domingo, 17 de julho de 2011

Millôr, o gênio de direita

Jaguar


Primeiro de uma série de retratos que, durante anos, fiz de grandes amigos, profissionais do mesmo racket: Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, Nássara, Fernanda Montenegro, Jô Soares, Fortuna, etc. As palavras e as construções são usadas de modo escorregadio, com sentido às vezes ambíguo, às vezes permitindo o reflexo e a reflexão que o teleitor bem entender.
Jaguar tem dois lados, o lado de lá de tarde bate sol, por isso é que sua fisionomia é toda contra-luz. Movimenta-se em vários sentidos, três deles completamente neutros, nem por isso, porém, impraticáveis. Usa bigode, mas não se vê. É patriota contratado esperando efetivação. Com as suas mãos conseguiu executar uma terceira que usa para os melhores desenhos que faz. É casado mas não acredita no inferno. Às sextas-feiras, às vezes entrando pelo sábado é apocalíptico. Em dias de alegria fica triste mas esconde isso sob tal tumulto que sempre recebe o troféu alegria da festa. Tem uma filha cor de rosa e um filho verde, nascido misteriosamente em Pirassununga, alguns anos atrás, quando um OVNI baixou por lá.
Agora, quanto ao câncer, é a favor. Seus melhores amigos estão nas linhas transversais, mas não se importa; de vez em quando desenha um com aquela espada. Pratica-se diariamente, por isso é que é tanto. Tem degraus, setenta e oito ao todo, mas está pensando em instalar elevatória. Grande coração, as dimensões do qual têm sido até exageradas pois não transplanta. Da ponta do pé ao topo da cabeça vai toda a sua altura, mas nem isso o diminui. Reto quando a prumo, se curva todo ao menor elogio contrário. Tem olhos azuis, com os quais procura disfarçar seus estranhos óculos redondos. Modelo de pai, tem sido escolhido sempre como mau exemplo. Sua diversão preferida é ficar todo torcido diante dos espelhos que distorcem e fundir a cuca dos espelhos. Qualquer balança porém logo o desequilibra. No Banco do Brasil é considerado um funcionário bárbaro porque por onde ele passa não cresce a grana.
Se levanta com o sol: o difícil é ir deitar lá em cima da montanha da Gávea às quatro da manhã, depois de um pifa. Não fuma, mas, zangado, deita fumaça. Túnel Rebouças foi apenas durante quinze dias, pois detesta ar encanado. Quanto a Ipanema, diz sempre com orgulho: "I am a Banda". Tem trinta e seis anos, o que fica muito bem na sua idade. Como o vidro, é eternamente jovem, a não ser que o arranhem. Embaça um pouco, em dias de maresia interior, mas basta uma flanela e de novo ele brilha e reflete. Costumo lhe dizer: "Com teu talento, Jaguar, eu não estaria aqui. Estaria em cana, no
s Estados Unidos."
Nos rastros do ser humano Siron só vê o calcanhar-de-aquiles. É tendencioso em geral apenas pra evitar as tendências generalizadas. Mas segue todos os caminhos, maneira melhor de nunca chegar onde é mais esperado. Pois, pintor pertinaz, pinta por pura prestidigitação. E a cada pincelada apaga mais um vestígio do erro fatal de um dia vir ao mundo. Esgravatando em cores as profundas reentrâncias do passado assim como quem pinta corda em casa de enforcado. Já que em sua infância remota, apesar de tão perto, vovô não via a uva, via o pecado. E ensinava Siron a ver a Eva, roída do pecado original de nascer com dois seios. Goiano de Goiânia casado com Goiaci, Siron é uma redundância insuportável pros que não são do planalto e nunca viram Goya. Eco de muitas cicatrizes, sua pintura é agívaga, figura arquitetônica formada por dois arcos iguais que se cortam lá em cima. Nativo mais que índio, pinta como quem diz: "Minha árvore genealógica é o abacateiro". Eis por que vive no mato, com mangueiras em volta, pra não criar raízes. Ri muito, fala curto e feroz, detesta o antro, mas sempre foi assim da algaravia.
Pois só faz sol lá fora, em seu estúdio. Dentro, e mais dentro, no interior dos quadros, pululam anões, velhas caquéticas, bispos cloróticos, potentados góticos, figuras catapléticas, carcaças carcomidas, tudo lembranças róseas de um passado melhor, das beloepóques, do murmúrio das águas cristalinas. Aos 30 anos, Siron já foi mais moço, mas ainda é a metade do que será um dia com outro tanto de idade e espera morrer jovem, aos 95 anos de vantagem, envenenado pela pílula da eterna juventude ingerida em excesso. Quando pinta, sua em technicolor e do seu teto escorre o óleo que sobrou da Capela Sixtina.
Mas quando começou a pintar saía sangue. O que não foi nada, o pior foi quando descobriu que a arte é uma forma imortal de hemofilia. É tão intenso em seu trabalho que dorme apenas o bastante pra acordar de novo, retocar o vermelholilás do sol que nasce e assinar seu nome, Siron Franco, no cantinho direito da alvorada. Entre a pintura e o desenho acha que os dois se devoram, embora neste a gargalhada esteja bem mais perto. Ameno e amável, sabe que a gentileza desarma os espíritos, embora não seja tão eficiente quanto as forças armadas. Pois, conhecendo demais os círculos artísticos, sabe que os círculos militares são de outro compasso.
Nunca foi escoteiro, não freqüenta fofocas, recusa agrupamentos, donde ser considerado um lobo solitário, isto é, contra o lobo do homem. E se continuar nesse trabalho, assim, claustral, soturno, quando crescer vai ser anacoreta. Casado, pai, pé-de-boi, bom provedor, competente no ofício, tem todos os defeitos que impedem a boemia. É rico de idéias e cada idéia sua tem 3 metros quadrados, sete cores primárias, espessura, tema e tessitura, contexto, trama e urdidura, e o que mais vêem técnicos que vêm de longe ver de perto acreditando perceber o que ele pinta. Pois só nós dois sabemos que o pintor é apenas um conjunto de telas, tintas, pincéis e atrocidades. De estatura mediana em relação aos mais baixos e mais altos, Siron é aquele que caminha pequeno na perspectiva da estrada destruída, se equilibrando no fim das paralelas.
Tem um sonho impossível: admirar-se no espelho sem a imagem invertida. Uma frase confusa: " Não mato sem cachorro". Um epitáfio claro: "Não contem mais comigo". Mas, pra pintar assim, diz um e outro, são necessários gestos majestosos. E muita diplopia. Pois sua pintura mostra, aos mais descrentes, que há uma esplêndida luz no fim do túnel. Iluminando a grade e o cadeado.
05.11.1980
PS. Hoje em dia, vinte anos depois, já noutro século, e outra tecnologia, Siron, coerentemente, tem um caso sentimental com a Vaca Louca. Correspondido.

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