conjunto das empresas negociadas na Bovespa (e assim ressalvamos eventuais casos excepcionais como, por exemplo, o impacto de um campo de petróleo Tupi) é simplesmente risível a existência de um “milagre da quintuplicação dos pães”, modestamente explicado por Fraga como a “a expectativa de obter um bom retorno”. O que se viu na Bovespa nos últimos anos foi uma escalada especulativa, movimento que a atual crise internacional ameaça interromper. Em janeiro, o Ibovespa recuou aproximadamente 7%, tendo chegado a perder mais de 15% no meio do mês, que foi marcado por grande volatilidade, isto é alternância entre dias de crescimento significativo e dias de queda maior ainda. Ou mesmo forte alternância entre alta e baixa no mesmo dia.
Em resumo, o que queremos é ressaltar a importância de se entender o duplo aspecto produtivo-fictício dos investimentos em ações (ou casas) para que se possa: i) entender a situação do capitalismo, do sistema imperialista, nas últimas décadas, incluindo a crise atual e ii) romper com os limites da análise ideológica do capitalismo, ou seja, criticá-la radicalmente, com base na análise materialista marxista. Esse aspecto analisamos mais detidamente no artigo “O mais recente crash financeiro. Uma análise marxista-leninista da crise do imperialismo”, do qual foi tirada a citação abaixo, especialmente no item “A reprodução conjunta produtivo/financeiro-fictícia”. Ações e casas podem se tornar, para além de suas funções mais imediatas, instrumentos para a acumulação fictícia de capitais. Ações e casas passam a constituir, assim, ativos financeiros cuja negociação passa a ser um objetivo em si.
Além dos próprios bens concretos tornarem-se ativos financeiros negociados em mercado, uma enorme cadeia de produtos financeiros derivados desses ativos pode surgir.
Por exemplo, um indivíduo compra uma casa financiada no mercado hipotecário. O banco credor passa a ter, a partir desse financiamento, um fluxo de caixa representado pelos pagamentos mensais futuros que o indivíduo está obrigado a fazer por contrato, incluindo principal e juros.
A partir daí, utilizando modelos estatísticos sofisticados aplicados a finanças, o banco calcula o valor atual desse fluxo e o negocia com outra instituição financeira, recebendo no presente o equivalente às parcelas mensais dos 30 anos da hipoteca original. Como esse valor deve ser maior que o do empréstimo inicial, o banco já realizou lucro e pode usar esses recursos para fazer outro empréstimo (o que implica aumento da velocidade de circulação do capital).
A instituição que comprou passa a ser credora daquele empréstimo original e pode negociá-lo de forma similar. Com o tempo, produtos mais sofisticados foram surgindo, empacotando vários empréstimos originais (com características de montante, prazo e risco distintos) em um único novo produto e revendido tantas vezes que o detentor final (espalhados no mundo inteiro!) não fazia mais a menor idéia do que tinha comprado.
As vantagens dessas operações eram que cada detentor do produto final assumia uma pequena parcela do risco original e que podia ser gerada uma quantidade muito maior de financiamentos.
O que se provou a posteriori era que o risco não desaparecia e que uma inadimplência generalizada podia efetivamente fazer desmoronar todo o castelo de cartas.
Dessa forma, esses “produtos”, que se pode designar pelo nome geral de “derivativos”, estão na raiz da disseminação da crise que se iniciou no mercado imobiliário dos EUA e se propagou para os demais mercados financeiros, tanto nos EUA quanto no mundo inteiro, e deles para o “setor real”.
“seu efeito global é contraditório, pois ao tempo em que esse capital fictício poderia aumentar a capacidade de acumulação produtiva (investimentos) ou de consumo improdutivo (ampliando a demanda) do seu possuidor em seu aspecto de capital individualmente real, e com isso contribuir para ampliar a escala de reprodução (aumentar o crescimento), ele também resulta em uma nova opção de valorização por parte do capitalista”.
Além disso, Fraga menciona os impactos do boom na “maneira de pensar” dos capitalistas brasileiros, os “heróis” de “Veja”. Isso também é verdade, só que de uma perspectiva inteiramente diferente da presente no seu discurso ideológico. Dizemos presente no discurso porque ele sabe do que falamos, não só teoricamente, mas, principalmente, em sua prática diária, como capitalista.
Como afirmamos anteriormente, não há mais capitalista exclusivamente produtivo nem seu oposto, o exclusivamente banqueiro, especulativo ou como se queira chamá-lo. Como mostra Lênin, desde o início do século passado, o processo inerente e necessário ao capitalismo de concentração e centralização do capital levou à formação do capital financeiro, fusão, entre o capital industrial e o capital bancário.
O capitalista não somente “abre o capital” de sua indústria na bolsa como forma de concentrar capitais e ampliar a magnitude da acumulação como também aplica, investe em ativos financeiros, que representam, como diz Fraga “pedaços do capital de uma empresa”, especula com eles.
“O que é importante ressaltarmos nesse momento é que, uma vez consolidado esse processo, todo e qualquer capitalista individual passa a incorporá-lo, ou seja, passa a haver a reprodução conjunta produtivo/financeiro-fictícia de qualquer parcela individual de capital. Cada capitalista passa a reproduzir, conjuntamente, seu capital de forma produtiva e também fictícia. Não existe mais, a não ser na imaginação dos reformistas, a figura do capitalista industrial puro, contra o qual estaria oposto um puro especulador. Eles se interpenetram e, no limite, são um só. O capitalista industrial (onde existisse só com seu capital aplicado à indústria) é levado a, de forma crescente, aplicar suas sobras de caixa, seu capital de giro, em atividades financeiro-fictícias para aumentar a taxa de lucro global do seu negócio. Logo em seguida, não serão mais apenas as “sobras”, mas a própria decisão dessa repartição, acumulação produtiva/acumulação financeiro-fictícia, que será condicionada pelas condições da reprodução/rentabilidade financeiro-fictícia. A separação acima mencionada, ideológica, é a visão que os próprios capitalistas e seus defensores gostam de propagar de si mesmos, quando necessário” (O mais recente crash financeiro. Uma análise marxista-leninista da crise do imperialismo).
Para concluir esse item, um último e breve comentário sobre o aspecto real (impactos nos investimentos, na demanda) dessa valorização principalmente fictícia. Os ideólogos, com sua visão parcial, unilateral, poderiam argumentar que o que importa são os efeitos reais dessa valorização. Mas mesmo esses têm seus limites. Como exemplo, vejamos o efeito real dos seis anos de boom imobiliário dos EUA sobre a possibilidade de aquisição da casa própria, depois de iniciada (e ainda longe de terminar) a presente crise:
“O percentual de proprietários de residências caiu bruscamente de novo. Neste ponto, ele está de volta aos níveis do outono de 2001 ... tudo o que você ouviu sobre como os empréstimos subprime pelo menos tornavam o sonho da casa própria possível para muitos americanos que antes eram excluídos dele – não dê importância. Nós estamos de volta ao percentual de proprietários de residências de antes do boom dos subprimes” (Blog do Paul Krugman).
Outro exemplo, que permite avaliar também os efeitos desse período de crescimento principalmente fictício sobre os trabalhadores é levantado por Paul Craig Roberts:
“Estudos feitos por economistas do Economics Policy Institute relatam que em 2006, o dado mais recente, a renda de uma típica família norte-americana continuava US$1.000 abaixo do pico em 2000. Seis anos de “recuperação econômica” não foram capazes de recolocar a renda familiar média de volta em seu pico anterior. A combinação de endividamento massivo, perda de empregos para o offshoring, e recessão deve produzir um maior declínio no padrão de vida dos EUA” (Sem escapatória da guerra e do desemprego).
Capital Financeiro
Para Hilferding, o capital financeiro é o capital controlado pelos bancos e utilizado pelos industriais, enquanto para Lênin este conceito tem um significado mais lato, expressa o resultado do processo de concentração e centralização do capital em uma nova forma de capital, o capital financeiro.
“ ‘Uma parte cada vez maior do capital industrial – escreve Hilferding – não pertence aos industriais que o utilizam. Podem dispor do capital unicamente por intermédio do banco, que representa, para eles, os proprietários desse capital. Por outro lado, o banco também se vê obrigado a fixar na indústria uma parte cada vez maior de seu capital. Graças a isto, converte-se, em proporções crescentes, em capitalista industrial. Este capital bancário – por conseguinte capital sobre a forma de dinheiro –, que por esse processo se transforma de fato em capital industrial, é aquilo a que chamo capital financeiro’. ‘Capital financeiro é o capital que se encontra à disposição dos bancos que os industriais utilizam” (LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Obras Escolhidas em Três Tomos, Vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979, pg. 610).
Criticando a definição de Hilferding, Lênin vai mostrar que: “Esta definição não é completa porque não indica um dos aspectos mais importantes: o aumento da concentração da produção e do capital em grau tão elevado que conduz, e tem conduzido, ao monopólio. Mas em toda a exposição de Hilferding em geral, e em particular nos capítulos que precedem aquele de onde retiramos esta definição, sublinha-se o papel dos monopólios capitalistas. Concentração da produção; monopólios que resultam da mesma; fusão ou junção dos bancos com a indústria: tal é a história do aparecimento do capital financeiro e daquilo que este conceito encerra” (LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Obras Escolhidas em Três Tomos, Vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979, pg. 610).Para Lênin, o capital financeiro resulta do desenvolvimento do capital que leva ao monopólio, ao processo de fusão entre o capital bancário e o industrial em uma nova forma de capital, o capital financeiro.
Os “heróis” de “Veja”-Fraga
Já criticamos o aspecto mais geral do artigo de “Veja”-Fraga, sobre o chamado “Brasil novo”, impulsionado pelo “espetacular boom do mercado de capitais”. A realidade, que eles apresentam com lentes distorcidas, reflete no âmbito nacional o predomínio da valorização de capital fundamentalmente fictícia que a permanente sobreacumulação de capitais tem causado em nível mundial na prolongada crise do imperialismo. Vejamos agora seu argumento supostamente mais atrativo, o dos “milhares de novos capitalistas prósperos no Brasil” (pg. 55), os “heróis” de “Veja”-Fraga.
Como mencionamos no início, o argumento de “Veja” poderia ser assim resumido: depois de o Brasil deixar para trás o “atraso” (cujo marco político maior seria a plena conversão de Lula e do PT ao mercado [9]), com a “independência operacional do Banco Central e sua missão precípua de controlar a inflação”, com o “compromisso com a produção de superávits primários”, com a “atenção ao cumprimento dos contratos” e com a “crescente abertura da economia para o exterior” (pg. 56), só não é rico quem não quer. Basta ter uma boa idéia na cabeça, uma “sacada” (pg. 54), trabalhar bastante, ter perseverança e força de vontade e se chega lá. Assim, os novos milionários, os “heróis” de “Veja”, representariam a população e seus anseios. Na verdade, não é difícil perceber a mescla de ideologia barata, auto-ajuda e pensamento positivo, além de engodo puro e simples que esse “raciocínio” representa.
Comecemos pelo que supostamente embasa todo o “argumento” de “Veja”. De acordo com uma consultoria, o Brasil teria 190 mil milionários, dos quais 60 mil teriam se constituído enquanto tais em 2007 (pg. 57). Deixando de lado a primeira e óbvia pergunta de por que tais dados não foram obtidos das pesquisas anuais do IBGE, cujas informações estão disponíveis, são mais abrangentes, completas e confiáveis, segue um espanto maior ainda: então o número de milionários do Brasil aumentou quase 50% em um só ano? Vimos acima que a única coisa que sobe quase 50% ao ano é a Bovespa, inflada por investidores estrangeiros em busca de altos lucros especulativos.
Um parêntese para revelar os investidores estrangeiros
Já que mencionamos a Bovespa e os investidores estrangeiros, vamos quantificar sua importância para a bolsa e para o “espetacular boom do mercado de capitais no Brasil” mencionado por Fraga. De acordo com informações da imprensa, os investidores estrangeiros adquiriram aproximadamente três quartos de todas as novas ações lançadas na Bovespa em 2007, o que possibilitou que esse tipo de operação (conhecido como lançamento inicial de ações, ou IPO na sigla em inglês para Initial Public Offering) atingisse volume recorde de R$70 bilhões no ano (pg. 63). Esses investidores também responderam por mais de um terço de todo o movimento médio diário da Bovespa (FSP, B1, 07.02.2008).
A tabela abaixo mostra a surpreendente evolução dos investimentos estrangeiros na Bovespa. De acordo com estatísticas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o capital estrangeiro total passou de US$ 7,8 bilhões (R$ 27,4 bilhões), ao final de 2002, para US$ 165,7 bilhões (R$293,5 bilhões), em dezembro de 2007. Esse crescimento médio de 84,4% ao ano, em dólares (60,6% em reais, menor em função da apreciação do câmbio no período), durante cinco anos – superando a valorização da própria Bovespa, para a qual contribuiu substancialmente – atingiu nos primeiros cinco anos de governo de Lula e do PT a impressionante marca de mais de dois mil por cento! Ou quase mil por cento, quando considerada a evolução cambial.
Posição dos investidores estrangeiros na Bovespa
ano valor (US$ milhões) crescimento anual (%) crescimento acumulado valor (R$ milhões) [1] crescimento anual (%) crescimento acumulado
2002 7.769 - - 27.450 - -
2003 17.462 124,8 124,8 50.452 83,8 83,8
2004 26.188 50,0 237,1 69.515 37,8 153,2
2005 48.623 85,7 525,9 113.812 63,7 314,6
2006 82.994 70,7 968,3 177.440 55,9 546,4
2007 165.708 99,7 2033,0 293.519 65,4 969,3
Fonte: Informativo CVM (http://www.cvm.gov.br/)
[1] - Transformado em reais pela taxa de câmbio de final de período (venda).
Da mesma maneira que estimulam altas, os estrangeiros também determinam a queda da bolsa. Em janeiro, a necessidade de buscar cobrir perdas nas matrizes levou a fortes saídas de capital estrangeiro, R$4,7 bilhões, a “maior saída de recursos externos da Bovespa já registrada num único mês” (FSP, B1, 07.02.2008). Resultado: queda de quase 7% da bolsa de São Paulo nesse mês.
Como isso ainda é pouco, temos que nos lembrar do “estado eficiente e justo” de Armínio Fraga. No caso concreto dos investidores estrangeiros, essa “eficiência” traduz-se em incentivo concreto onde ele é mais bem sentido, no aumento dos seus lucros. Em 15.02.2006, Lula assina a Medida Provisória nº 281 (depois convertida na Lei nº 11.312, de 27.06.2006) [10] para reduzir “a zero as alíquotas do imposto de renda e da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF nos casos que especifica”. Quais seriam esses casos? Vejamos o art. 1º: “rendimentos ... produzidos por títulos públicos adquiridos a partir de 16 de fevereiro de 2006, quando pagos, creditados, entregues ou remetidos a beneficiário residente ou domiciliado no exterior” [sublinhado nosso].
Em português claro isso quer dizer que os capitalistas estrangeiros (e brasileiros que especulam a partir do exterior) não pagam imposto de renda, nem pagavam CPMF quando ela ainda existia, para usufruírem mais plenamente dos juros altos brasileiros. Simulando a situação de três investidores que tivessem realizado aplicações de um ano, a partir do dia da entrada em vigor da MP nº 281, teríamos:
1) investidor americano aplicando em títulos do tesouro dos EUA teria rentabilidade não superior a 4,5%,
2) investidor brasileiro aplicando em títulos do tesouro nacional teria rentabilidade de 14,2% e
3) o mesmo investidor americano do exemplo 1, aplicando no mesmo título do investidor brasileiro do exemplo 2, teria tido rentabilidade de 18,8%! [11]
É ou não é um exemplo de “eficiência” e “justiça”? Vejamos o resultado dessa benevolência do governo. A resposta dos investidores estrangeiros foi imediata. Haja eficiência desse estado para o “Brasil novo”!

Os absurdos continuam. Partindo de seu número inexplicável, uma verdadeira “multiplicação de milionários” [12] , pois em “cinco anos esse número aumentou 150%” (pg. 57), que soma bilionários como Antônio Ermírio de Morais com alguém que tem como meta “dentro de cinco anos, alcançar o seu primeiro milhão” (pg. 56), chega-se à invejável proporção de menos de 0,1% da população. Isso mesmo, apenas um em cada milhar. Bastante representativo, não é mesmo?
Não bastante essa, digamos, “flexibilidade” estatística (ver nota 11) e seu percentual de menos de 0,1% da população, “Veja” vai além e brada que esses números “podem ser tomados como indicadores de aumento da prosperidade geral do país” (pg. 57). Ideologia neoliberal barata em estado puro.
Em primeiro lugar, a noção de “prosperidade geral do país” [negrito nosso] é uma mera abstração, tal qual, por exemplo, o PIB per capita, em se tratando de uma sociedade de classes. Na verdade, enquanto o PIB per capita divide a riqueza somada dos habitantes do país pela sua quantidade, ou seja, é um conceito mensurável, a “prosperidade geral do país”, que “Veja” não define de nenhuma maneira, é inteiramente subjetiva.
Se, em um dado ano, o salário mínimo e a bolsa-família permanecessem sem aumento em relação ao ano anterior, mas os lucros bancários e das grandes empresas em geral crescessem nas taxas atuais e o comportamento da bolsa permanecesse como nos últimos anos, isso provavelmente aumentaria o PIB per capita, em função exclusivamente do aumento da renda dos mais ricos, embora as classes exploradas ficassem na mesma. Que dizer da “prosperidade geral do país” nessa hipótese?
Visto por outro ângulo, a ideologia barata de “Veja” fica ainda mais exposta. Basta não considerarmos como critério de “prosperidade geral do país” exclusivamente a riqueza dos milionários, mas outros indicadores, como os de educação e saúde, por exemplo. Onde está a “prosperidade geral do país” se os milionários vão para seus hospitais privados que mais parecem hotéis e as classes exploradas agonizam nas filas do SUS? O que há de “prosperidade geral do país” entre os filhos dos milionários que freqüentam as mais caras escolas privadas e os dos operários, camponeses e demais trabalhadores que concluem o ensino fundamental sem conseguir compreender a leitura de textos simples?
“Veja” prossegue acusando os críticos das virtudes de sua “multiplicação de milionários” de acreditar na “falácia tosca” da economia como um “jogo de soma zero” (pg. 57). Com isso pretende retomar o argumento de que seus milionários representariam a população e que, se eles estão aumentando, todos estamos "prosperando". Para não perder muito tempo com um argumento que já foi criticado acima, vamos nos limitar a reproduzir o gráfico abaixo [*], sobre a conseqüência do neoliberalismo, mesmo no principal país imperialista. O que cresce a partir do começo dos anos 1980 é a participação dos 10% mais ricos na renda total do país, excluídos os ganhos de capital. Basta saber matemática e perceber que esse crescimento se dá às custas dos demais...

Disponível em http://krugman.blogs.nytimes.com/2007/09/18/introducing-this-blog/
Passemos agora para a “seção” auto-ajuda e pensamento positivo do artigo de “Veja”-Fraga. Após elogiar a política econômica neoliberal – a política do imperialismo – e a “maturidade” do mercado de capitais, chega a hora de trazer para “primeiro plano, por estar mais à mostra do observador, ... a incrível vocação do brasileiro para aventurar-se no mundo como empresário” (pg. 56). Pior que essa só a categórica “milionários surgem pelo trabalho árduo” (pg. 57). Claro que o “trabalho árduo”, no caso, não é próprio... Como qualquer manual de auto-ajuda, essas frases caem no ridículo sozinhas.
Agora, a parte do engodo puro e simples
• “investimento em ações, o mais espetacular mecanismo de popularização das benesses do capitalismo já colocado de pé. Em 1993, antes do Plano Real, 43% dos brasileiros viviam na pobreza. Hoje são 30%” (pg. 58). Note-se, em primeiro lugar, que aqui já não é mais necessário o “trabalho árduo”. Em segundo lugar, é gritante que as bolsas de valores não reduzem a pobreza, ao contrário constituem sítio apropriado para concentração de capitais;
• “Trabalhadores, antes simples empregados, passaram a ser acionistas de empresas. Tornaram-se capitalistas, no lugar de proletários” (pg. 60). Em primeiro lugar, isso é um engodo completo. Em segundo, no exemplo concreto da Localiza (locadora de automóveis), os beneficiários da oferta de ações são definidos inicialmente como “funcionários” (pg. 60), depois “trabalhadores”, “simples empregados” ou “proletários”, para se mostrarem, no boxe da pg. 58, o que são de fato: “48 diretores e gerentes”;
• “A empresa vai à bolsa, capta recursos e passa a ser controlada por milhares de investidores” (pg. 61). “Veja” pateticamente ignora a diferença básica entre investidor e controlador. Não há um único caso de empresa brasileira listada na Bovespa que tenha não digamos milhares nem centenas, mas sequer algumas dezenas de investidores em seu conselho de administração. Na verdade, não existe mesmo uma única empresa brasileira negociada em bolsa cuja maioria das ações com direito a voto esteja sendo livremente negociada em mercado;
O engodo continua na seleção “criteriosa” dos exemplos de novos milionários. Vejamos.
• Um dos casos é o de um típico “filhinho de papai”. Como descrito por “Veja”: “Desde o seu primeiro emprego, ainda como estagiário, reservava religiosamente 40% do salário para investir em ações de empresas. Abriu mão de alguns luxos, como viagens em classe executiva” (pg. 56);
• Em seguida vem o proprietário de uma frota de helicópteros. Não há nada mais característico da concentração de renda do Brasil, da desigualdade entre as classes, do que a gigantesca frota de helicópteros de São Paulo, a segunda maior do mundo;
• Por fim, o caso que ridiculariza, por si, as teses de “Veja” do primeiro milhão e dos novos milionários. Basta transcrever a revista: “O sobrenome já avisa. O engenheiro agrônomo Marcelo Junqueira faz parte de uma das famílias mais tradicionais na produção de cana-de-açúcar no interior paulista. Em 2006, o empresário, de 38 anos, uniu-se a dois grupos internacionais para investir nesse setor. Eles fundaram a Clean Energy Brazil, que captou 440 milhões de dólares na bolsa de Londres para aplicar na aquisição de usinas” (pg. 61);
• O mais bem escolhido, no entanto, é o que abre a reportagem. Um vietnamita imigrante, fabricante de sandálias para exportação. Realmente seria difícil imaginar um texto mais ideologizado. O estereótipo é perfeito: luta contra todos os tipos de adversidades (risco de vida, imigração, língua, burocratas nacionais), perseverança e trabalho duro, melhoria gradual de vida e a “grande sacada”. Pena que seja apenas a exceção que comprova a regra da exclusão da maioria absoluta dos explorados e que serve aos aparelhos ideológicos para a manutenção de uma ideologia de self-made man.
Regressão a uma situação colonial de novo tipo e exploração da força de trabalho
O artigo de “Veja”-Fraga também menciona, ainda que brevemente, aspectos que são fundamentais para o entendimento da realidade brasileira recente se esta for analisada de acordo com o marxismo. São eles o predomínio do que chama de “atividades tradicionais como o agronegócio e a mineração” (pg. 59) e uma “economia mundial ainda sedenta por produtos e matérias-primas brasileiros” (pg. 56).
Esses dois aspectos devem ser analisados de maneira integrada, como integrantes de uma mesma análise da realidade atual da formação econômico-social brasileira. Essa análise já a avançamos em dois textos anteriores do CeCAC, “Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo” e “Aprofunda-se o processo de regressão”.
Por fim, a busca do aumento da taxa de lucro a partir do aumento da exploração da força de trabalho, dos trabalhadores. Eis como termina o artigo de “Veja”:
“Quando a economia brasileira se livrar das amarras da lei trabalhista dos anos 40, do pesado endividamento público e da burocracia infernal, o país será uma aposta ainda mais segura para milhões de milionários em potencial” (pg. 61).
Como acontece freqüentemente com os ideólogos, seu trabalho de esconder a realidade é, em geral, incompleto, e as autoras da matéria entregam o ouro no final. Na verdade, como é mais que evidente, trata-se de reduzir as conquistas trabalhistas para o país tornar-se ainda mais seguro para os “milionários em potencial”.
Nada que Marx já não explicasse e denunciasse. Vejam em “O Capital”, livro III, capítulo XIV, sobre a elevação do grau de exploração do trabalho e o pagamento de salários abaixo do seu valor como dois fatores fundamentais para aumentar a taxa de lucro dos capitalistas. Sua primeira edição é de 1894. Já faz 114 anos. Continua atual.
Notas
[1] “Veja”. Os heróis do capitalismo. 23 de janeiro de 2008, pp. 54-61. Disponível em http://veja.abril.uol.com.br/230108/p_054.shtml e Fraga Neto, Armínio. O capitalismo brasileiro, pp. 62-63 da mesma edição da revista. Disponível no site da revista apenas para assinantes, pode ser encontrado em http://arquivoetc.blogspot.com/2008/01/o-capitalismo-brasileiro.html. Ao longo deste artigo, vamos tratar esses dois textos como um só (o que são de fato, em termos analíticos). Assim, nas citações deles só se referirá à sua página. [voltar]
[2] Isso pode ser visto explicitamente quando “Veja” apresenta as causas da “mudança” pela qual o Brasil vem passando, fazendo questão de iniciar sua enumeração caracterizando o país como uma “economia que começa a colher os melhores frutos de mais de uma década de apostas corretas dos governantes” (pg. 56). [voltar]
[3] Para sermos justos com Lula, devemos lembrar que ele antecipou Veja-Fraga na definição dos seus “heróis”. Para quem esqueceu, Lula defendeu qualificar dessa maneira os usineiros de cana, explicitamente, em discurso na inauguração de uma fábrica da Perdigão. Discurso que começou assim: “Eu, se tivesse juízo, não falaria aqui”. Depois, a frase pela qual o presidente será sempre lembrado: “Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste País, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool” (http://www.info.planalto.gov.br/download/discursos/pr076-2.doc). Para não dizerem que nós somente criticamos Lula, somos obrigados a dizer que concordamos com a primeira das citações acima. [voltar]
[4] Nossa análise da atual crise econômica do capitalismo pode ser vista no artigo “O mais recente crash financeiro. Uma análise marxista-leninista da crise do imperialismo”, de 11.11.2007. [voltar]
[5] Mesmo assim, essa comparação ainda é imperfeita. Ao compararmos índices nominais, escapa-nos a inflação do período, maior no Brasil em relação à dos EUA, o que levaria a uma evolução real um pouco menor da bolsa brasileira, ainda que sua tendência fosse exatamente a mesma apresentada no gráfico. Outro aspecto mais técnico é que esses aumentos podem partir de patamares iniciais distintos, com uma bolsa tendo que crescer mais que outra para chegarem ao mesmo nível. Em geral se utiliza a relação entre o preço da ação e o lucro da empresa (P/L) como referência para saber se a ação está (ou não) “barata”. Assume-se que a Bovespa tem P/L menor que as americanas. Nada disso, no entanto, invalida o objetivo do gráfico, de apresentar o “boom” de Fraga e compará-lo aos das bolhas americanas. [voltar]
[6] Literalmente, os fazedores do mercado, investidores que conseguem influenciar os preços das ações (ou de qualquer outro ativo) na direção desejada, seja de alta ou de baixa, dado o volume negociado, seja por um investidor individual ou por vários em atuação coordenada. [voltar]
[7] Investidores especializados nas variações de preços de ativos no curtíssimo prazo, menos de um dia, algumas poucas horas ou mesmos minutos. O objetivo é se aproveitar de oportunidades para comprar a preços pouco abaixo do “normal” e vender logo em seguida, ao menor aumento de preço (às vezes provocados por eles mesmos!). Dessa maneira, seu capital tem uma altíssima velocidade de circulação, inflando o movimento das bolsas em seguidas operações. Nada mais distante da definição de Fraga. [voltar]
[8] Veja matéria do UOL: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u370753.shtml. O G1 também noticiou esse relatório da Standard and Poor’s: http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL291964-9356,00.html. [voltar]
[9] Como afirmam Reinaldo Gonçalves e Luiz Filgueiras, analisando o período pós-2002: “esse governo aprofunda um modelo de economia, sociedade e política ... que consolida e aprofunda os atuais padrões de dominação do país” (pg. 18) para, em seguida, mencionar o fenômeno que eles chamam de “transformismo” político promovido por Lula e pelo PT (pg. 19). Seguem os autores: “O transformismo do governo Lula se expressa no prosseguimento da política econômica implementada no segundo governo Cardoso ... e no reforço do modelo dominante. Lula e a aliança política que o elegeu adaptaram as suas ações, o seu programa e a sua política aos limites da disputa das diversas frações do capital. Eles mantêm em primeiro plano os interesses e a política econômica do capital financeiro” (pg. 28). In: FILGUEIRAS, Luiz e GONÇALVES, Reinaldo. A economia política do governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. [voltar]
[10] Para a MP, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Mpv/281.htm. Para a Lei, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11312.htm. [voltar]
[11] Claro que uma explicação se faz necessária. Em todos os casos assumimos, para simplificar, que a taxa de juros efetiva dos títulos era igual às taxas definidas pelos bancos centrais. No exemplo 1, ignoramos os aspectos tributários dos EUA, permitindo que a lucratividade ficasse maior que a real, já que apenas aplicamos essa taxa de juros ao valor inicial, o que não perturba em nada o exemplo. No caso 2, consideramos a CPMF reduzindo o montante disponível para aplicação e, sobre os juros acrescidos ao valor inicialmente aplicado, deduzimos 15% de imposto de renda. No caso 3, na ausência de impostos, a única consideração adicional foi considerar os efeitos da apreciação do real frente ao dólar. [voltar]
[12] O que “Veja” não diz é que não foi necessariamente a riqueza desses “milionários” que aumentou, já que o critério da revista vai mudando com o tempo, apesar de parecer o mesmo. Diz a revista “ser milionário é ter uma poupança equivalente a 1 milhão de dólares” (pg. 55). O que ela não diz é que, além da inflação velha conhecida, que acumulou pelo IPCA 33,9% nos cinco anos mencionados, fazendo os reais de 2007 valerem apenas dois terços dos de 2002, há também a depreciação do dólar. O dólar perdeu valor frente ao real, 49,9% desde o final de 2002 até o final de 2007. Considerando esses fatores, a conta real seria mais ou menos assim. Em 2002, para entrar no clube dos “heróis” de “Veja” seria necessária uma poupança de R$ 3,5 milhões (equivalentes a US$ 1 milhão à taxa de câmbio de R$ 3,5/US$). Já em 2007, bastaria R$ 1,8 milhão (pois a taxa de câmbio se reduziu para R$ 1,8/US$). Só que esse R$ 1,8 milhão, se considerado a valor constante de 2002, ou seja, corrigindo para a inflação de 33,9% do período, seria equivalente a R$ 1,3 milhão. [voltar]
[*] O gráfico foi extraído do blog de Paul Krugman, cujo título, homônimo de um de seus livros - A Consciência de um Liberal - expressa seu posicionamento político. Sentimo-nos na obrigação de traduzir e reproduzir o trecho abaixo, no qual Krugman fornece uma explicação para os nomes dados a cada período assinalado no gráfico:
“O gráfico mostra a participação dos 10% mais ricos da população norte-americana na renda total – um indicador que segue de perto outras medidas da desigualdade econômica – sobre os últimos 90 anos, como estimado pelos economistas Thomas Piketty e Emmanuel Saez. Adicionei títulos para indicar quatro períodos principais. São eles: A Longa Era Dourada (The Long Gilded Age); A Grande Compressão (The Great Compression); Estados Unidos da classe-média (Middle class America) e A Grande Divergência (The great divergence)". Para uma explicação do autor sobre o significado de cada época, acesse o blog. [voltar]
Clique aqui para abrir a versão editada para impressão, em formato pdf
Esta página encontra-se em www.cecac.org.br

sábado, 30 de julho de 2011

Índios

Histórias de índios

THAIS CARAMICO

Todas as histórias levam a gente para um lugar mágico, nos fazem sonhar. Mas quando se trata de animais misteriosos da natureza, lendas, mitos das florestas contados e recontados por velhos sábios, e ensinamentos sobre o universo que somente os povos indígenas, dentro de suas aldeias, sabem passar, parece que é tudo mais interessante. É que, de fato, essas florestas existem e, muitas vezes, os super-heróis dali são reais!
Livros escritos e ilustrados por índios são cada vez mais comuns. Há grupos de autores envolvidos em levar para todas as sociedades, a rica cultura indígena. E, apesar de as histórias serem centenárias, há agora um interesse maior nesse gênero da literatura. É só reparar na biblioteca do seu colégio ou nas prateleiras das livrarias!
Na reportagem de hoje, o Estadinho mostra uma entrevista com o escritor Daniel Munduruku e outra com a artista Vãngri Kaingáng. E ainda conta a lenda da crianção de um povo indígena, além de dar dicas de livros.
Para ler a matéria completa, clique nas páginas abaixo. Feito isso, conheça melhor a história das obras selecionadas e visite um portal indígena, feito especialmente para crianças.

[...]
(Literatura Indígena)

Suassuna

Urariano Mota: Conversando com Ariano Suassuna
Esta entrevista se frustrou em 1989. Anotada um ano depois, em 1990.
Conversando, Ariano Suassuna nada tem de ariano. Conversando, Ariano é um brasileiro mestiço. Conversando, a sua referência passa ao largo das antiqüíssimas gentes do tempo dos vários Afonsos e de Dom Sebastião. Conversando, a referência de Ariano é coisa mais recente, tão recente que talvez seja moderna, e de um recente tão plebeu, que talvez seja inconveniente lembrar tal referência a um acadêmico: tudo o que Chico Anysio, Lima Duarte e Rolando Boldrin tentam fazer na televisão, conversando, há muito Ariano vem fazendo: ele é um humorista narrador de casos, ajeitados à feição de vivíssimos causos. Ele é um showman sem smoking, metido em roupa de caroá, ou em calça e camisa de brim cáqui.

Um dia chegamos para entrevistá-lo, ao fim do horário de suas aulas na universidade. Isso foi há mais de quinze anos. Ele foi logo dizendo que tinha desistido da entrevista, acertada antes. Sentamo-nos então em um banco de pedra, no pátio da Escola de Artes.

- Não, não adianta. Eu não sou mais menino. Falo com pureza d’alma. Falo com o coração na mão: essa entrevista não pode mais sair.

E como a entrevista não mais podia sair, sem gravador, Ariano deu início a uma conversa de quase duas horas. Cruzando as pernas no brim cáqui.

- Gorbachov é um negócio interessante. Eu sempre sonhei com o dia em que o cristianismo entrasse na União Soviética. Aí, chega uma repórter agora e me pergunta sobre a abertura na União Soviética. Ela pensava que eu era favorável. É que as pessoas pensam que como a gente está ficando velho, pensam que além de velho eu estou ficando reacionário. Eu respondi: “minha filha, eu queria um novo socialismo, não era a volta do capitalismo não”. Esse Gorbachov está fazendo o tempo voltar para trás. Não é?

- É um negócio danado. Antes de 64 eu tinha uns pegas com os comunistas aqui na universidade. Mas era um pega cultural, de ideias. Eles pegando a estética pela economia, e eu pegando a estética sem muita economia. Era mais ou menos isso. Então vem o golpe militar. Mas eu tinha amigos comunistas, um até bom ator, trabalhou numa peça minha, eu tinha a maior afeição. Então a minha casa virou abrigo para alguns desses amigos. A polícia não iria nunca procurar esses perigosos vermelhos em minha casa, não é? Aí vejam que coisa interessante acontece. Eu já estava com um comunista escondido lá em casa, quando me aparece mais um, querendo se esconder. Então ficou o primeiro vermelho, por trás do segundo, a fazer sinal para que eu não aceitasse mais um comunista em minha casa...

- Pois foi esse mesmo, o primeiro, que me deu uma lição, temerária, sobre os riscos e forma de viver. Houve um dia em que prenderam a mulher dele. Danou-se, eu me disse. Eu fiquei meio preocupado. Eu fiquei acabrunhado. Aí ele chegou pra mim: “Está com medo, Ariano?”. Vejam só a minha situação. Eu na minha casa, e sem poder ficar com medo. Ele me pegou nos brios. Aí eu me lembrei do que minha gente dizia, lá na Paraíba. E respondi: “Meu amigo, eu não conheço ninguém muciço” (macizo). Não é? Pois ele nem com essa resposta se abalou. Virou-se pra mim e disse: “Pois para mim, a morte é apenas um pequeníssimo incidente na roda da história”. Eu fiquei assim... danou-se. O que pra mim era a coisa mais importante, a minha própria morte, na roda histórica era nada. Não é danado?

Aí, a essa altura, a gente não sabe se Ariano Suassuna criou o seu personagem, ele próprio, Ariano, ou se o seu personagem criou o narrador de auditório, Ariano. Conversando, ou melhor, somente ele falando, parece que conversa, porque ele narra de um modo que nos mergulha no meio da sua narração. Ele gera a ilusão da conversa pela comunhão, até mesmo pela cumplicidade, com os fatos narrados.

Ariano, “conversando”, é ator de picadeiro sem trejeitos ou caretas, que substitui pelos movimentos da voz, pelas inflexões na fala, pela escolha de palavras chãs, pelo rasgo de olhos pícaros que nos fitam, acompanhando o efeito das armadilhas que lança. Ele narra nesse ator – ele próprio - pela ambientação que situa uma ambientação absolutamente econômica de cenários, cenários só personagens, e, o que reforça a ilusão de conversa, ele aparenta ser também ouvinte, quando na verdade faz pausas de radar, para ver como se refletiram aqueles sinais que lançou.

- Eu tenho muita simpatia pelo mentiroso...

Refletimos um sinal, porque comentamos, rápido: “García Márquez disse uma vez que todo escritor é um grande mentiroso”. O radar pega o reflexo de volta, ainda mais rápido:

- ...É? Eu não conhecia isso. É interessante... Pois eu tenho a maior simpatia pelo mentiroso. Eu tenho pelo seguinte: o homem que é mentiroso por vocação é um inconformado. Ele é um inconformado com o que o cotidiano não deixa acontecer. Eu acho que ele dá vazão a uma verdade que às vezes é só dele, que muita gente não viu. Eu acho que foi isso o que García Márquez quis dizer, não foi?

A platéia consente. A “conversa” se estabelece.

- Em Taperoá tinha um mentiroso que era meio violento. Ele viu uma vez um sujeito morrer com uma facada. Olhe, um mentiroso ver um sujeito morrer, e de facada, já é dose demais pra sua imaginação. Ele viu e depois começou a contar do jeito dele, na feira da cidade, e começou a juntar gente. E ele solto no meio do povo. O defunto já havia morrido duas vezes, levado oito, nove facadas, já havia derramado sangue por três homens, e o povo atento, pra ver aonde ia parar o rio de sangue. A cada pergunta ele respondia com mais uma coisa, um detalhe, cada pergunta era uma deixa para o mentiroso variar. Mas pra desgraça dele apareceu uma testemunha do crime. Aí a testemunha interrompeu o contador da história e lhe disse: “Olhe, não foi bem assim não. O homem morreu foi com uma facada, de uma só vez”. Aí o contador da história se voltou. Vejam só que lição, que negócio interessante. O contador virou-se com raiva e disse: “Você tinha nada que me desmentir? Você tinha nada que estragar a minha história no meio do povo? Me digam uma coisa”, aí ele já falou para as pessoas em volta, “me digam uma coisa: do jeito que estava a minha mentira, do jeito que eu contava, não era mais bonito que essa verdade de uma facada só?”. E o povo concordou com o mentiroso. Não é? A mentira dele tinha mais beleza.

Não é? Essa verdade, digamos, essa reflexão moral, expressa num ato de gente de cara e dente, é função do artista, de artista. É do ofício. Em lugar de uma dissertação, uma ação. Em lugar de uma discussão filosófica, um movimento de gente. Gente com idéias, com conceitos, ainda que analfabeta, pasmem os equívocos. E mostrar gente sem instrução formal, expressando à sua maneira idéias civilizadas, é escolha de um só fio. Daí, duas ou três coisas: 1 – Em Ariano mesmo, conversando, existe essa contradição do complexo, o pensamento mais elaborado, e da formulação desse complexo em língua que se ouve na cozinha da nossa casa. Seria, para ele mesmo, motivo e nome para mais uma peça do gênero farsa, algo como “o raso falso”, ou “o raso e o profundo”. 2 – Daí que Ariano tenha se dado mal em liderar, gerar movimentos com idéias, alucinações, que estavam transformadas, bem situadas no teatro de Ariano Suassuna. Um criador não cria um movimento coletivo, mas um movimento faz avultar e cria seus criadores. 3 – Na eleição dos personagens da terra nordestina, nessa escolha só fia quem chegou a este ponto por uma cultura que não é só da terra.

- A minha revelação como autor de teatro foi García Lorca. Quando eu li García Lorca pela primeira vez, eu descobri o meu caminho como autor. Me deu um baque. Não é que eu fosse fazer o que Lorca fez – disso eu já sabia. Mas o teatro de Lorca, aquele universo, tinha coisas que eu sentia como uma coisa que eu conhecia – vejam vocês, um autor espanhol, com um acento trágico, revelando o meu caminho de autor do Nordeste do Brasil. Havia coisas parecidas comigo. Então eu me disse, “é isso !”. Depois vieram outros autores, outras influências, não é? E a roda da história girando.

- Quem me deu Lorca para ler foi Hermilo Borba Filho. Hermilo foi uma espécie de guru, para mim e para a minha geração. O Teatro do Estudante, os meus primeiros trabalhos, têm muito a ver com essa relação muito rica que eu possuía com Hermilo. Eu devo muito a Hermilo.

Fora de tempo e oportunidade, sem acompanhar os sinais do radar, nós lhe perguntamos sobre o Movimento Armorial, sobre a monarquia... Ariano abre os braços, queixa-se de cansaço. A noitinha vem chegando ao campus. Por razões inesperadas, o que para um repórter é aquilo que não faz parte da agenda, não percebemos que a negação da entrevista era uma negação mentirosa. Naquela hora, naquele instante, não notamos, pois que voltávamos para casa com uma dupla frustração, burros duas vezes: o famoso criador, o mito Ariano Suassuna era muito, muito simples, vale dizer, quase um homem sem importância; a entrevista, que ele nos concedera como uma palestra, sentado em um banco de pedra, sem gravador, era como se não houvesse acontecido. Muitos anos depois, acordamos.

O raso era profundo. Caímos na conversa de Ariano.
(vermelho.org)

Hemingway

50 anos sem Hemingway: “Paris é uma festa”
Segue trecho do livro no qual o escritor Ernest Hemingway estava trabalhando semanas antes do suicídio. Revivia dias alegres da sua juventude na França. Publicado postumamente em 1964, o livro inspirou muitas gerações de jovens a se tornarem jornalistas.
“Eu era muito tímido quando entrei na livraria pela primeira vez, não tendo dinheiro sequer para me inscrever na biblioteca de aluguel. Sylvia me disse que eu podia pagar o depósito quando tivesse dinheiro, preparou o meu cartão e encorajou-me a levar quantos livros quisesse.

Não havia motivo para que ela confiasse em mim dessa maneira. Não me conhecia, e o endereço que lhe dei, rue Cardinal Lemoine, nº 74, não podia ser mais pobre. Mas ela foi cordial, encantadora e amabilíssima. Atrás dela, em toda a altura da parede e estendendo-se para a sala dos fundos, que dava para o pátio interior do edifício, havia estantes e mais estantes carregadas do tesouro da biblioteca.

Comecei com Turgueniev e tomei os dois volumes de A Sportsman's Sketches e um dos primeiros livros de D. H. Lawrence, creio que Filhos e Amantes. Sylvia disse-me que levasse mais livros, se eu quisesse. Escolhi a edição de Guerra e Paz preparada por Constance Garnett, e O Jogador e Outros Contos, de Dostoievski.

- Você não voltará tão cedo se for ler tudo isso, disse Sylvia.

- Voltarei para pagar - respondi - Tenho algum dinheiro no meu apartamento.

- Não me referia a isso - disse ela - Você pagará quando lhe for conveniente.

- Quando é que Joyce costuma vir aqui? , perguntei.

- Quando vem, em geral é no fim da tarde – disse ela. - Você não o conhece pessoalmente?

- Já o vimos no Michaud, comendo com a família - disse eu. - Mas não é delicado olhar as pessoas quando elas estão comendo e, além disso, o Michaud é caro.

- Você costuma comer em casa?

- Agora quase sempre - disse eu. - Temos uma boa cozinheira.

- Não há restaurantes perto de onde você mora, não é?

- Não. Como é que sabe disso? – perguntei.

- Larbaud viveu por ali - disse ela. - Gostava muito do bairro, exceto por isso.

- O lugar mais próximo, onde se pode comer bem e barato, fica além do Panthéon.

- Não conheço esse bairro. Nós também comemos em casa. Você e sua mulher devem aparecer uma noite dessas.

- Espere até ver se eu Ihe pago - disse eu – Mas muito obrigado pelo convite.

- Não leia depressa demais - disse ela.”


(vermelho.org)

Benedetti

Mário Benedetti, poeta uruguaio, nasceu em 14 de setembro de 1920 em Tacuarembó. Em 1945 integrou a redação do semanário Marcha e, em 1949, publicou seu primeiro livro de contos ,“Esta Manãna”. Um ano mais tarde aparecem os poemas Sólo Mientras Tanto. Em 1960, sua obra alcança transcendência internacional. É um clássico da literatura contemporânea. Sua morte em 17 de maio de 2009 deixou imenso vazio. Seu poema “Classe Média” inaugura a seção de Clássicos do Prosa, Poesia e Arte
Classe Média

meio rica
meio culta
entre o que crê ser e o que é
media uma distância meio grande
Do meio mira meio mal
os neguinhos
os ricos os sábios
os loucos
os pobres
Se escuta um Hitler
gosta mais ou menos
e se um Che fala
também
Em meio ao nada
meio que duvida
como tudo a atrai (a meias)
analisa até a metade
todos os fatos
e (meio confundida)
sai às ruas com meia panela
então meio que chega a se importar
com os que mandam (meio nas sombras)
às vezes, só às vezes, se dá conta (meio tarde)
de que a usaram como peão
em um xadrez que não compreende
e que nunca a converte em Rainha
Assim, meio raivosa
se lamenta (a meias)
de ser o meio do que outros comem
dos quais não consegue entender
nem a metade.

Capitalismo

Meszáros vê o capital em fase descendente
By
admin
– 21/06/2011Posted in: Destaques
Buzz


Filósofo debate revoltas árabes, propõe repensar produção em vez de construir usinas e garante: nem Adam Smith apoiaria irracionalismo neoliberal
Por Débora Alcântara*, colaboradora de Outras Palavras
O filósofo húngaro István Mészáros, professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, apresentou na última quinta-feira (16/6), em Salvador, a conferência Crise estrutural necessita de mudança estrutural. Realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, o evento marcou o lançamento de três novos títulos da Editora Boitempo: Estrutura social e formas de consciência II, de sua autoria; István Mészáros e os desafios do tempo histórico (livro-homenagem); e a edição 16 da revista Margem Esquerda. As obras suscitam a ideia do filósofo sobre a urgente necessidade da intervenção emancipadora dos seres humanos comprometidos no atual desenvolvimento histórico. Nessa entrevista, ele fala um pouco de suas ideias. Consideradas radicais, elas evidenciam o fato de que o capital enfrenta hoje seu processo descendente, uma crise estrutural que aciona seus limites mais absolutos e autodestrutivos. Considerado um dos discípulos de Lukács, Mészáros está entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. Ele fica no Brasil até dia o dia 23. Ainda se apresenta em Fortaleza e Rio de Janeiro.
O senhor destaca a necessidade de intervenção emancipadora do ser humano nos processos de desenvolvimento histórico. Como isso pode ser possível, tendo que enfrentar o caráter auto-destrutivo dos processos regidos pelo capital? Como o senhor analisa o movimento recente no “mundo árabe” e as eleições na última década na América Latina?
I.M. – A súbita irrupção da “Primavera Árabe” foi recebida com surpresa. O espantoso é que o longo “Inverno Árabe” poderia continuar por muitas décadas ainda, incluindo as três do regime repressivo de Moubarak no Egipto, totalmente apoiado e utilizado para fins próprios pelos Estados Unidos. E o presidente Obama quando fez seu discurso recente sobre a “unidade para a democracia e liberdade” em relação à Primavera Árabe, omitiu-se sobre o mapa do conflito no Oriente Médio, e não mencionou, nem mesmo com uma palavra, sobre um grande bloco de países [o Conselho de Cooperação do Glofo Pérsico], na mesma região, que, além de não mostrar um sinal sequer de “democracia e liberdade”, ainda enviou tropas para reprimir violentamente as multidões que protestavam em Bahrain. No entanto, a causa da emancipação humana não pode ser reprimida indefinidamente. Em qualquer caso, os problemas fundamentais nunca foram resolvidos de maneira duradoura na história, nem poderão ser resolvidos no futuro, através da violência e repressão. Grandes convulsões sociais podem ser temporariamente derrotadas, como fizeram as ditaduras no Chile e no Brasil, ainda tão recentes. Mas as suas causas subjacentes sempre persistirão e vão intensificar-se, vindo à tona, mais cedo ou mais tarde. Nossos problemas sociais são de fato muito grandes e precisam de soluções duradouras. A relevância da emancipação humana dependerá da capacidade de a humanidade resolver seus problemas, a título historicamente sustentável. Caso contrário, só podemos oscilar de uma crise para outra.
Você tem uma preocupação clara com o lugar das mulheres na sociedade. O que diz sobre o fato de que o Brasil tem uma mulher na presidência pela primeira vez? Qual é a sua avaliação sobre a vitória da economista Dilma Roussef?
I.M. – É muito positivo o fato de uma mulher ter preenchido o importante cargo de presidente, assumido historicamente por homens em todo o mundo, com muito poucas exceções. A América Latina abriu um caminho novo com duas presidentes mulheres, uma na Argentina e agora no Brasil. Naturalmente, a grande causa da emancipação da mulher tem ainda um longo caminho a percorrer. Ela envolve uma radical transformação da nossa sociedade. Por exemplo, o princípio da igualdade de remuneração entre homens e mulheres para o mesmo trabalho, legalmente reconhecido, é ignorado em muitos países, incluindo os países capitalistas mais avançados. Até mesmo a conquista do direito de votar nas eleições parlamentares levou um tempo muito longo de ser realidade, e ainda está muito longe de ser respeitado no mundo inteiro. A causa da emancipação feminina é uma questão eminentemente substantiva. Quando a igualdade substantiva das mulheres for totalmente cumprida, será sinal de que a crise estrutural de nossa ordem social existente foi remetida ao passado. Eu acredito que será uma conquista da presidente Rousseff contribuir efetivamente com esse processo histórico.
O senhor, em sua obra seminal “Para além do capital – rumo a uma teoria da transição”, advoga a tese que a competitividade e concorrência intercapitais têm conseqüências nefastas, uma das quais é a degradação do meio ambiente. Já em sua obra “O desafio e o fardo do tempo histórico”, o senhor analisa o caráter imperativo e destrutivo das positivações do capital e de como a “ordem estabelecida” do capital produz destruição, além de afirmar que a disputa no mundo nos dias de hoje se daria entre socialismo e destruição e não mais entre socialismo e barbárie. O governo brasileiro planeja e está construindo diversas barragens hidreléticas na Amazônia, alegando que é necessário produzir energia para garantir o crescimento econômico. O senhor diria que essas hidrelétricas e barragens são positivações imperativas e destrutivas do capital?
I.M. – Sem dúvida, o problema da produção e utilização de energia é realmente imenso e potencialmente cada vez mais destrutivo. Isso já visível em diferentes partes do mundo. É necessário um reexame crítico a respeito do crescimento imperativo do capital e suas conseqüências. Este é um grande problema estrutural que não pode ser ignorado por mais tempo. Não se pode ter controle sobre a intensidade do desperdício de energia do sistema produtivo estabelecido sem a reorientação da produção e do crescimento do serviço das necessidades humanas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de recursos energéticos renováveis é apenas uma parte da resposta para esse problema. Em algum ponto no futuro, poderá surgir, de fato, a necessidade de produção de energia nuclear em grande escala. Mas a questão crucial neste contexto é a incapacidade do sistema produtivo estabelecido em planejar de forma responsável, em uma escala de tempo adequado. Pois ele é concebido para, num curto prazo, garantir, a todo o custo humano, a expansão do capital rentável. A recente catástrofe em Fukushima – devido, em grande medida, à irresponsabilidade da empresa operadora, que apresentou durante dez anos relatórios de segurança falsos, com a óbvia cumplicidade do Estado – é um exemplo assustador disso. A visão de curto prazo para os fins lucrativos do sistema do capital está em contradição total com os requisitos verdadeiramente vitais, ao passo que conseqüências do desastre da energia nuclear poderia se estender por centenas ou mesmo milhares de anos. É necessária a mudança radical do nosso modo de reprodução social metabólico, que envolve a nossa relação inevitável com a natureza. Semelhantes considerações se aplicam a todas as outras formas de produção de energia. Estamos participando agora da preparação do “Rio+20″. Devemos lembrar também que o “Eco-92” não produziu absolutamente nenhuma melhoria ecológica do mundo, apesar de todas as promessas solenes na época. Os interesses maciços investidos empurraram tudo no sentido oposto. Isto é o que deve radicalmente mudar.
Na sua análise, há a idéia de que a capital enfrenta agora o seu processo descendente, uma crise estrutural que desperta os seus limites mais absoluta e auto-destrutiva. O que os recentes acontecimentos no mundo evidenciam este processo de descida? Que fato histórico indica que este processo?
I.M. – O aspecto mais importante da distinção entre capital ascendente e descendente são as preocupações da dimensão produtiva do sistema e as maneiras pelas quais a expansão produtiva pode ser garantida. No pico da fase ascendente, testemunhamos a Revolução Industrial e o imenso dinamismo e crescimento econômico gerado em todo o mundo capitalista. Em contrapartida, a mesma fase ascendente é marcada pela destruição do imperialismo monopolista, que trouxe com ele duas guerras mundiais catastróficas. A razão fundamental pela qual a aventura da terceira guerra mundial não ter sido deflagrada – mesmo sendo defendida pelos estrategistas militares mais agressivos e irracionais – é porque isso significaria a aniquilação da humanidade. Já a fase descendente, cuja destrutividade é cada vez mais perigosa, apresenta três dimensões: a primeira está no campo militar, com intermináveis guerras intercapitais, desde o início do imperialismo monopolista nas últimas décadas do século XIX, com suas armas de destruição em massa, cada vez mais poderosas, aprimoradas nos últimos sessenta anos. Na segunda, está a intensificação do impacto destrutivo do capital sobre a ecologia, afetando diretamente e colocando em risco o alicerce fundamental natural da própria existência humana. A terceira dimensão está no domínio da produção material e sempre crescente de resíduos, devido ao avanço da “produção destrutiva” em lugar da “destruição produtiva”, tidas como “criativas” e tão elogiada por teóricos liberais-conservadores, como o economista Schumpeter, entre outros.
Em “Estrutura Social e Formas de Consciência – A Determinação Social do Método”, as sua idéias combatem o mito da ciência enquanto empreendimento puramente teórico e neutro, desvinculado de qualquer relação com os interesses de classes. Ao contrário, elas mostram os limites impostos pelo modo de reprodução social à formulação teórica. Com o processo descendente do capital, como se revelam as formulações teóricas recentes?
I.M. – Mesmo na fase ascendente do desenvolvimento do sistema capitalista o grande pioneiro da ciência político-econômica, Adam Smith, expressou um evidente viés ideológico, no interesse de sua própria classe, quando ele definiu o capitalismo como “o sistema natural de perfeita liberdade e justiça”. Mas sabemos muito bem que este não é nem natural nem perfeito em seu tratamento da liberdade e justiça. No entanto, na fase ascendente do sistema, Adam Smith ainda estava disposto a admitir com compaixão humana, que “as pessoas que vestem o mundo estão, elas mesmas, em farrapos”. Compare isso com a posição agressivamente irracional da reverenciada “ciência política” de Friedrich Hayek, que também foi o guru teórico e político da primeira ministra britânica Margaret Thatcher, afirmando que “não há tal coisa chamada sociedade, há apenas indivíduos”. No interesse de defender a maior das terríveis desigualdades da sociedade capitalista, a abordagem irracional de Hayek, arbitrariamente declarada, foi de que “a criação de riqueza não pode ser explicada por uma cadeia de causa e efeito”.
Ele afirmou, de forma ainda mais irracional que “os mistérios do dinheiro e as instituições financeiras com base nele” devem ser isentos de qualquer crítica, acrescentando que o slogan da ideologia socialista, “a produção para uso, sem fins lucrativos” – que encontramos em uma ou outra forma de Aristóteles a Bertrand Russell, de Einstein ao arcebispo brasileiro Helder Câmara (e, muitas vezes, desde Aristóteles, com o acréscimo de que estes lucros são feitos “à custa dos outros”) -, revela ignorância de como a capacidade produtiva é multiplicada por indivíduos diferentes”. E o próprio Hayek sabia disso. Mas em sua opinião isto é produzido e multiplicado “misteriosamente”, sem qualquer envolvimento de alguma “cadeia de causa e efeito”. Isso mostra uma perfeita sintonia com os interesses da fase descendente do desenvolvimento sistêmico do capital.
Em suas obras, o senhor afirma que o capital é anterior e posterior ao capitalismo. Quais as principais distinções entre esses dois conceitos?
I.As primeiras formas de produção de mercadorias vão aos tempos da Grécia Antiga. Assim, estamos falando de milhares de anos antes do capitalismo, que se estende por alguns séculos. No entanto, a diferença absolutamente fundamental é que na Grécia Antiga encontramos apenas a produção esporádica de mercadorias, com a participação do capital mercantil, ao passo que o capitalismo é caracterizado pela produção generalizada de mercadorias, sob o domínio do capital industrial e a consequente expansão maciça do capital financeiro. Através da produção generalizada de mercadorias tudo se torna mercadoria vendável, incluindo obras de arte e até mesmo muitos constituintes das religiões dominantes. Em relação a esta última, uma bela e curta história de Balzac fala sobre a Bolsa de Valores, afirmando, com ironia, que na Bolsa de Valores “até mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação em mudança”. Sob a produção generalizada de mercadorias — que não podem funcionar e sobreviver sem a expansão do capital – está a extração do trabalho excedente, que é regulada por meios econômicos, através da sua conversão em mais-valia e acumulação de capital.
O sistema de reprodução social de tipo soviético não pode ser caracterizado como produção generalizada de mercadorias. É por isso que Gorbachev e seus seguidores tiveram que restaurar o capitalismo a fim de instituir sua quimera de “socialismo de mercado”, o que obviamente não deu em nada. Sob o sistema de tipo soviético, a dominação do capital sobre o trabalho continua, na forma de extração do trabalho excedente pela via política, através de um órgão hierarquicamente distinto, e não por sua extração econômica e conversão em valor excedente a ser atribuídos através das “personificações do capital econômico” e do mercado (a famosa “mão invisível” de Adam Smith). Nas condições atuais, da fase descendente do capital de desenvolvimento e crise estrutural, testemunhamos a “hibridização” do capitalismo através da participação cada vez mais direta do Estado em matéria econômica, assim como a recuperação de alguns setores importantes da economia capitalista. Isso se dá não apenas no setor financeiro mas também na produção industrial, como no caso do gigante multinacional General Motors – que recebeu injeção estatal de trilhões de dólares. Através desta tendência, que certamente aumentará no futuro, devido ao agravamento da crise estrutural do capital na fase do seu desenvolvimento descendente, a mitologia do “sistema empresarial superior privado” está sob o risco de ser “aposentado”.

Débora Alcântara é jornalista em A Tarde, de Salvador, para onde este texto foi originalmete produzido
(outras Palavras)

Grafite

‘Grafite’ feito por xeque árabe em praia é visto do espaço
Atualizado em 22 de julho, 2011 - 05:50 (Brasília) 08:50 GMT
• Facebook
• Twitter
• Enviar a página
• Versão para impressão

Nome cavado em praia dos Emirados Árabes tem 3,5 km de extensão
Com uma fortuna estimada em US$ 21 milhões, o xeque dos Emirados Árabes Hamad Bin Hamdan Al Nahyan mandou escrever seu primeiro nome em letras quilométricas em uma ilha do país.
Medindo 3,5 quilômetros por 1 quilômetro, a palavra “Hamad” foi escavada na areia da praia e, de tão gigantesca, pode ser vista do espaço.
Notícias relacionadas
 Homem pode agredir esposa se não deixar marcas, diz tribunal árabe
 Por controle, países árabes proíbem funções do Blackberry
 Senegal inaugura estátua maior do que o Cristo Redentor
Tópicos relacionados
 Geral,
 Internacional
A obra demorou semanas para ser escavada, mas seu custo final não foi divulgado pelo xeque, que tem 63 anos e é membro da família que governa os Emirados Árabes.
Para que seu nome ficasse eternizado e não fosse destruído pelo mar, Hamad garantiu que as letras escavadas funcionassem como canais aquáticos para absorver a maré.
‘Xeque arco-íris’
Conhecido como “o xeque do arco-íris”, Hamad tem uma coleção de 200 carros de luxo, sendo que sete deles são Mercedes, cada uma com uma cor do arco-íris.
Ele também é famoso por sua atração a empreitadas em grande escala. E o “grafite gigante” não é a primeira delas.
Seus carros são guardados em uma imensa garagem em forma de pirâmide. Ele já mandou construir o maior caminhão do mundo, com quatro quartos na cabine, e uma casa motorizada em forma de planeta, cujo tamanho equivale à milionésima parte da Terra.
(BBC Brasil)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Atentados

Rescaldo de um atentado debilóide
Por Celso Lungaretti em 26/07/2011




O filósofo Vladimir Safatle continua sendo responsável por alguns dos fugazes lampejos de vida inteligente que ainda encontram brecha no inferno pamonha engendrado pela indústria cultural.

No artigo Um fantasma na Europa, ele disseca o atentado norueguês com base nas leituras que Theodor Adorno e Max Horkheimer fizeram do totalitarismo contemporâneo, acertando na mosca:
“…o fascismo conseguira se colocar como um modelo de forma de vida. No caso, uma forma de vida constituída através da transformação de comportamentos patológicos em norma social, de temáticas que normalmente aparecem em delírios paranoicos no conteúdo de discursos políticos tacitamente aceitos.

Assim, delírios de perseguição se normalizavam por meio da crença de que um elemento estranho estava infectando a bela totalidade de nosso corpo social. Elemento que destruiria, com o beneplácito de cosmopolitas ingênuos, nosso caráter nacional naquilo que ele teria de mais especial.

Força e disciplina eram convocadas para restaurar esse corpo quase moribundo separado de seu solo, mesmo que tal solo seja hoje uma fazenda de produtos orgânicos.

Por sua vez, delírios de grandeza animavam discursos que pregavam a amplidão redentora da nação. A identidade era, assim, elevada à condição de sistema defensivo ameaçado, e, por isso, compulsivamente afirmado.

Não por acaso, palavras como ‘limite’, ‘fronteira’, ‘território’ tornavam-se os significantes centrais do discurso político. A defesa da identidade se tornava uma patologia.

Lembrar isso, após o massacre em que um norueguês islamófobo, cristão conservador e simpatizante de partidos de extrema-direita matou dezenas de jovens do Partido Trabalhista, é só uma forma de insistir como alguns não aprendem nada com a história.
Tal como o direitista americano que, meses atrás, atirou contra uma deputada democrata em Tucson contrária a leis mais duras contra a imigração, o que temos aqui é simplesmente alguém que quer realizar tal forma de vida fascista com as próprias mãos.
Eles não querem esperar os partidos xenófobos ganharem para ‘eliminar’ os imigrantes. Preferem passar ao ato, literalizando o discurso que ouvem todos os dias“.
Vou além: a tralha que a indústria cultural despeja nas telinhas e telonas, pura lavagem cerebral, martela o tempo todo a noção de que a ameaça aos bons, aos normais e saudáveis, são os maus, os aberrantes e doentios que vêm ameaçar o status quo, principalmente o terrorista e o serial killer.

Enquanto o capitalismo solapa as próprias bases da existência humana, suas patéticas vítimas são tangidas a sentirem a sociedade como um bem a ser preservado das investidas de vilãos mefistofélicos que vêm de fora para a destruir, com o apoio de alguns traidores de dentro.

Então, não há motivo para estranharmos que o debilóide norueguês tenha levado às últimas consequências aquilo que vem sendo plantado na sua cabeça dodói desde criancinha — é, p. ex., o que se vê na série Harry Potter, o mundinho paradisíaco da escola de bruxaria ameaçado pelo caos que um Bin Laden de nariz achatado personifica.

A escola destruída no episódio (por enquanto…) final não se confunde, no imaginário dos videotas, com as lembranças traumáticas do WTC posto abaixo?

A anulação do diferente é a mensagem que os meios propagam sem parar, tangendo as pessoas à defesa obsessiva de um status quo que, ele sim, é a verdadeira ameaça à paz, à felicidade e à própria sobrevivência da espécie humana; e imunizando-as contra o antídoto oferecido pelos que, via transformação da sociedade, as tentam salvar.
Compartilhar

_______________________________________________
Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot
(Consciencianet)