quarta-feira, 29 de junho de 2011

Cesar Kiraly

Cesar Kiraly
Greenwich por uma metafísica da casa


Esta apresentação foi escrita um pouco depois de concluídas as páginas do Greenwich. De alguma forma sentimos que algo relevante tinha acontecido, e que os elementos antigos intrínsecos a nossa conversa não eram capazes de explicar. A nossa conversa cessou por algumas semanas. Greenwich não foi a nossa primeira conversa, mas foi o nosso primeiro trabalho. Há um acordo tácito entre nós dois de deixar que o silêncio resolva os momentos em que o rigor não nos satisfaz. Greenwich veio à luz, antecedido e sucedido por muitas cartas – uma delas, ironicamente, perdida – menos numerosas do que a vontade de dizer. Não é bem possível discernir o lado R. do lado K. São dois lados de uma mesma rua. Mas é certo que é raseliana a maturidade visual desses meridianos.

Pois bem, em Greenwich nos interessou a pluralidade dos meridianos, isso que nos permite bem multiplicar. Num certo sentido, interessou-nos mais o instituinte meridiano, do que o instituído. Dizemos dessa forma, porque há uma política nos meridianos, aquela que nos faz preferir Greenwich a Paris. Mas, sobretudo, Greenwich é o nome, e apenas o nome, do processo espiralado de enunciados – pictóricos, portanto – passionalmente orientados – mistura de paixão e tinta – circundantes a um eixo com algum deslocamento. Dessa forma, Greenwich para nós é o nome de um meridiano instituinte. Há algo em sua metafísica de uma Ilha flutuante. Um lugar mais ou menos oscilante, mas sempre uma região. Nosso meridiano é como todo meridiano. Ainda que ele nasça de um marco em deslocamento. O seu corpo também é feito para servir de referência. Assim, ainda que nos percamos do meridiano, podemos, sem querer, encontrarmo-nos pisando por cima dele, podemos encontrar, de soslaio, o aviso de que estamos por cima dele, passando.

Dois são os personagens do nosso meridiano. O senhor B. é um antigo amigo de R., encontrado ferido no fundo de uma piscina. Este evento encontra abrigo na memória de K. acerca dos desafios à própria asma. Um vez que sempre esteve buscando bonecos perdidos na abissalidade das piscinas. O senhor B. é um meridiano, posto ter passado muitas vezes pelas mãos resgatadoras de K., mas, sobretudo, por ter sido escolhido a relicário por R. A senhora B. fora encontrada absolutamente intacta. Ainda que exista um Walter Benjamin no senhor B., não há casamento entre os B. Eles são parecidos e isto os une. O B. da senhora B. não é mais desconhecido do que o do senhor B. O meridiano não é uma semelhança de família, mas de espectros. São os fantasmas os juntadores de semelhantes.



A biografia Walter Benjamin do senhor B. lhe confere um corpo todo lanhado. Esses antigos confrontos com crianças, levados aos estupor do abandono, foram cuidadosamente preservados por R. A senhora B. não é menos acidentada, algo nos leva a crer que viveu muito mais do que o senhor B., mas suas marcas são meridianamente difundidas em suas cores doces, a leveza de seus sapatos, a amarradura eficiente de seus cabelos castanhos e as róseas circunferência em suas bochechas. O modo doce de difundir as marcas pela roupa fez com que a senhora B. tivesse uma disponibilidade virtuosa ausente no senhor B. A lacuna do senhor B., ao ostentar as marcas, ao ter como destino uma cabeça já aberta, o impede de se vestir para a senhora, com a senhora se veste virtuosamente para o senhor, ou de retirar o cabelo para fazer a meridiana lacunosa uma evidência. Nesse sentido é que Greenwich é um livro sobre o acidente lacuna. O jogo de dados é lacuna. O encontro entre as lacunas e a sorte, par hasard, é o que torna uma quebra lacunar necessária como uma piscada de olhos. A frivolidade da quebra não nos interessa.

A lacuna não é uma falta. Não tem uma natureza. A lacuna não tem princípio interno de atividade. Ela não se expande para além do seu meridiano. Não é repetição. Interrompe-se, posto que é colocada. Pode até mesmo ser promovida por um ser em estado de falta, mas como poderia sê-lo por qualquer outro estado de ser. A verdade da lacuna não é do sujeito, mas do tipo. Isso, a lacuna é a existência final do aspecto tipográfico da verdade. Vejamos que uma lacuna pode ser arredondada, como esta ( ), ou pode ter quinas, como estas [ ]. Greenwich é a manifestação de um tipo doce, possui personagens ironicamente quase-santos, sob luz alta. A lacuna, todavia, pode ser indicada por isto _____.

Mas a lacuna não precisa se restringir a um kairós cronológico de colocação instituinte. Nessa primeira modalidade a [ ] é inserida de modo a revelar o sentido pelo vazio. Há algo a ser esvaziado para permitir a compreensão. – A lacuna é a travessia do Alfeu a nado – . A lacuna pode ser um encontro marcado, em página branca ou preta. Ela pode ser uma tomada de posição no tempo. Mas também pode ser a projeção de um problema.

A cartomante que diz: - Mardi, Mercredi où Dimanche. Será sempre vencida pelo enxadrista duchampiano a sugerir: - Ora, Mardi não está lá, ou está? Aquilo que se encontra é sempre maior ou menor, e a lacuna mostra essa verdade. – Qual o tamanho do seu amor? [ ]. Dizer maior ou menor representa pouco pela tola exigência do ponto de referência. Porque não menos tolo seria perguntar: - Maior ou menor do que o quê? O meridiano da lacuna é a própria referência. A beleza da lacuna é que ela é, em seu tipo, ao mesmo tempo, cedo e tarde demais.

Publicação selecionada pela Galeria Gravura Brasileira para participar da SP Estampa de 2011.

Greenwich [Livro de artista de Rebeca Rasel e Cesar Kiraly]. Colagem, fotografia e impressão em papel canson. Tiragem: P.A + 7. Dimensões: 18x13cm. 2011.

Para Comprar Greenwich escreva para rebecarasel@gmail.com
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