sexta-feira, 13 de maio de 2011

Galeano

Modesta contribuição à luta entre o bem e o mal
Os diabos do diabo
por Eduardo Galeano

Esta é uma modesta contribuição à guerra entre o Bem e o Mal. O autor traz alguns kits de identificação que nos ajudam a identificar os diversos rostos do Príncipe das Trevas. Nesta amostragem só figuram os demónios de mais longa duração que, há séculos ou milénios continuam activos no mundo.
O DIABO É MUÇULMANO

Já Dante sabia que Mafoma era terrorista. Por alguma coisa o colocou num dos círculos do inferno, condenado à pena de fogo perpétuo. "Vi-o rachado" celebrou o poeta na Divina Comédia, "desde a barba até à parte inferior do ventre..."

Mais que um Papa testemunharam que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, mas eram sim um grande exército de demónios que crescia tanto mais quanto mais sofria os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.

Nos tempos actuais os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos que estripam. Mas, que seria de Deus, ao fim e ao cabo, sem inimigos? O medo manda, as guerras comem medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benvindos sejam os inimigos. Na idade Média, cada vez que cambaleava o trono, por bancarrota ou fúria popular, os reis denunciavam o perigo muçulmano, desencadeavam o pânico, lançavam uma nova cruzada e um remédio santo. Agora, há um pouquinho, não mais, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças à oportuna aparição de Bin Laden, o Satanás maior do reino, que nas vésperas da eleição anunciou, na televisão, que ia comer todos os meninos crus.

Aí pelo ano de 1564, demonólogo Johann Wier tinha contado os diabos que estavam a trabalhar na terra, a tempo inteiro, pela perdição das almas cristãs. Havia sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte e sete, que actuavam repartidos por setenta e nove legiões.

Muita água a ferver passou debaixo das pontes do inferno desde aquele censo. Quantos somam, hoje em dia, os enviados dos reinos das trevas? As artes teatrais dificultam a contagem. Estes dissimulados continuam a usar turbantes, para ocultar os cornos, e largas túnicas tapam as suas caudas de dragão, as suas asas de morcego e a bomba que levam debaixo do braço.

O DIABO É JUDEU

Hitler não inventou nada. Desde há dois mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas.

Como? Que Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? Como é que disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão para além da dúvida e não exigem maior evidencia que a sua própria existência. As coisas são como se disse que são, e diz-se porque se sabe: nas sinagogas dá ordens, e os judeus estão desde sempre dedicados a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles ocorreram bancarrotas económicas, crises financeiras e derrotas militares; foram eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as pestes.

Inglaterra expulsou-os sem deixar nem um, no ano de 1290, mas isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, de serem obedientes à caricatura tradicional e reproduzirem personagens judias segundo o molde sataníssimo da parasita sanguessuga e o avaro usurário.

Acusados de servir o Maligno, estes malditos passaram os séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois de Inglaterra foram sucessivamente banidos de França, Áustria, Espanha, Portugal e numerosas cidades suíças, alemãs e italianas. Os reis católicos, Isabel e Fernando, expulsaram os judeus, e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus tinham vivido em Espanha durante treze séculos. Levaram as chaves das suas casas. Ainda há quem as tenha. Nunca mais voltaram.

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus sempre foi um desporto europeu. Agora os palestinos, que nunca o praticaram, pagam a conta.

O DIABO É MULHER

O livro de Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomendava o mais desapiedado exorcismo contra o demónio que tem tetas e cabelos compridos. Dois inquisidores alemães, Henrich Kramer e Jakob Sprenger, escreveram-no, por encargo do Papa Inocêncio VIII, para fazer frente às conspirações demoníacas contra a Cristandade. Publicou-se pela primeira vez em 1486, e até finais do século dezoito foi o fundamento jurídico e teológico da Inquisição em vários países.

Os autores sustentavam que as bruxas, harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: "Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável." E demonstravam que "esses seres de aspecto belo, contacto fétido e mortal companhia" encantavam os homens e atraíam-nos com silvos de serpente, caudas de escorpião, para os aniquilar. E advertiam os incautos, citando a Bíblia: "A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. O seu coração uma rede e os seus braços correntes."

Este tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres para as piras da Inquisição, aconselhava a torturar todas as suspeitas de bruxaria. Se confessavam mereciam o fogo. Se não confessavam, também, porque só uma bruxa, fortalecida pelos seus conciliábulos com seu amante o Diabo, podia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.

O Papa Honório III tinha sentenciado que o sacerdócio era coisa de machos:
- As mulheres não devem falar. Os seus lábios levam o estigma de Eva, que perdeu os homens. Oito séculos depois, a Igreja católica continua a negar o púlpito às filhas de Eva.

O mesmo pânico faz com que os fundamentalistas muçulmanos lhes mutilem o sexo e lhes tapem a cara. E o alívio pelo perigo esconjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando:
- Graças senhor por não me ter feito mulher.

O DIABO É HOMOSSEXUAL

Desde 1446, os homossexuais marchavam para a fogueira em Portugal. Desde 1497, queimavam-nos vivos em Espanha. O fogo era o destino destes filhos do inferno, que do inferno vinham. Na América, em contrapartida, os conquistadores preferiam lançá-los aos cães. Vasco Nuñez de Balboa, que muitos lançou aos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, escutei o mesmo ao arcebispo de Montevideo.

Quando os conquistadores assomaram no horizonte, só os aztecas e os incas, nos seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade – e com a pena de morte. Os demais americanos toleravam-na, e em alguns lugares celebravam-na, sem proibição nem castigo.

Esta provocação insuportável devia desatar a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam os índios como moscas, não vinham da Europa, mas do Céu... Assim Deus castigava a libertinagem dos índios, que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade. Nem na Europa, nem na América, nem em lugar algum do mundo se fez a contagem dos muitos homossexuais condenados ao suplício ou à morte pelo delito de o ser. Nada sabemos dos tempos longínquos, e pouco ou nada, não mais, sabemos de agora.

Na Alemanha nazi, estes "degenerados culpados do aberrante delito contra a natureza" eram obrigados a trazer um triângulo rosado. Quantos foram parar aos campos de concentração? Quantos morreram ali? Dez mil, cinquenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.

A 18 de Setembro de 2001, o governo alemão e os bancos suíços resolveram "rectificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do holocausto". Mais de meio século demoraram a corrigir a omissão. A partir dessa data, puderam reclamar indemnização os homossexuais que tenham sobrevivido em Auschwitz e outros campos, se é que algum ainda estava vivo.
14/Outubro/2005

O original encontra-se em http://www.altercom.org/article129184.html.
Tradução de José Paulo Gascão.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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