segunda-feira, 22 de abril de 2013

Pensamentando

Pepe Escobar: : “David-Bowiemania para enterrar o thatcherismo”

Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving eye
“How Bowiemania buries Thatcherism”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ela virá, ela partirá
Ela meterá crenças na tua cabeça
Mas ela não apostará em ti a vida dela
A vida jamais será o ponto de vista dela
David Bowie, Lady Grinning Soul [1]

Quando muda o tom da música
As paredes da cidade tremem
Platão, A República

Serviço religioso no funeral de Margaret Thatcher
LONDRES – “Há uma dança nova em folha, mas não sei o nome / que o pessoal das casas ruins dança e dança sem parar / É grande e cheia de tensão e medo / Eles lá dançam e dançam sem parar / Mas a gente aqui, não dança aquilo”. [2] Tensão e medo. Ah, sim, é a caaaaaaaaara da Europa 2013. E não há dúvidas de que o pessoal das casas ruins repete e repete aquela dança. Não há dúvidas. Ziggy [3] toca o passo Maggie [Margaret Tatcher].

Pepe Escobar
Esse “Olhar Errante” [4] aterrisou em Londres há alguns dias, a cidade mergulhada na histeria do thatcherismo. A rua Fleet Digital [5] está excitadíssima: o funeral da baronesa Thatcher será “transmitido para milhões”. A BBC – colhida em mais um escândalo, dessa vez por causa de visita “clandestina” de seus jornalistas à Coreia do Norte, acompanhando um grupo de alunos da London School of Economics, cuja segurança a emissora pôs em risco [6] – é a única que transmite o ‘evento’ sem comerciais e dá cobertura ininterrupta por televisão, essa relíquia do passado, televisão com câmeras em tripés. Não é páreo para os helicópteros de Rupert Murdoch, o grande arapongador de telefonemas. Nem para a cripto-glamurosa estenógrafa do Pentágono-Departamento de Estado, Christiane Amanpour, que transmite o ‘evento’ pela CNN, de New York.

A família real não está gostando nada, nada, nada desse negócio todo. Tudo, aí, é excessivo, exagerado, sem noção. O Big Ben e o Grande Sino de Westminster não tocarão. A última vez que aconteceu foi durante o funeral de Winston Churchill, em 1965. O funeral de hoje, ao contrário de boatos que circularam, será pago com dinheiro público, nada de privatização. E o primeiro-ministro David “das Arábias” Cameron não está arrancando do cadáver o que esperava arrancar: só 16% dos britânicos creem que ele seja herdeiro de Thatcher. Até Tony Blair, inventador da Guerra no Iraque, ganha de Cameron: teve reles 17% de preferências. Não há “Homem das Estrelas” à nossa espera no céu. Não quer saber de vir nos encontrar. Nem, que fosse, para abrir a cabeça da gente. [7]

“Todo o povo gordo-magro, e todo o povo baixo-alto, e todo o povo nin-guém, e todo o povo-al-guém”, [8] todos ansiando por se apertarem dentro da Catedral St. Paul. Só 50 lugares para repórteres, esse “Olhar Errante” decidiu assistir à coisa cá da zona vermelha, também conhecida como ruas-de-Londres-saturadas-de-policiais-e-de-televisões, as quais, depois de Boston, estão sob nuvem ainda mais densa de paranoia.

Por toda a cidade, “sob a lua, a séria luz da lua”, [9] paira uma rede orwelliana de censura, círculos concêntricos de silêncio na imprensa-empresa: propaganda trovejante. O antídoto, em preparação para o funeral: funeral-pantomima – e o que mais poderia ser?

“Mais um fim-de-semana/de luzes e caras noturnas/fast food, nostalgia que anda”. [10] Na Trafalgar Square, noite de sábado miserável. Mais de 3.000 pessoas de todos os cantos do Reino Unido. Ding Dong, A bruxa morreu – cantavam e celebravam. Como fizeram com dedicação os torcedores de futebol em Liverpool. [11]

Policiais aos milhares. A imprensa-empresa, em virtual blecaute. Georgie Sutcliffe, atriz e séria candidata a Rainha do Soho, bate à porta de um satélite e pergunta “Com quem você está?” Alguém gagueja “Sky”, como um Murdoch apanhado em ato de sabotagem. Afinal, a classe governante britânica tem de ser protegida, custe o que custar.

“Atenção, aí, roqueiros/logo-logo vocês ficam mais velhos”.  [12] E o que há por aí para um roqueiro mais velho fazer? Esse Olho Errante, ex-morador de Londres, ex-compositor, dá de cara com seu filho errante – nascido nos primeiros anos do Thatcherismo – e o destino tinha mesmo de ser o venerável [museu] Victoria and Albert, um dos mais espetaculares museus do mundo. Exposição sobre David Bowie. [13] Cuidado. Agora, é Ziggy contra Maggie. “Somos os transviados [14] e estamos chegando à cidade. Bip-bip”. [15]

“Seus circuitos caíram, há algum defeito” [16]

Margaret Thatcher permaneceu no poder de 4/5/1979 a 28/11/1990. A memória dos pubs londrinos conta que, depois de sair do Somerville College em Oxford, lá ia ela, meio perdidona, tipo T.S. Eliot-tédio (“medi a minha vida em colherinhas de café”) [17], com um super-gasto, lido e relido livro de Ayn Rand debaixo do braço... quando foi descoberta por um superstar de Chicago caçador de talentos, que atendia pelo nome de Milton Friedman. Ele apaixonou-se pelos tornozelos dela – e o resto é história (neoliberal), com uma nota de rodapé crucialmente importante: a estrada dela até o n. 10 de Downing Street foi pavimentada por milhões de libras, cortesia do empresário-maridão Denis (Tatcher).

Ela talvez não seja a senhorinha-de-bolsa-dos-seus-sonhos da mitologia britânica de rua. Ela levava impressa na carne toda a cosmologia profundo-essencial de atendente de lojinha – cortesia da lojinha de doces do Papai, em Grantham, Lincolnshire, praticamente ausente do mapa. Mas, acima de tudo, foi a dona-de-casa frugal, responsável por criar uma nação inteira de donas-de-casa. Ok. Pelo menos, criou algumas: eram 13,4 milhões ao final da década, contra os 10,2 milhões do início da década.

Se você tivesse cargo em algum conselho distrital você conseguia – pela primeira vez em todos os tempos – comprar casa própria com desconto imenso; e, no mesmo dia, você já era capturado e entrava diretamente no inferno da hipoteca. Foi esse boom imobiliário –boom de endividamento, na verdade – que, com a liberalização financeira, super turbinou o boom de consumo do início dos anos 2000s. E, então, tudo voou pelos ares. Os Sex Pistols, apenas quatro anos depois de Ziggy played guitar [18] já haviam profetizado, em 1976, o que viria: “Anarquia no Reino Unido”: “seu sonho de futuro é um plano de compras. Achei que era o Reino Unido/ou outra prefeitura qualquer de fim de linha”. [19]

E até antes disso, em 1974, os “Diamond Dogs” de Bowie reconvertidos de Spiders from Mars já haviam visto tudo: “No ano do abutre, estação da cadela/ gingando pela calçada, escapar para a trincheira/só mais uma canção futura, coisinha brega solitária (E virá sofrimento), tente e acorde amanhã” [20]. Conversa de pré-jogo de colapso social inevitável.

Durante os anos 1980s de Thatcher (estação da cadela da Rainha?), a renda média por domicílio aumentou 26%. Mas para os 10% mais pobres, só aumentou 4,6%. Os 10% mais ricos saíram-se muito melhor. A pobreza infantil quase duplicou – alcançou 3,3 milhões. Thatcher privatizou até o leite para as escolas infantis. O número de aposentados pobres explodiu para 4,1 milhões. O gasto público correspondia a 44,6% do PIB em 1979. Em 1990, já caíra para 39,1%. Hoje voltou a subir: está em 46,2%. “Oh, não se apóie em mim, cara,/porque você não tem dinheiro para comprar o ingresso”. [21]

O principal legado disso tudo é desindustrialização; incluindo as manufaturas, a indústria na Grã-Bretanha correspondia a 40% do PIB nacional em 1979; caiu para 34% em 1990. Agora está abaixo de minguados 22%. E pensar que esses tonéis e tonéis de neoliberalismo e conservadorismo social extremista, mais umas doses da vodka extra de “tradicionais valores morais”, terminaram por gerar massas de desempregados. Oh, coisinhas mais lindinhas/Não sabem que estão enlouquecendo seus papais&mamães?”  [22].

O major Maggie: controle em campo

David Bowie é byroniano, baudelairiano, oscar-wildeano, homem de teatro, amante de máscaras, mestre do artifício, supremo dandy. É tudo que possa ser entalhado – não cabe em palavras comuns ou programação comum – como se vê na exposição do museu V&A. Comparado a Thatcher, ele é, mesmo, uma Aranha Marciana. [23]

O corte – rápido, assimétrico, corte-salto na trama do tempo – é a essência da criatividade de Bowie, seu legado eterno. Como experimento pós-Dada, que William Burroughs resume brilhantemente, como “uma nova dimensão para dentro da escritura, que permite que o escrito converta imagens em variações cinemáticas”, [*] técnicas de corte perfeitamente adequadas, como o próprio Bowie admitiu, à sua consciência fragmentada (como milhões de consciências em todo o mundo).

Assim, lá estava eu no museu, a procura de alguma coisa em que Ziggy realmente tivesse passado a perna em Maggie. Lá está.

Tinha de ser o vídeo de “Boys Keep Swinging”, [24] gravado em Lodger (1979), o último álbum da Trilogia de Berlim, de Bowie e Eno, que foi lançada exatamente quando Maggie chegava ao poder. Aqui Bowie é Valquíria gelada, Lauren Bacall, Bette Davis, Katharine Hepburn, Marlene Dietrich e, afinal, A Rainha das Drags, a Cadela Rainha. Como a inimitável Camille Paglia escreveu no ensaio que se lê no catálogo da exposição, é Bowie penetrando “a alma masculina sem calor e a monstruosa gana de poder das grandes stars mulheres”. Ziggy encarnou Maggie – e ela nem sabe!

Há também Bowie como Pierrot – personagem da commedia dell’arte do século 17 – no sempre hipnótico vídeo de “Do pó ao pó” (dos funerais anglicanos clássicos). [25]

E lá está a “Lady Grinning Soul”: mistura de Circe, Calypso, Carmen, Judith (versão Klimt) e Lulu. Maggie pode não ter sido femme fatale. Mas, atracada com a sociedade, “ela fará de você um morto-vivo”. [26]

Não é para Jovens Americanos (consegui um quarto e acabei com você) [27] – nem para americanos mais velhos. Vastas porções dos EUA – onde a Dama de Ferro é cultuada como uma espécie de Estátua da Liberdade britânica, farol de “liberdade e democracia” – já foram, agora, tomadas por filhos de Thatcher que cruelmente aplicam a velha luta de classes contra o Estado, até o setor privado, as famílias.

O afável Barry, presidente dos EUA, também conhecido como O-O-bama com licença-lista para matar, cantou odes à Dama de Ferro, como se falasse de Dame Judi Dench ou de alguma franqueada de James Bond. O resto do mundo, como sempre, sabe mais e melhor que ele. Foi apoiadora entusiasmada do apartheid; chamou Nelson Mandela de “terrorista”; odiava “culturas estranhas”; [28] apoiou o Khmer Rouge no Camboja; e era amiga tão íntima do assassino serial chileno Augusto Pinochet, que o hospedava sempre que ele viajava arrastando com ele toda aquela mala pesadíssima. Por toda a América Latina, sua “Fama, qual seu nome?” [29] pode ser apenas estimada. [30] E a cereja do bolo azedo foi o filho, maluco por golpes militares em terras longínquas. [31]

Um mapa do caminho do thatcherismo (e seus efeitos colaterais) tem de incluir “Minha Adorável Lavanderia” (orig. My Beautiful Launderette), de Stephen Frears (1985), Riff-Raff, de Ken Loach (1991), e as infinitas reprises do super turbinado à cocaína The Tube, pelo Channel 4. Na pop music, se as Spice Girls adiante se converteram em imagem escarrada e cuspida do thatcherismo, a aversão vai mais bem manifesta por Elvis Costello em “Armadilha no fundão sujo”. [32] The Cure tocou em Buenos Aires, 6ª-feira passada. Robert Smith colou um adesivo na guitarra: “Ding-dong a bruxa morreu”. [33] A aversão é perene. E empacotando todo esse espírito do tempo, em narrativa, nada bate Dinheiro, de Martin Amis (1985). [34]

“Mas o filme é tédio triste/porque escrevi dez vezes ou mais/e estou escrevendo mais uma vez./E peço que vocês se concentrem” [35] nessa coluna de Will Hutton, ex-editor do Observer. [36] O pós-thatcherismo está ali, inteiro: as sementes do desespero corrente – provocado por uma monstruosa bolha 3D de crédito, banking e propriedade – foram plantadas em 1979. Ganância financeira subiu; investimento/inovação despencaram.

O que resta de “flexibilização do mercado de trabalho”, desigualdade – exacerbada pelo Big Bang de 1986, que consolidou a City de Londres como o centro de um boom financeiro global – chama-se hoje Tristeza e Melancolia.[37] Pior, realmente, que em 1990. “Talvez você esteja sorrindo, dentro dessa escuridão toda/Mas eu só tenho culpa, a dar, por sonhar”. [38]

Raiva? Ira? Não. De fato, não. “Espero há tanto tempo, tanto tempo, esperando assim/Olhar para trás em fúria/movido pela noite”. [39] Não havia praticamente ira alguma, por exemplo, em 1997: todos olhavam para trás na esperança de ver reeditado o charme da Swingin’ London, por um Tony Blair eleito por uma avalanche de votos; mas ele também perdeu logo o rumo, e depois se afundaria no mesmo legado triste, enganador, de mais um belicista doido. “Pensei que você morreu sozinho, há muito tempoI Oh não, eu não, nunca perdi o controle.Você está cara a cara /Com o homem que vendeu o mundo. [40]

É hora de deixar a cápsula se tiver coragem [41]

Europa 2013, só tensão e medo. Todos os jovens/trazem as notícias. [42] Os direitos civis derretem, derretem. A luta de classes, marca registrada do thatcherismo – Dividir para Governar as tribos desunidas – acabou por fragmentar o tecido social britânico além do ponto onde ainda haveria remendo possível. Quem sabe? Pode ser um irmão esquisito, “de volta para casa com seus Beatles e seusStones/nunca entendemos aquele negócio de revolução/que saco, tantas pontas. Mas do outro lado da cerca, o cara ainda encontra aquelas crianças nas quais se cospe/e elas tentando mudar o mundo delas/elas sabem muito bem que estão atravessando. [43]

Em fabuloso golpe de Relações Públicas – um single lançado sem mais nem menos, em janeiro passado, quando completou 66 anos, depois de 10 anos de silêncio – Bowie tentou responder à pergunta “Onde estamos agora?” [44] Olha para trás, para os seus dias de Berlim nos anos 1970s – que geraram a fabulosa trilogia de Low, Heroes e Lodger. Só ela, no que tenha a ver com modelar a visão do tempo do Ocidente, essa trilogia foi tão influente quanto a derrubada do Muro de Berlim. “Às vezes você fica tão só/às vezes você não chega a lugar algum/Vivi pelo mundo todo/Vivi em todos os lugares”. [45]

Muito estranhamente, cada dia mais estranhamente, Bowie permaneceu em silêncio durante todos os anos da Guerra Global ao Terror. Mas “os rapazes continuam agitando, os caras sempre dão um jeito” [46] – ainda que o terror, incluindo guerras clandestinas e de drones, já sejam a nova normalidade.

Como encontrar a saída? Seja como for, nesse vale de lágrimas desiguais, “Oh, não, amor!/você não está só/não importa o quê ou quem você tenha sido/não importa quando ou onde tenha sido visto/Todas as facas parecem lacerar seu cérebro/Conheço isso, vou ajudá-lo a suportar a dor/você não está só”. [47]

Facas laceram agora gerações de cérebros Facebook/Google – de órfãos da verdadeira “primavera árabe” a legiões de europeus
condenados ao subemprego perpétuo. Não há, nem de longe, qualquer sinal de que “podemos ganhar deles/outra vez, outra vez, para sempre”. Afinal de contas “Somos nada e nada nos ajudará.” Mas a velha ordem não se dará por satisfeita. “Porque podemos ser heróis/por um dia”. [48]
(Redecastor)

Nenhum comentário:

Postar um comentário