sexta-feira, 22 de julho de 2011

Versus

O Versus nosso de
cada dia nos dai hoje

Versus renasce em antologia para revelar como se fazia jornalismo de resistência na década de 70, com um olhar alternativo sobre a cultura,
a política e a história do país e do continente.
Por Omar L. de Barros Filho

O projeto que deu origem a esta antologia começou a nascer no final dos anos 90, quando conheci um assinante de Versus na fronteira do Brasil com a Bolívia, às margens do rio Guaporé, em Rondônia, onde vivi em uma fazenda isolada do mundo das notícias por muitos anos. Ele fazia parte de um grupo de consultores do Banco Mundial que percorria a área em busca de padrões de sustentabilidade para as atividades econômicas da região.

Ao me apresentar como jornalista e comentar que tinha sido editor de Versus nos anos 70, ele disse: “Li e colecionei Versus por muito tempo. Foi, na época, o jornal que mais ajudou em minha formação política e me fez ver a América Latina de forma diferente.” Depois que nos despedimos, pensei se seria possível sintetizar em uma nova publicação o resultado da atividade frenética e da inquietação cultural que sempre marcaram a redação de Versus, em São Paulo. Versus foi uma experiência única de jornalismo alternativo, que surgiu da mente inventiva de Marcos Faerman, o Marcão, para quem teve a felicidade de conhecê-lo e aprender com ele, um dos mais brilhantes repórteres e editores brasileiros de todos os tempos.

Faerman costumava dizer que Versus nascera sob o signo da tristeza provocada pela morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura, fato que horrorizou o país em outubro de 1975. O drama de Herzog na prisão coincidiu com a impressão da primeira edição do jornal, em torno de 12 mil exemplares, formato tablóide, 52 páginas. Distribuído precariamente de mão em mão, em bancas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras poucas cidades, e financiado, em parte, por um salário anual extra de Faerman, Versus calou fundo na sensibilidade dos leitores, e iria mais longe do que o esperado.

Aos poucos, o grupo inicial de colaboradores ampliou-se, com a adesão voluntária de jornalistas, escritores, poetas, professores, cineastas, sociólogos, ilustradores, chargistas, além dos próprios leitores, que enviavam suas colaborações do Brasil e do exterior. Na redação, costumávamos dizer que o carteiro era nosso melhor repórter, porque trazia as matérias de que necessitávamos para fechar cada edição, e que completavam a pauta dia-a-dia. Foi um mutante que por um bom tempo praticou severa autocensura para sobreviver. Sempre carente de recursos, ainda assim resistiu durante quatro anos às pressões e limites estreitos estabelecidos pelo regime militar.

Versus foi também porto seguro para “desgarrados” latino-americanos e brasileiros, refugiados políticos, e outros discriminados pela sorte. Hoje, pode-se dizer, sem medo de exagerar, que a redação era uma espécie de “Cruz Vermelha”. Recebia não só fugitivos estrangeiros em busca de asilo, trabalho e documentos, como dava guarida a qualquer brasileiro com talento atrás de um espaço em uma folha de jornal para registrar suas idéias, crenças ou experiências. Muitos iniciaram em Versus o ofício de escrever, reportar ou desenhar. Era uma casa caótica e de poucas regras, mas sempre aberta, onde se respirava o jornalismo em sua verdadeira essência quase artesanal.
Logo, o projeto de construção de Versus não estava imune às influências externas. À medida que a distribuição nacional se consolidou, a vendagem em bancas cresceu, e a tiragem se multiplicou até atingir 30 mil exemplares, a influência cultural e política de Versus passou a ser muito maior do que imaginávamos ou pretendíamos no início. Nosso programa, até então, resumia-se a uma expressão-síntese sobre a qual trabalhávamos arduamente: “a cultura como forma de ação”.

Entretanto, turbulências no cenário internacional, com os Estados Unidos passando a retirar seu apoio às ditaduras, e no plano nacional, com a entrada em cena do movimento estudantil, provocaram mudanças em nossa linha editorial. Também as diferentes posições políticas existentes na redação passaram a se manifestar, algo natural em um jornal alternativo, em que muitos editores e colaboradores militavam em organizações clandestinas, na oposição institucional, ou mesmo simpatizavam com tendências estudantis nas universidades. A erupção do movimento operário no ABC paulista, as greves dos metalúrgicos e, depois, nos sindicatos de classe média, alteraram em definitivo o rumo de Versus.

O leitor desta obra perceberá as transformações decorrentes da politização da redação, que, passo a passo, abandonou o discurso original – literário, poético e épico da história da América Latina – em troca de uma visão mais crua, sociológica e imediata de nossa realidade, não só a brasileira como a do continente. A metáfora literária cedeu lugar à política, e isso se expressava não só nas reportagens, ensaios e entrevistas, mas também no próprio grafismo de Versus, nas charges, nas ilustrações, enfim, na organização editorial em seu conjunto.

Amizades foram perdidas e alianças se romperam no processo. O tempo, como sempre, tratou dos ressentimentos. Não podia ser diferente, mais de trinta anos depois. Independentemente das divergências do passado, que hoje soam pueris, o fim do caminho para Versus foi, em última análise, o mesmo de toda a imprensa alternativa. Os “nanicos”, como éramos chamados pejorativamente, desapareceram um a um no compasso da reconquista democrática, da liberdade de expressão, das crises econômicas, e do curso da monopolização da informação pelos grandes e tradicionais meios. Éramos mais de 100 jornais, li em alguma estatística, mas fazíamos o ruído de mil.

Em algum ponto do caminho, no entanto, deixamos de ser necessários.

Quanto a mim, constatei que, de todos os editores e assistentes que passaram por Versus em seus quatro anos de história, fui o que mais tempo vivenciou a aventura de fazê-lo, de novembro de 1975 a outubro de 1979, desde que deixei Porto Alegre e mudei para São Paulo com o objetivo de doar meu tempo e existência ao jornal. Em dias mais recentes, o fato de deter a memória daquele período fez com que pesquisadores, professores e estudantes passassem a me procurar na web para responder sobre questões envolvendo os caminhos de Versus, o que reforçou a idéia de que era chegada a hora de editar esta antologia.

Enquanto Versus viveu, imprimimos 33 edições normais, três extras de quadrinhos, e outras que fugiam ao calendário, mas eram relacionadas com mobilizações políticas, como as edições especiais voltadas aos aniversários do golpe do Chile e de 1º de maio, no ABC paulista. Além delas, editamos, com êxito, outros nove livros e cadernos. Versus – Páginas da utopia guarda parte de nossa história, assim como a do jornalismo que praticamos. Outras duas antologias virão a seguir.

(Fonte?)

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