quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Nazismo

Desnazificação na Alemanha: passado, presente, e futuro
Em 1951, sob o governo de Konrad Adenauer, foi proclamado o fim da "desnazificação" na então Alemanha Ocidental. Houve uma anistia e muitos ex-integrantes das SS e do partido nazista foram reintegrados na vida política e burocrática do país. Isso não significou, porém, o fim do "acerto de contas com o passado" que continua até hoje.
Flávio Aguiar

Oficialmente, o termo “Desnazificação” (em alemão, “Entnazifizierung”) denomina um procedimento iniciado pelos aliados que ocupavam a Alemanha e a Áustria depois do fim da guerra, em 1945, e que durou, no lado Ocidental, até 1951. Também houve uma “Desnazificação” no lado Oriental (ocupação soviética), mas com procedimentos diferentes.

O conceito envolvia a remoção dos envolvidos com o regime nazista de postos de influência na política, na economia, no aparato de estado (tribunais, agências de governo), na cultura e na mídia, além da destruição ou remoção de símbolos nazistas. No lado Oriental, houve também a prática (que no início também houve do lado Ocidental) da manutenção de campos de prisioneiros. Naquele lado, 43 mil prisioneiros morreriam nesses campos, distribuídos inclusive dentro da União Soviética.

No lado Ocidental, houve, sobretudo, duas frentes de “Desnazificação” (isso depois do Julgamento de Nuremberg, em que os maiores acusados de crimes de guerra foram julgados). Na primeira, houve um processo de “limpeza” na mídia, na propaganda, nas editoras, nas escolas, etc., que envolveu desde a apreensão de destruição de livros (cerca de 30 mil obras) que pregavam a guerra, o nazismo, o racismo, até a censura na mídia de qualquer crítica aos ocupantes vencedores, pelo menos durante os anos iniciais do procedimento.

A segunda frente foi a jurídica, empregada contra todos os que, até o fim da guerra, tinham completado 18 anos e eram acusados e depois considerados (ou não) como “grandes responsáveis”, “responsáveis”, “responsáveis menores”, “simpatizantes” ou ainda “absolvidos”.

Já a partir de 1946 foram instituídos 545 tribunais civis alemães, que julgaram cerca de 900 mil casos. Entretanto, a partir de 1948, com o início da Guerra Fria, o foco Ocidental passou a se concentrar no Leste.

Inquéritos e julgamentos foram apressados, em alguns casos até negligenciados. Tudo isso levou, em 1951, sob o governo de Konrad Adenauer, à proclamação do fim da “Desnazificação” no Ocidente. Em 1952 houve a proclamação de uma anistia que envolveu quase 800 mil dos acusados, sendo 3000 ex-membros das AS, SS e do Partido Nazista. Muitos foram reintegrados na vida política, burocrática, até policial do novo regime.

No lado Oriental também houve um “esquecimento” progressivo da questão. Muitos ex-policiais nazistas foram integrados à Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental.

Mas o fim da “Desnazificação” não significou o fim do “Vergangenheitbewältigung”, que pode ser livremente traduzido por “acerto de contas com o passado”. Essa idéia, animou, por exemplo, muitos dos movimentos de 68 na Alemanha, através da pergunta: “Papai (ou mamãe, vovô, vovó, tio, tia, professor, professora, etc.), o que você fazia durante o nazismo?”.

E, de diferentes maneiras, esse “acerto de contas” continua até hoje.

Abaixo, citamos alguns exemplos recentes.

1) O caso Rademacher. Documentos da CIA, recém revelados, evidenciam que o “Bundesnachrichtendienst” – Serviço Federal de Informação – Ocidental empregou o ex-nazista Franz Rademacher em sua folha de serviços como espião na Síria na década de 60. Como funcionário do Ministério de Relações Exteriores, Rademacher foi um dos encarregados da “questão judaica”. Foi despachado para Belgrado em outubro de 1941 para resolver in loco uma pendência entre a Wehrmacht e a SS, o que resultou no assassinato lá mesmo de 1.300 judeus. Além disso, ele promoveu ou colaborou com a deportação para campos de extermínio de judeus da França, Bélgica e Holanda.

Depois da guerra, ele conseguiu escapar do Julgamento de Nuremberg, mas foi julgado por um tribunal alemão em 1952. Condenado a 3 anos e 4 meses de prisão (!), conseguiu apelar e responder ao novo processo em liberdade(!). Fugiu primeiro para a França, e depois de uma rota obscura, em que passou até pela Argélia (onde, parece, traficou armas), acabou na Síria. Lá foi contatado e recrutado por outro ex-nazista, Hans Rechenberg, que trabalhava no BND, para serviços de espionagem. Acabou preso na Síria e depois de servir alguns anos na prisão, voltou para a Alemanha, onde viu seu processo reaberto. Entretanto morreu em 1973, antes que este chegasse ao fim. A propósito, o BND também foi acusado de proteger Walther Rauff, o inventor de uma câmara de gás transportável.

2) O caso Demjanjuk. “John” Demjanjuk, hoje com 91 anos, foi deportado em 2004 dos Estados Unidos, onde se refugiara, para a Alemanha, acusado de crimes de guerra em Sobibor, campo de extermínio na Polônia. Demjanjuk era guarda no campo. Em 12 de maio de 2011 foi condenado a 5 anos de prisão. Tendo apelado, responde ao processo em liberdade, mas não pode sair da Alemanha. Sobibor era um campo usado, como Belzec, Chelmno e Treblinka, exclusivamente para o extermínio. Por isso, Demjanjuk tornou-se o primeiro condenado sem culpa formada por um assassinato específico.

Promotores alemães esperam usar o seu caso como exemplo para reabrir outros que estão engavetados. Uma dificuldade: quem completou 18 anos até o fim da guerra, em 1945, hoje está com pelo menos 84 anos completos. Por isso, se novos casos desses vierem à tona, possivelmente estaremos diante dos últimos julgamentos de pessoas diretamente envolvidas com o nazismo antes ou durante a Segunda Guerra.

3) O “caso do Partido Pirata”. Mas a história do “acerto de contas com o passado” não pára aí. Recentemente o Partido Pirata fez sucesso em Berlim, ao conseguir 8,9% dos votos na última eleição parlamentar e eleger 15 deputados para a Câmara da cidade. Pesquisas recentes, em nível nacional, mostram que ele teria 8% dos votos, mais do que suficiente (o mínimo é 5%) para integrar o Bundestag, o Parlamento Nacional. O foco caiu sobre ele, evidentemente. E agora, dois de seus membros são acusados de terem pertencido ao NPD, partido definido pelo próprio Serviço Federal de Inteligência como “revisionista [da história], racista e antissemita”.

Em Munique, Valentin Seipt renunciou à presidência regional depois da acusação. Matthias Bahner, de Mecklenburg-Pomern, reconheceu que, com 18 anos, entrou no NPD, mas saiu um ano depois, em 2004. Continua no cargo, e a direção do partido defende que “ninguém que aprendeu com seus erros deve ser condenado por seu passado”. Outro membro do partido, Bodo Thiesen, é acusado de citar com freqüência autores que negam o Holocausto, e há reportagens afirmando que ele mesmo teria expressado dúvidas pessoais sobre a ocorrência do mesmo. A direção do partido move uma ação de expulsão contra ele, mas ela se arrasta, e agora há quem tema que isso venha a ser usado contra o PP em eleições futuras, se o caso não for encerrado rapidamente.

Tudo isso mostra que o “acerto de contas com o passado” ainda está longe de terminar, sobretudo, porque envolve, antecipadamente, um acerto de contas com o futuro.



Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.


(Carta maior)

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