terça-feira, 17 de julho de 2012

Paris

Chéri à Paris: O olhar dos outros By admin – 31/03/2012Posted in: Crónica, Cultura, Posts “Quer dizer que um dia você acordou: ‘que sol maravilhoso. Vou tomar um café, uma ducha e depois virar gay’” Por Daniel Cariello*, em Chéri à Paris O texto a seguir, eu escrevi para um concurso francês de roteiros de curta-metragem do qual participei há cerca de 3 anos. O nome do concurso era Le regard des autres, o olhar dos outros, e o tema era homofobia. O vencedor teria o filme rodado e exibido em cinemas e na televisão locais. Na condição de estrangeiro, decidi tratar do assunto mostrando que a discriminação sofrida pelos homossexuais (ou bi, ou trans etc) é, no fundo, muito parecida com a que existe contra os imigrantes. E se baseia na intolerância que temos com o que não se parece conosco. Se eu ganhasse, iria insistir para ter o Paulo César Pereio no papel do estrangeiro. Canalha por canalha, sou muito mais ele do que o Gérard Depardieu. – Dois amigos estão sentados em um café. Um é francês (FR), e o outro, estrangeiro (ES), com sotaque. O garçom chega. Um amigo pergunta pro outro. FR – Quer o quê? ES – Um café. FR – Dois cafés. – Diz pro garçom, que sai. ES – E aí, tudo bem? FR – Tudo. ES – Tá lá ainda? FR – Lá onde? ES – Naquele buraco que você trabalha. FR – Porra, precisa lembrar disso agora? ES – Cara, tem séculos que te falo pra você largar aquela merda. FR – Eu sei, eu sei. Mas você acha que é fácil arrumar um emprego decente? ES – E aquilo lá é decente? FR – Pelo menos dá pra pagar a cerveja. ES – Considerando o tamanho de vossa pança de chope, então parece que o senhor pelo menos está ganhando bem. – Vira o pescoço e fixa o olho na barriga do amigo. FR – Filho da puta… Os dois riem. ES – Por que você não larga tudo e monta uma barraca de crepe? FR – Hã? ES – Uma barraca de crepe. Crepe de queijo, de champignon, crepe suzette. Essas porcarias. Turista adora. FR – Eu sou uma catástrofe na cozinha. Até ovo frito eu queimo. ES – Junta a grana dessas cervejas aí – aponta para a barriga do outro – e contrata alguém pra trabalhar pra você. Quando o diabo criou o capitalismo, as regras foram bem definidas. FR – De que merda você tá falando? ES – Não sou eu. Max falava isso. FR – Max? ES – É. O cara que inventou essas teorias de comunismo. FR – Marx. Karl Marx. ES – Ele mesmo. Ele dizia que quem sabe, trabalha. Mas quem tem, manda. – Faz o sinal de dinheiro, quando diz “quem tem”. FR – Você é foda… Os dois riem. O garçom traz os cafés. ES – Viu o jogo domingo? FR – Vi. ES – E esse time, hein? FR – Porra. Os caras não sabem diferenciar uma bola de futebol de um taco de sinuca. ES – E você? Sabe qual é a diferença entre uma bola de futebol e um taco de sinuca? FR – Hã? ES – Senta em cima dos dois que você vai descobrir. O estrangeiro ri. O outro fica sem graça. FR – Sabe, tô pra te contar uma coisa. ES – Ganhou na loto e vai montar um harém em Ibiza? FR – Não, cacete. É sério. ES – Ih, que foi? FR – Não tô mais com a Marie. ES – Não? FR – Não. Tô com outra pessoa. ES – A Claire? FR – Não. ES – A Véronique? Vai dizer que pegou a Véronique? FR – Na verdade, não é uma mulher. O estrangeiro abre o olho grande e cola no fundo da cadeira. ES – O que você quer dizer? FR – Quero dizer isso mesmo que você está pensando. ES – Virou bichona? Tá enfornando o robalo? Sentando na cobra? FR – Porra, não dá pra falar sério com você. ES – Não dá pra falar sério é com você. Que história é essa de sair liberando o brioco agora? FR – Não é isso. ES – É o que, então? É amor? Vai dizer que tudo o que você sempre quis na vida foi enroscar seu bigode com outro? FR – Nem tenho bigode. ES – Você entendeu. FR – Eu tô namorando o Hugo, que te apresentei um tempo atrás. ES – O Hugo, aquele seu amigo? FR – Já é um pouco mais que amigo… ES – Ficou doido? Namorando um homem??? FR – Fala baixo. Tá chamando a atenção. ES – Você dá o rabicó e eu é que quero chamar a atenção? FR – Você não entende nada mesmo. ES – Entendo sim. Entendo que você tá louco. Porra, se fosse o Jacques, que gosta de pintar cerâmica… Ou o Julien, que inventou de fazer aula de dança… Mas você? Você vai ao estádio e toma cerveja. Até boxe eu já te vi assistindo na TV. Boxe! FR – Isso não se escolhe. Você simplesmente vai percebendo que é assim. E um dia você resolve admitir pra si mesmo. ES – Quer dizer que um dia você acordou: “ah, o sol está maravilhoso. Vou tomar um bom café, uma ducha e depois virar gay”. FR – Deixa pra lá. Achei que podia contar com você, meu melhor amigo. ES – E eu, que agora nem sei mais dizer se você é meu amigo ou minha amiga? Silêncio na mesa. O garçom chega e pergunta se querem mais alguma coisa. Ninguém responde. ES – Fala que você tá de sacanagem, fala. Diz que é brincadeira. FR – O que é que muda? ES – Muda tudo. A gente nunca mais vai poder sair de casal. Eu com a minha namorada e você com a sua. Ir pra um cinema, um restaurante. FR – A gente nunca fez isso. Você nunca tá namorando. ES – Nunca fez e nunca vai fazer. Pior ainda. E pra quem eu vou contar das mulheres que eu pego? Pra quem? FR – Porra, pra mim, claro. ES – Mas você é gay, cacete! FR – E você é um idiota. Sou eu ainda. A mesma pessoa, ó. – Diz isso e aperta o ante-braço do amigo, que faz um olhar de estranhamento. ES – Ô… FR – Quer saber? Vou nessa. Ele levanta, joga umas moedas na mesa e sai. O estrangeiro fica e chama o garçom. ES – Uma cerveja gelada, por favor. GR – O quê? ES – Uma cerveja gelada. GR – Desculpa, não entendo o que você quer. ES – Falei que quero uma cerveja. GR – O senhor poderia fazer a gentileza de falar francês? ES – Olha, vá à merda. – Ele sai também. O garçom mostra que entendia, e responde. GR – Sua mãe não te deu educação não? O estrangeiro sai à rua, olha para os lados, e vê seu amigo já meio longe. Ele corre para alcançá-lo. ES – Marc, Marc. FR – O que você quer agora? Vai perturbar outro, vai. ES – Tá a fim de ver o jogo no bar? A cerveja é por minha conta. FR – Hã? ES – Mas em outro. Naquele lá as pessoas são muito intolerantes. Marc sorri e coloca a mão no ombro do amigo, que olha meio atravessado, mas depois relaxa e coloca a mão no ombro do outro também. Eles vão andando de costas pra câmera. FR – A gente tem que ganhar esse jogo. ES – Basta eles jogarem como homens. FR – Ô… ES – Brincadeira, porra. – (*) Daniel Cariello é colaborador regular do Outras Palavras. Escreve a crônica semanal Chéri à Paris, Share (Outras Palavras)

Nenhum comentário:

Postar um comentário