quinta-feira, 30 de junho de 2011

Pensamentando

En el bar la vida es más sabrosa

René Rodríguez Soriano (MEDIAISLA, colaboración para ARGENPRESS CULTURAL

«Crónicas de bar» es un fresco a través del cual el autor nos coloca frente a ese espejo del que hablaba su sabio pariente; aquéllos, cuyas imágenes cada vez nos imitan menos

“…y el mar será una magia entre nosotros”. Jorge Luis Borges

El bar es una ventana abierta que borra de un plumazo todas las fronteras del mundo; en él convergen, tuteándose, sobreponiéndose -voz con voz, hallazgo con hallazgo- las ciencias y las artes, los barcos y las fresas, los duendes y los contertulios. Fuera de él, la realidad es un simple artificio del recuerdo, memoria de otros tiempos y otros sueños que se baten entre el azar y lo posible; “es el confesionario más democrático de todos los que existen”, nos dice Edgar Borges en sus Crónicas de bar (Milrazones, 2011), luego de su dilatado vagar de bar en bar por las noches de Asturias.

El libro, conformado por 21 crónicas, en las que desfilan una serie de personajes tan reales e inciertos como La Maga y Paulina Rubio o Pablo de Tarso y Eduardo Galeano, el cronista va de lo real a lo imaginado sin cambios bruscos de tonalidades ni de mundos (esa lección de ambigüedad tan clara que nos legara Cervantes), en un constante zigzaguear lleno de luces aún dentro de las más lacónicas penumbras:

“En los cafés, como en los bares, se intenta arreglar el mundo; en cada mesa, así como en las barras, van y vienen las soluciones del día (mientras, otros nos enredan la vida a puertas cerradas)”. Pág. 37

“Si en las escuelas se enseñara jazz, el planeta sería un lugar más libre y armónico”. Págs. 35 y 36

“…si el manicomio de las megaciudades sigue en auge, los bares (o cafeterías) serán las trincheras de los vagabundos de la palabra…” Pág. 90

¿Paradójico? La sarta de utilidades inútiles con las que la tecnología nos ha ido acomodando el mundo no hacen otra cosa que aumentarnos las falencias; cada día es más reducido el número de palabras que utilizamos para comunicarnos con los escasos amigos o conocidos con quienes tenemos la dicha de compartir; del Light hemos pasado al Mix y ya casi ni siquiera sabemos si es de gandul con fríjoles o de café, la cafeína que nos venden realmente por el Drive Thru de las grandes cadenas con las “que la estupidez nos está arrebatando el siglo…”

“¿De quién escucharemos cuentos el día en que cada quien quede atrapado en su pedazo de isla?” Pág. 31

“…la Cultura en mayúscula será guardada por unos cuantos para recordar la estupidez de este tiempo como la alcabala que nos pusieron quienes manipulan los hilos de la historia”. Pág. 69

Crónicas, relatos. Igual da, Crónicas de bar es un fresco a través del cual el autor nos coloca frente a ese espejo del que hablaba su sabio pariente; aquéllos, cuyas imágenes cada vez nos imitan menos, confirmándonos una vez más que nadie puede escapar a ninguna parte y que «frente a la confusión mundial, lo mejor es esconderse en casa y mirar hacia dentro». Pincelada tras pincelada, pieza tras pieza, las 21 estaciones que nos llevan noche a noche por los bares asturianos, se las arreglan para ponernos en contacto con un infinito mundo de ambientes y lugares que cubren y descubren cientos de ciudades y lugares conocidos y por conocer. Y vaya con los contertulios, los que acuden al llamado del autor que va libreta en mano alborotando albas y ocasos o los que aparecen, simplemente (Franz Kafka, Javier Solis, Marilyn Monroe, Che Guevara, Daniel Santos, Dalí, Paul Auster, Ana Karenina, Errol Flynn, Neo o Eddie Palmieri), derramándose de la copa de la imaginación, creando formas: «Hace rato que el peso de la realidad aplastó a los mitos, ahora va por las personas».

Así se lee; casi creo que se oye, Crónicas de bar se escucha en technicolor como la radio de antes, la que narró los primeros viajes a la luna. Puedo oír, sentir y hasta palpar los bordes de las cucharillas y los platos; contar los pliegues de los afiches del Che y de Marilyn o sentir cuando entran, furtivos, juguetones, Cortázar, Charlie Parker y el Inquieto Anacobero de Borinquen. Vi el gusano de Kafka, husmear y arrastrarse entre las copas y apurar un carajillo. Es mi opción, “en Homero la poesía y la narración resultan lo mismo”, ha dicho García Ponce. Cada bar habita y es habitado por todos los bares anteriores y en ellos se encuentra y se reproduce, en vivo y a todo color, una forma sintética del mundo en el que queremos vivir (o por lo menos leernos).

René Rodríguez Soriano. (Constanza, República Dominicana, 1950). Poeta, periodista y crítico literario.

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Publicado por ARGENPRESS en 15:02
Etiquetas: Crítica literaria, René Rodríguez Soriano

Meio Ambiente

Eduardo Galeano aponta quatro mentiras sobre o ambiente
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– 17 de maio de 2011
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A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem
Quatro frases que aumentam o nariz do Pinóquio

1- Somos todos culpados pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está feito um caco. “Somos todos responsáveis”, clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade.
Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao “sacrifício de todos” nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio – não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam.
Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, “faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades”. Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2- É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. “Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas”, esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: “os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro.”
O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete.
A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3- Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas… As empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco-92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil.
Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.
4- A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: “Honrarás a natureza, da qual tu és parte.” Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo.
Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão.
Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer.
Eduardo Hughes Galeano, jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História. Sua obra mais famosa é o livro “Veias Abertas da América Latina”.
(outras Palavras)

Millôr, o gênio de direita

CONPOZISSÕIS IMFÃTIS: O RELÓGIO
"O relógio é o que anda mas não tem pernas. Isto é, tem duas pernas, como a gente, mas coladas na barriga, lá dele. Serve pra gente ver que está atrasado pro colégio de manhã, e pra saber quanto tempo falta pra acabar a aula. O relógio inda é muito bom pra gente rir quando é o do papai, que a gente adianta meia hora e então o papai salta da cama e faz tudo correndo, pra não perder o trabalho, mas de noite quando ele chega vem com aquela cara e logo perguntando qual foi de vocês que fez aquela gracinha, de novo hoje de manhã? Fora disso o relógio só é bom quando quebra e a gente vê que lá dentro ele está cheio de carrapeta."

********

A criança é uma coisa assim bem depressa, assim bem macia, cheia de muitas palavras erradas que todo mundo ri. Elas gostam bastante só de brincar e têm medo de apanhar porque estão sempre fazendo aquilo que não devem. Elas querem tudo que vêem e pedem com a mão e com o olho. É muito difícil obrigar uma criança a se lavar, agora a se sujar não é não. Criança é muito teimosa e nunca faz o que os mais velhos mandam de modo que tem muita que ninguém quer. É por isso que eu nunca vi pai e mãe sem filho mas tem muito filho sem pai nem mãe."

Celso Amorim

Celso Amorim, revoltas árabes e Harvard
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– 10 de maio de 2011
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O ex-chanceler brasileiro descreve, em crônica, a perplexidade do ambiente acadêmico norte-americano diante de mudanças que perturbam a antiga sensação imperial do país
Publicado em CartaCapital
Da ampla janela do escritório/mansarda que me foi atribuído na Harvard Kennedy School enxergo o topo de outros edifícios que fazem parte do complexo da universidade. A forma abobadada e o colorido dos campanários fazem lembrar cúpulas que se veem em outras paragens, meridionais ou mesmo orientais (Maetternich dizia que o Oriente começava na Rnnweg, na saída de Viena).
Tudo isso dá um ar pacífico e multicultural à paisagem, conducente à reflexão e ao debate. É verdade que esta atmosfera leve não se reflete sempre nos temas dos debates, em geral concentrados em situações nada tranquilas, como as duas guerras em que este país está envolvido e em outros conflitos potenciais. A Líbia, embora muito presente no noticiário, surge menos nas discussões, possivelmente em razão do seu baixo valor estratégico, apesar da tragédia humanitária que a intervenção da Otan não diminuiu em nada, como bem assinalou o ministro Antonio Patriota.
Há neste país uma não disfarçada perplexidade com as mudanças imprevistas em operação no mundo, em especial no Oriente Médio. A estratégia dos EUA para essa região há anos está baseada em conceitos, como o de “árabe moderado” (por oposição a árabe fundamentalista ou radical, supõe-se), que hoje já não têm sustentação na realidade. Na verdade, nunca tiveram. O que significa ser um árabe moderado? Ou ser um árabe radical? A derrubada de Hosni Mubarak pela revolução popular tornou o paradigma de “líder árabe moderado”, que ele mais que ninguém encarnava, definitivamente obsoleto. A mudança no Egito, como assinalei desde o início – em que pese a brutalidade de outras situações, inclusive em tradicionais aliados dos EUA, como o Bahrein e o Iêmen –, é o fato de maior impacto geopolítico na questão que é chave para todas as outras: o conflito Israel-Palestina.
O acontecimento de maior relevo dos últimos dias, por suas implicações de médio e longo prazo, é o acordo entre as lideranças do Fatah e do Hamas. A reconciliação entre as duas facções antagônicas, resultado direto das outras mudanças na região, principalmente no Egito, mas, de forma paradoxal, também na Síria, é a única via para se chegar a uma paz duradoura entre árabes e israelenses. Claro, isso exigirá uma evolução por parte do Hamas, que terá de aceitar a existência do Estado de Israel, um fato da história que nenhuma ideologia pode pretender apagar. Já o governo israelense tem de compreender – e, quanto mais rápido o fizer melhor para todos, sobretudo para Israel – que um acordo que venha abarcar todos os segmentos representativos da população palestina terá muito mais possibilidade de ser um acordo durável. Isso era verdade antes das atuais mudanças. A expectativa de que Tel-Aviv pudesse chegar a um entendimento com a Autoridade Palestina, que somente controlava, ainda assim parcialmente, uma parte do território, que depois fosse imposto à outra facção (expectativa, diga-se de passagem, também nutrida pelos negociadores da Autoridade Palestina), sempre foi, a meu ver, ilusória.
Hoje, com um governo egípcio onde a opinião popular – inclusive aquela, muito ponderável, da Irmandade Muçulmana – terá em qualquer circunstância mais influência, em que a ilusão torna-se mera fantasia. Goste-se ou não, é essa a realidade que terá de ser enfrentada, não só por Israel, mas por qualquer potência que pretenda ter influência na região. E que ninguém se iluda, neste particular, com a situação na Síria. Todos (ou ao menos todos aqueles que se consideram democratas e progressistas, no Brasil e alhures) desejamos um desfecho que ponha fim à brutal repressão que Bashar al-Assad desencadeou (contrariando expectativas de muitos que, inclusive no Ocidente, viam nele um líder modernizador e aberto ao diálogo, que lutava para se libertar do aparato herdado do pai).
Mas um governo mais democrático em Damasco não significará necessariamente um governo mais fácil de lidar do ponto de vista de Washington e de Tel-Aviv, ao menos de acordo com a estratégia seguida até aqui. A maior repressão empreendida pelo pai de Bashar foi contra a Irmandade Muçulmana. Diferentemente dos filmes de mocinho e bandido, que parecem constituir a lente pela qual uma parte da opinião pública e, infelizmente, dos próprios tomadores de decisão, vê o mundo, a realidade é mais complexa.
Por falar nisso, passou despercebida, creio, da nossa mídia uma interessantíssima análise do ex-presidente sul-africano Thabo M’Beki sobre o ocorrido na Costa do Marfim. Para o ex-mandatário, mediador do conflito, antes dos trágicos episódios que culminaram com o bombardeio por helicópteros franceses – devidamente autorizados pela ONU, ao que parece – à residência presidencial, a história é bem diferente daquela contada pela mídia ocidental. Segundo M’Beki, os grandes perdedores teriam sido a ONU e a União Africana. Os ganhadores, naturalmente, os defensores de interesses coloniais e neocoloniais. Vale conferir.
NR: A coluna de Amorim foi escrita no sábado 30, antes da morte de Bin Laden. O fato não altera, porém, o teor das análises.
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(Outras Palavras)

Líbia

Líbia: Perguntas que é preciso colocar em cada guerra
Desde 1945, os Estados Unidos já bombardearam algum país vinte e sete vezes. E, a cada vez, afirmaram que estes atos de guerra eram "justos" e "humanitários". Hoje, dizem-nos que a guerra na Líbia é diferente das precedentes. O mesmo que foi dito da anterior. E da anterior. E de todas as outras vezes. Não estamos já na hora de pôr a preto e branco as perguntas que é preciso colocar em cada guerra para não deixar-se manipular? O artigo é de Michael Collon.
Michael Collon
Michael Collon já publicou vários livros sobre as estratégias da guerra dos EUA e da mídia nos conflitos precedentes, apresenta uma análise global do caso líbio, em três partes: I: Perguntas que é preciso colocar em cada guerra; II: Os verdadeiros objetivos dos EUA vão mais além do petróleo; III: Pistas para atuar. Publicamos, a seguir, a primeira parte deste ensaio:

PERGUNTAS QUE É PRECISO COLOCAR EM CADA GUERRA

27 vezes. Vinte e sete vezes os EUA bombardearam algum país, desde 1945. E cada vez tem-nos afirmado que estes atos de guerra eram "justos" e "humanitários". Hoje, dizem-nos que esta guerra é diferente das precedentes. O mesmo que foi dito da anterior. E da anterior. E de cada vez. Não estamos já na hora de pôr a preto e branco as perguntas que é preciso colocar em cada guerra para não deixar-se manipular?

Há sempre dinheiro para a guerra?
No país mais poderosos do globo, 45 milhões de pessoas vivem na extrema pobreza. Nos EUA, escolas e serviços públicos estão ruindo porque o Estado "não tem dinheiro". Na Europa, também acontece o mesmo, "não há dinheiro" para as pensões ou para a promoção do emprego.

Porém, quando a cobiça dos banqueiros desencadeia a crise financeira, então, em só uns dias, aparecem bilhões para os salvar. Isto permitiu aos banqueiros dos EUA repartirem no ano passado US$ 140 bilhões de lucros e bônus a seus acionistas e especuladores.

Também para a guerra parece fácil encontrar bilhões. Ora bem, são nossos impostos que pagam estas armas e estas destruições. É razoável converter em fumaça centenas de milhares de euros em cada míssil ou esbanjar cinquenta mil euros por hora de um porta-aviões? Ou será porque a guerra é um bom negócio para alguns? Ao mesmo tempo, uma criança morre de fome a cada cinco segundos e o número de pobres não cessa de aumentar no nosso planeta, apesar de tantas promessas.

Qual a diferença entre um líbio, um bareinita e um palestino? Presidentes, ministros, generais, todos juram solenemente que seu objetivo é unicamente salvar os líbios. Mas, ao mesmo tempo, o sultão do Barein esmaga os manifestantes desarmados, graças aos dois mil soldados sauditas enviados pelos EUA! Ao mesmo tempo, no Iêmen, as tropas do ditador Saleh, aliado dos EUA, matam 52 manifestantes com suas metralhadoras. Estes fatos ninguém os põe em dúvida, mas o ministro dos EUA para a guerra, Robert Gates, acabou de declarar: "Não acho que seja o meu papel intervir nos assuntos internos de Iêmen".(1)

Por que estes dois pesos e duas medidas? Por que Saleh acolhe docilmente a 5ª Frota dos EUA e diz sim a todo o que Washington ordenar? Por que o regime bárbaro da Arabia Saudita é cúmplice das multinacionais petrolíferas? Será que existem "bons ditadores" e "maus ditadores"? Como os EUA e a França podem pretender ser "humanitários"? Quando Israel matou dois mil civis nos bombardeios sobre Gaza, eles declararam uma zona de exclusão aérea? Não. Decretaram alguma sanção? Nenhuma.

Ainda pior, Solana, então responsável pelos Assuntos Exteriores da UE declarou em Jerusalém: "Israel é um membro da UE sem ser membro de suas instituições. Israel faz parte ativa de todos os programas de pesquisa e de tecnologia da Europa dos 27". Acrescentando ainda: "Nenhum país fora do continente tem o mesmo tipo de relacionamentos que Israel com a União Européia". Neste ponto, Solana tem razão: A Europa e seus fabricantes de armas colaboram estreitamente com Israel na fabricação de 'drones', mísseis e outros armamentos que semeiam a morte em Gaza.

Recordemos que Israel, que expulsou 700 mil palestinos das suas aldeias, em 1948, se recusa a devolver-lhe seus direitos e continua cometendo inumeráveis crimes de guerra. Sob esta ocupação, 20% da população palestina atual está ou passou pelas prisões israelenses. Mulheres grávidas foram obrigadas a darem à luz atadas ao leito e reenviadas imediatamente às suas celas com os bebês. Esses crimes são cometidos com a cumplicidade dos EUA e da UE.

A vida de um palestino ou de um barenita vale menos do que a de um líbio? Há árabes "bons" e árabes "maus"?

Para os que ainda acreditam na guerra humanitária...
Em um debate televisionado que tive com Louis Michel, ex-ministro belga dos Assuntos Exteriores e Comissário Europeu para a Cooperação e o Desenvolvimento, este me jurou, com a mão no peito, que esta guerra tinha como objetivo "pôr de acordo as consciências da Europa". Era apoiado por Isabelle Durant, líder dos Verdes belgas e europeus. Dessa forma, os ecologistas ("peace and love") viraram belicistas!

O problema é que a cada vez mais nos falam de guerra humanitária e que gente de esquerda como Durant se deixa enganar. Não fariam melhor em ler o que pensam os verdadeiros líderes dos EUA em vez de olharem e assistirem a TV? Escutem, por exemplo, a propósito dos bombardeios contra o Iraque, o célebre Alan Greenspan, durante muito tempo diretor da Reserva Federal dos EUA. Greenspan escreve em suas memórias: "Sinto-me triste quando vejo que é politicamente incorreto reconhecer o que todo mundo sabe: a guerra no Iraque foi exclusivamente pelo petróleo" (2). E acrescenta: "Os oficiais da Casa Branca responderam-me: ‘pois, efetivamente, infelizmente não podemos falar de petróleo’". (3)

A propósito dos bombardeios sobre a Iugoslávia escutem John Norris, diretor de Comunicações de Strobe Talbot que, nesse então, era vice-ministro dos EUA dos Assuntos Exteriores encarregado para os Bálcãs. Norris escreve em suas memórias: "O que melhor explica a guerra da OTAN é que a Iugoslávia se resistia às grandes tendências de reformas políticas e econômicas (quer dizer: negava-se a abrir mão do socialismo), e esse não era nosso compromisso com os albaneses do Kosovo". (4)

Escutem, a propósito dos bombardeios contra o Afeganistão, o que dizia o antigo ministro de Assuntos Exteriores, Henri Kissinger: "Há tendências, sustentadas pela China e pelo Japão, de criar uma zona de livre-câmbio na Ásia. Um bloco asiático hostil, que combine as nações mais povoadas do mundo com grandes recursos e alguns dos países industrializados mais importantes, seria incompatível com o interesse nacional americano. Por estas razões, a América deve manter a sua presença na Ásia..." (5)

O que vinha a confirmar a estratégia avançada por Zbigniew Brzezinski, que foi responsável pela política exterior com Carter e é o inspirador de Obama: "Eurasia (Europa+Ásia) é o tabuleiro sobre o qual se desenvolve o combate pela primacia global. (?) A maneira como os EUA "manejam" a Eurasia é de uma importância crucial. O maior continente da superfície da terra é também seu eixo geopolítico. A potência que o controlar, controlará de fato duas das três grandes regiões mais desenvolvidas e mais produtivas: 75% da população mundial, a maior parte das riquezas físicas, sob a forma de empresas ou de jazidas de matérias-primas, 60% do total mundial". (6)

Nada aprendeu a esquerda das falsidades humanitárias transmitidas pela mídia nas guerras precedentes? Quando o próprio Obama falou, tampouco acreditaram nele? Neste mesmo 28 de março, Obama justificava assim a guerra da Líbia: "Conscientes dos riscos e das despesas da atividade militar, somos naturalmente reticentes a empregar a força para resolver os numerosos desafios do mundo. Mas quando os nossos interesses e valores estão em jogo, temos a responsabilidade de agir. Vistos os custos e riscos da intervenção, temos que calcular, a cada vez, nossos interesses ante a necessidade de uma ação. A América tem um grande interesse estratégico em impedir que Kadafi derrote a oposição".

Não está claro? Então alguns vão e dizem: "Sim, é verdade, os EUA não reagem se não virem nisso o seu interesse. Mas ao menos, já que não pode intervir em todos os sítios, salvará àquela gente" Falso. Vamos demonstrar que são unicamente seus interesses os que procura defender. Não os valores. Em primeiro lugar, cada guerra dos EUA produz mais vítimas do que a anterior (um milhão no Iraque, diretas ou indiretas). A intervenção na Líbia, prepara-se para produzir mais...

Quem se nega a negociar?
Desde o momento em que colocarem uma dúvida sobre a oportunidade desta guerra contra a Líbia, imediatamente serão culpados: "então recusam-se a salvar os líbios do massacre? Assunto mal proposto. Suponhamos que todo o que se nos tem contado fosse verdade. Em primeiro lugar, pode-se parar um massacre com outro massacre? Já sabemos que nossos exércitos ao bombardearem vão matar muitos civis inocentes. Inclusive se, como a cada guerra, os generais nos prometem que vai ser "limpa"; já estamos habituados a essa propaganda.

Em segundo lugar, há um meio bem mais singelo e eficaz de salvar vidas. Todos os países da América latina propuseram enviar imediatamente uma mediação presidida por Lula. A Liga Árabe e a União Africana apoiavam esta gestão e Kadafi tinha-a aceitado (propondo ele também que fossem enviados observadores internacionais para verificar o cessar-fogo). Mas os insurgentes líbios e os ocidentais recusaram esta mediação.

Por quê? "Porque Kadafi não é de confiar", dizem. É possível. E os insurgentes e os seus protetores ocidentais são sempre de confiar? A propósito dos EUA, convém recordar como se comportaram em todas as guerras anteriores, cada vez que um cessar-fogo era possível. Em 1991, quando Bush pai atacou o Iraque, porque este invadia o Kuweit, Saddam Hussein propôs se retirar e que Israel se retirasse também dos territórios ilegalmente ocupados na Palestina. Mas os EUA e os países europeus recusaram seis propostas de negociação. (7)

Em 1999, quando Clinton bombardeou a Jugoslávia, Milosevic aceitava as condições impostas em Rambouillet, mas os EUA e a OTAN acrescentaram uma, intencionadamente inaceitável: a ocupação total da Sérvia.

Em 2001, quando Bush filho atacou o Afeganistão, os talibãs propunham a entrega de Bin Laden a um tribunal internacional se eram apresentadas provas do seu envolvimento, mas Bush rejeitou a negociação.

Em 2003, quando Bush filho atacou o Iraque, sob o pretexto das armas de destruição em massa, Saddam Hussein propôs o envio de inspetores, mas Bush o recusou porque ele sabia que os inspetores não iam encontrar nada. Isto está confirmado na divulgação de um memorando de uma reunião entre o governo britânico e os líderes dos serviços secretos britânicos, em julho de 2002: "os líderes britânicos esperavam que o ultimato fosse redigido em termos inaceitáveis, de modo que Saddam Hussein o recusasse diretamente. Mas não estavam certos de que isso iria funcionar.

Então tinham um plano B: que os aviões que patrulhavam a "zona de exclusão aérea" lançassem muitíssimas mais bombas à espera de uma reação que desse a desculpa para uma ampla campanha de bombardeios. (9) Então, antes de afirmar que "nós" dizemos sempre a verdade e que "eles" sempre mentem, asssim como que "nós" procuramos sempre uma solução pacífica e "eles" não querem se comprometer, teria que ser mais prudentes... Mais cedo ou mais tarde, a gente saberá o que se passou com as negociações nos bastidores e constatará, mais uma vez, que foi manipulada. Mas será muito tarde e os mortos já não os ressuscitaremos.

A Líbia é igual a Tunísia ou ao Egito?
Em sua excelente entrevista publicada há alguns dias por Investi'Action, Mohamed Hassan, professor de doutrina islâmica e especialista do Oriente Médio, colocava a verdadeira questão: "Líbia: levante popular, guerra civil ou agressão militar?" À luz de recentes investigações é possível responder: as três coisas. Uma revolta espontânea rapidamente recuperada e transformada em guerra civil (que já estava preparada), tudo servindo de pretexto para uma agressão militar. A qual, também, estava preparada. Nada em política cai do céu. Consigo explicar-me?

Na Tunísia e no Egito a revolta popular cresceu progressivamente em umas semanas, organizando-se pouco a pouco e unificando-se em reivindicações claras, o que permitiu derrotar os tiranos. Mas, quando analisamos a sucessão ultrarrápida dos acontecimentos em Benghazi, a gente fica intrigada. Em 15 de fevereiro houve manifestações de parentes de presos políticos da revolta de 2006.

Manifestação duramente reprimida como foi sempre na Líbia e nos demais países árabes. Dois dias escassos mais tarde, outra manifestação, desta vez os manifestantes saem armados e passam diretamente a uma escalada contra o regime de Kadafi. Em dois dias, incrivelmente, uma revolta popular se converte em guerra civil. Totalmente espontânea?

Para saber isso, é preciso examinar o que se oculta abaixo do impreciso vocábulo "oposição líbia". Em minha opinião, quatro componentes com interesses muito diferentes : 1º Uma oposição democrática. 2º Dirigentes de Kadafi "regressados" do oeste. 3º Clãs líbios descontentes da partilha das riquezas. 4º Combatentes de tendência islâmica. Quem compõe esta "oposição líbia"?

Em toda esta rede é importante sabermos de que estamos a falar. E sobretudo, que fação é a aceite pelas grandes potências...

1º Oposição democrática. É legítimo ter reivindicações ante o regime de Kadafi, tão ditatorial e corrupto como os outros regimes árabes. Um povo tem o direito de querer substituir um regime autoritário por um sistema mais democrático. No entanto, estas reivindicações estão até hoje pouco organizadas e sem programa concreto. Temos, ainda, no estrangeiro, movimentos revolucionários líbios, igualmente dispersos, mas todos opostos à ingerência estrangeira. Por diversas razões que expomos mais adiante, não são estes elementos democráticos os que têm muito que dizer hoje, sob a bandeira dos EUA nem da França.

2º Dignatários "regressados". Em Bengazhi, um "governo provisório" foi instaurado e está dirigido por Mustafá Abud Jalil. Este homem era, até 21 de fevereiro, ministro da Justiça de Kadafi. Dois meses antes, a Anistia Internacional tinha-o posto na lista dos mais horríveis responsáveis por violações de direitos humanos do norte da África. É este indivíduo o que, segundo as autoridades búlgaras, organizava as torturas de enfermeiras búlgaras e do médico palestino detidos durante longo tempo pelo regime.

Outro "homem forte" desta oposição é o general Abdul Faah Yunis, ex-ministro do Interior de Kadafi e antes chefe da polícia política. Compreende-se que Massimo Introvigne, representante da OSCE (Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa) para a luta contra o racismo, a xenofobia e a discriminação, estime que estes personagens "não são os 'sinceros democratas' dos discursos de Obama, mas foram dos piores instrumentos do regime de Kadafi, que aspiram a tirar o coronel para tomar seu lugar".

3º Clãs descontentes. Como sublinhava Mohamed Hassan, a estrutura da Líbia continua sendo tribal. Durante o período colonial, sob o regime do rei Idriss, os clãs do Leste dominavam e aproveitavam-se das riquezas petrolíferas. Após a revolução de 1969, Kadafi apoiou-se nas tribos do oeste e o Leste viu-se desfavorecido. É lamentável; um poder democrático e justo deve zelar por eliminar as discriminações entre as regiões. Pode-se perguntar se as antigas potências coloniais não incitaram as tribos rebeldes para enfraquecer a unidade do país. Não seria a primeira vez. Hoje, França e os EUA apostam nos clãs do Leste para tomar o controle do país. Dividir para reinar, um velho dito clássico do colonialismo.

4° Elementos da Al-Qaeda. Cabogramas difundidos pelo Wikileaks advertem que o Leste da Líbia era, proporcionalmente, o primeiro exportador no mundo de "combatentes mártires" no Iraque. Relatórios do Pentágono descrevem um cenário "alarmante" acerca dos rebeldes líbios de Bengazhi e Derna. Derna, uma cidade de escassos 80.000 habitantes, seria a fonte principal de yihaidistas no Iraque. Da mesma forma, Vincent Cannistrar, antigo chefe da CIA na Líbia, assinala entre os rebeldes muitos "extremistas islâmicos capazes de criar problemas" e que "as possibilidades [são] muito altas de que os indivíduos mais perigosos possam ter uma influência, caso Kadafi cair".

Evidentemente tudo isto se escrevia quando Kadafi era ainda um "amigo". Mas isto mostra a ausência total de princípios no chefe dos EUA e dos seus aliados. Quando Kadafi reprimiu a revolta islamista de Bengazhi, em 2006, fez isso com as armas e o apoio de Ocidente. Uma vez, somos contra os combatentes do tipo Bin Laden, outra vez, utilizamo-los. Vamos lá ver como.

Entre estas diversas "oposições" qual prevalecerá? Pode ser este também um objetivo da intervenção militar de Washington, Paris e Londres: tentar que "os bons" ganhem? Os bons do ponto de vista deles, é claro. Mais tarde, vai utilizar-se a "ameaça islâmica" como pretexto para se instalarem de forma permanente. Em qualquer caso uma coisa é segura: o cenário libio é diferente dos cenários tunisino ou egípcio. Ali era "um povo unido contra um tirano". Aqui estamos em uma guerra civil, com um Kadafi que conta com o apoio de uma parte da população. E nesta guerra civil o papel que jogaram os serviços secretos americanos e franceses já não é tão secreto...

Qual foi o papel dos serviços secretos?
Na realidade, o assunto líbio não começou em fevereiro em Benghazi, mas sim em Paris, em 21 de outubro de 2010. Segundo revelações do jornalista Franco Bechis (Libero, 24 de março), nesse dia, os serviços secretos franceses prepararam a revolta de Benghazi. Fizeram "voltar" (ou talvez já anteriormente) Nuri Mesmari, chefe do protocolo de Kadafi, praticamente seu braço direito. O único que entrava sem chamar na residência do líder líbio. Em uma viagem a Paris com toda sua família para uma cirurgia, Mesmari não se encontrou com nenhum médico, pelo conttrário, teve encontros com vários servidores públicos dos serviços secretos franceses e com próximos colaboradores de Sarkozy, segundo o boletim digital Magreb Confidential.

Em 16 de novembro, no hotel Concorde Lafayette, prepararia uma imponente delegação que devia viajar dois dias mais tarde a Benghazi. Oficialmente, tratava-se de responsáveis pelo ministério da Agricultura e de líderes das firmas France Export Céréales, France Agrimer, Louis Dreyfus, Glencore, Cargill e Conagra. Mas, segundo os serviços italianos, a delegação incluía também vários militares franceses camuflados como homens de negócios. Em Benghazi, encontraram-se com Abdallah Gehani, um coronel líbio ao que Mesmari lhes tinha apresentado como disposto a desertar.

Em meados de dezembro, Kadafi, desconfiando, enviou um emissário a Paris para tentar contactar com Mesmari. Mas este foi preso na França. Outros líbios vão de visita a Paris no dia 23 de dezembro e são eles que vão dirigir a revolta de Benghazi com as milícias do coronel Gehani. Ainda, Mesmari revelou inúmeros segredos da defesa líbia. De tudo isto resulta que a revolta no Leste não foi tão espontânea como nos foi dito. Mas isto não é tudo. Não só foram os franceses?

Quem dirige atualmente as operações militares do "Conselho Nacional Líbio" anti-Kadafi? Um homem justamente chegado dos EUA, em 14 de março, segundo Al-Jazzira. Apresentado como uma das duas "estrelas" da insurreição líbia, pelo jornal britânico de direita, Dail Mail, Khalifa Hifter é um antigo coronel do exército líbio exilado nos EUA. Foi um dos principais comandantes da Líbia até a desastrosa expedição ao Chade, no final dos 80; emigrou imediatamente para os EUA e viveu os últimos vinte anos na Virgínia. Sem nenhuma fonte de rendimentos conhecida, mas a muito pouca distância dos escritórios... da CIA (10). O mundo é um muito pequeno.

Como é que um militar líbio de alta patente pode entrar com toda a tranquilidade nos EUA, uns anos após o atentado terrorista de Lockerbie, pelo qual a Líbia foi condenada, e viver durante vinte anos, tranquilamente, ao lado da CIA? Por força teve que oferecer algo em troca.

Publicado em 2001, o livro Manipulations africaines (Manipulações africanas) de Pierre Péan, traça as conexões de Hifter com a CIA e a criação, com o apoio da mesma, da Frente Nacional de Libertação Líbia. A única façanha da tal frente será a organização, em 2007, nos EUA, de um "congresso nacional" financiado pelo National Endowment for Democracy(11), tradicionalmente o mediador da CIA para manter lubrificadas as organizações a serviço dos EUA.

Em março deste ano, em data não comunicada, o presidente Obama assinou uma ordem secreta que autoriza a CIA a empreender operações na Líbia, para derrocar Kadafi. O The Wall Street Journal, que informa disso, em 31 de março, acrescenta: "Os responsáveis pela CIA reconhecem ter estado ativos na Líbia desde fazia várias semanas, tal como outros serviços secretos ocidentais".

Tudo isto já não é muito secreto, circula pela Internet faz algum tempo; o que é estranho é que a grande mídia não diga nem uma palavra. No entanto, conhecem-se muitos exemplos de "combatentes da liberdade" armados deste modo e financiados pela CIA. Por exemplo, nos anos 80, as milícias terroristas da ‘contra’, organizadas por Reagan para desestabilizarem a Nicarágua e derrocarem seu governo progressista. Nada se aprendeu da História? Esta "Esquerda" européia que aplaude os bombardeios não utiliza a Internet?

Terá que se estranhar de que os serviços secretos italianos "delatem" assim as façanhas dos seus colegas franceses e que estes "delatem" seus colegas americanos? Isso só é possível se acreditarmos em histórias bonitas sobre a amizade entre "aliados ocidentais" Já falaremos... (Extraído do Investig’Action)

Notas:

1- Reuters, 22/3.

2- Sunday Times, 16 setembro 2007.

3- Washington Post, 17 setembro 2007.

4- Collision Course, Praeger, 2005, p.xiii.

5- Does America need a foreign policy, Simon and Schuster, 2001, p. 111.

6- Le Grand Echiquier, Paris 1997, p. 59-61

7- Michel Collon, Attention, médias Bruxelles, 1992, p. 92.

8- Michel Collon, Monopoly, - L’Otan á la conquête du monde, Bruxelles 2000, page 38.

9- Michael Smith, La véritable information des mémos de Downing Street, Los Angeles Times, 23 jun 2005.

10- McClatchy Newspapers (USA), 27 mars.

11- Eva Golinger, Code Chavez, CIA contra Venezuela, Liége, 2006.

(*) Michael Collon é jornalista, escritor e historiador belga

(**) Tradução em português publicada no Pátria Latina

Israel

Israel: um manifesto pela paz
Dezenas de personalidades defendem fronteiras de 1967 e sustentam: “reconhecer Estado palestino é vital para independência de Israel”. Manifesto assinado por figuras reconhecidas nos meios intelectual, associativo, diplomático e mesmo militar israelense revela algo às vezes oculto, nos meios de comunicação tradicionais. Uma parcela expressiva da população de Israel deseja a paz com os palestinos e está disposta a lutar por ela. Setores da comunidade israelense começam a se mobilizar, em todo o mundo, para separar-se de atitudes como a do primeiro ministro Benjamin Netanyahu.
Outras Palavras
Por trás de arrogância há, muitas vezes, fraqueza. Nesta sexta-feira (20/5), o chefe de Estado israelense, Benyamin Netanyahu, descartou rispidamente uma proposta feita por seu colega norte-americano na véspera. Em discurso há muito aguardo, sobre as relações entre Estados Unidos e Oriente Médio, Barack Obama tocara num ponto-chave para esvaziar as tensões que marcam a região. Sugerira que Israel reconheça o Estado palestino e retorne às fronteiras que prevaleciam até a guerra de 1967 – as mesmas aceitas por dezenas de países. Um dia depois, ambos reuniram-se, na Casa Branca. Após o encontro, ao conceder entrevista coletiva, frente a frente com Obama, Netanyahu afirmou: estas são “fronteiras da ilusão”.

Um documento publicado no mesmo dia, no New York Times, revela: a posição expressa com soberba pelo primeiro-ministro é cada vez mais fraca no mundo — e também em Israel. Dezenas de personalidades – reconhecidas nos meios intelectual, associativo, diplomático e mesmo militar israelense – endossaram abaixo-assinado em que expressam posição muito semelhante à de Obama.

O documento revela algo às vezes oculto, nos meios de comunicação tradicionais. Uma parcela expressiva da população de Israel deseja a paz com os palestinos e está disposta a lutar por ela. Esta postura tem, ainda, pouca expressão institucional – inclusive devido às características muito peculiares do sistema político [veja 1 2 3 textos no Diplô Brasil]. Mas se manifesta num conjunto crescente de iniciativas cidadãs.

Articulado pela OnG norte-americana JStreet, o manifesto publicado no New York Times deflagra um processo que poderá se tornar marcante, nos próximos meses. Setores da comunidade israelense começam a se mobilizar, em todo o mundo, para separar-se de atitudes como a de Netanyahu, e afirmar claramente seu apoio a uma paz justa. Este movimento tem raízes também no Brasil.

Leia a seguir o manifesto, firmado, entre outros, por cerca de 40 intelectuais e escritores premiados, incluindo 27 contemplados com o Prêmio Israel; mais de vinte militares de alta patente, incluindo 18 generais da Reserva; cinco ex-embaixadores, cônsules-gerais e diretores do Ministério das Relações Internacionais; mais de 5 reitores e ex-reitores universidades. A tradução é de Cauê Ameni e o documento, com seu formato original e lista de signatários pode ser encontrado no site J Street. (A.M)

O reconhecimento do estado Palestino baseado nas fronteiras de 1967
é vital para a existência de Israel

“Nós, cidadãos israelenses, nos dirigimos ao público para apoiar o reconhecimento de um Estado palestino democrático, como condição para acabar com o conflito e chegar ao acordo sobre as fronteiras, baseadas nas de 1967. Reconhecer o estado Palestino é vital para a existência de Israel. É a única maneira de garantir a resolução do conflito através de negociações, para prevenir a erupção de outra onda de violência em massa, e isolamento internacional de Israel.

“A implantação bem-sucedida dos acordos requer duas lideranças, israelense e palestina, que se reconheçam uma a outra, optem pela paz e se comprometam inteiramente com ela. Essa é a única política que deixa o destino e a segurança israelenses em suas próprias mãos. Qualquer outra atitude política contradiz com a promessa do sionismo e do bem estar do povo judeu.

“Nós, os abaixo assinados, chamamos todas as pessoas que se preocupam com a paz e a liberdade, e chamamos todas as nações, para que se unam a nós na saudação à Declaração de Independência Palestina e apoiem os esforços dos cidadãos dos dois Estados para manter relações pacificas, fundadas em fronteiras seguras e de boa vizinhança. O fim da ocupação é condição fundamental para a libertação dos dois povos, a realização da Declaração de Independência de Israel e um futuro de convivência pacifica.”

Publicado originalmente em Outras Palavras

PT

”Lamento que líderes do PT deem consultoria aos donos do dinheiro”. Entrevista com Frei Betto
JUN 27
Posted by Quem tem medo da democracia?
Sete anos após deixar o governo Lula, no qual foi assessor especial da Presidência, o escritor e assessor de movimentos sociais Frei Betto é um entusiasta da experiência do PT no poder e crítico ferrenho dos dirigentes da sigla. Em meio à crise política e ao impacto do lançamento do programa Brasil sem Miséria, Frei Betto falou ao Estado. Ele elogiou o plano social e não poupou ataques à direção petista no caso Antonio Palocci: “Já não encontro os dirigentes dando consultoria a movimentos sociais”.
A entrevista é de Fernando Gallo e publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 12-06-2011.
Eis a entrevista.
Como o sr. analisa a saída de Antonio Palocci do governo?
O governo demorou a agir diante da crise que se instalou a partir da constatação desse surpreendente aumento do patrimônio. Isso gerou muitas dúvidas. Dilma, diante de casos como esse, deveria seguir o exemplo do ex-presidente Itamar Franco, que licenciou o Hargreaves (Henrique Hargreaves, ministro da Casa Civil acusado de irregularidades no cargo) até que as coisas ficassem claras. Comprovada sua total inocência, foi reintegrado. No caso do Palocci, houve uma suspeita que os próprios correligionários abraçaram. O fato de a Executiva do PT não emitir uma nota de apoio, de solidariedade, era sintoma de que no partido pairavam dúvidas. Ali foi o momento em que Dilma deveria ter tomado a providência de afastá-lo.
O episódio pode ser considerado um indicativo de que o PT mudou seus ideais ao virar governo?
Exatamente. Nunca me filiei a nenhum partido político, mas ajudei a construir o PT, assessorei muitos movimentos que formaram lideranças que hoje integram o PT e a política profissional. Lamento que os dirigentes do PT hoje deem consultoria aos donos do dinheiro. Andando pelo Brasil, já não encontro esses dirigentes prestando consultoria a movimentos sociais.
O PT revisou o seu projeto?
Ah, sim! No conjunto do partido, salvo exceções de honrosos militantes, o PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Quando se estende demasiadamente o bloco de alianças, há que fazer concessões. Elas levaram o PT a ter grande prestígio eleitoral, mas não é mais, infelizmente, o partido representativo dos movimentos sociais. Já não identificam nele o partido que vai enfrentar as forças que impedem reformas de estrutura no Brasil.
Em um olhar mais geral, para além da crise, que avaliação o sr. faz do governo Dilma?
Ainda é muito cedo para uma avaliação. A equipe de governo é boa. Tem muita gente que vem do governo Lula, já calejada. O governo está mantendo a política externa do Lula, que eu considero brilhante, e está aprofundando os programas sociais, o que é muito positivo. Não gosto do lema “País rico é país sem miséria”. Devia ser “país digno”, não “rico”. Os Estados Unidos são ricos, mas têm 30 milhões de miseráveis. A China é rica e tem milhões de miseráveis.
O sr. vê alternativa fora das alianças feitas pelo PT?
É difícil governar sem alianças, concordo. Mas elas têm de ser feitas em cima de princípios, não de interesses. Quando os interesses aparecem, como no caso do Código Florestal, as divergências também transparecem. A posição do PT e a do governo não coincidiam com a de muitos membros da base, sobretudo a do PMDB.
Como viu a atuação do governo na votação do Código Florestal?
O PT ficou isolado, mas nesse assunto Dilma tem muita clareza e firmeza. Ela sabe que o Brasil vai abrigar no ano que vem uma importante conferência ambiental. Ela foi a Copenhague acompanhando Lula e assumiu compromissos internacionais. Espero que continue com essa posição firme de não ceder frente às flexibilizações da proposta aprovada na Câmara, que parecem prejudicar o meio ambiente e favorecer os desmatadores, aqueles que praticam assassinatos no campo, invadem a Amazônia com o agronegócio e derrubam árvores para fazer pasto.
O sr. já criticou o governo por suspender o kit anti-homofobia.
Pode ser um recuo tácito, mas o tema está em pauta. Você não pode ignorar uma questão que atinge milhões de brasileiros que têm uma opção de vida amorosa e sexual. Como a questão do aborto, também. O governo pode colocar debaixo do tapete, mas uma hora ela vai ter de vir à tona. São questões relevantes para a sociedade no mundo inteiro. Como um feliz ING que sou hoje – “indivíduo não governamental” -, penso que esses temas terão de ser encarados. Espero que Dilma, que tem passado de combatividade, venha a acabar com tabus e trazer mais luz a esses temas.
O governo se omitiu no assassinato dos líderes do Pará?
Para ser generoso, acho que agiu muito timidamente. Tinha de ter mandado ministros, o do Desenvolvimento Agrário, a dos Direitos Humanos. Deveriam ter ido à região, participado dos enterros, cobrado pessoalmente do governo do Pará, que não abre inquéritos. Deveria ter tido atuação mais rigorosa. No enterro do Chico Mendes, foi todo mundo. As pessoas que estão no governo se mexiam. As coisas são vistas pela TV, pelo jornal. Isso é inconcebível. Os mandantes e assassinos estão convencidos da impunidade. Você tem 98 mandantes e assassinos identificados e apenas um preso, que é o Bida, assassino da Dorothy Stang. Liberou geral o faroeste.
Apesar das críticas, o sr. disse que a experiência do PT no poder é a melhor da história brasileira.
Considero o governo Lula o melhor da história republicana, porque gosto muito do governo de d. Pedro II. Espero que o governo Dilma seja o prosseguimento do governo Lula, principalmente por causa dos avanços do ponto de vista social e à política externa. Minha expectativa é de que o governo consiga transformar políticas de governo, como o combate à miséria e a questão ambiental, em políticas de Estado. Que promova as sonhadas reformas de estrutura: política, tributária, agrária. Isso é urgente. Desde o início dos anos 60 o Brasil clama por isso.
Qual a sua avaliação sobre o plano Brasil sem Miséria?
Vejo com bons olhos. Ao menos no papel é um avanço em relação ao Bolsa Família. Espero, e desconfio, como bom mineiro, que o Brasil sem Miséria seja uma reedição do Fome Zero, que era um programa emancipatório. O Bolsa Família é um programa compensatório. Prova disso é que esse programa até agora não tem porta de saída. Quem entra não sabe como sair assegurando a própria renda e condições dignas de vida. O Brasil sem Miséria não só aumenta o número de famílias e os benefícios de três para cinco filhos até 15 anos, como abre perspectivas de funcionamento da porta de saída. Vamos ver na prática se funciona.
Por que o projeto seria uma reedição do Fome Zero?
O Bolsa Família foi introduzido no lugar do Fome Zero por questões eleitorais. O dinheiro não passava pelas prefeituras e os prefeitos se rebelaram. Pressionaram e conseguiram ganhar a guerra. Eles têm o controle do cadastro e evitam que surjam lideranças populares ameaçadoras das minioligarquias municipais. Além disso, segundo o TCU, há indícios de corrupção em 70% das prefeituras do Brasil. Para bom entendedor, meia palavra basta.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Lorca

Federico Garcia Lorca: Teoria e prática do duende
O poeta espanhol Federico Garcia Lorca nasceu no dia 5 de junho; para comemorar este aniversário, Prosa Poesia e Arte publica o texto abaixo, fortemente sugestivo de sua poesia, e os poemas de Carlos Drummond de Andrade e Hilda Hilst, todos sugeridos pela colaboradora do Prosa Poesia e Arte, Selenia Granja.
Desde o ano de 1918, quando ingressei na Casa de Estudantes de Madri, até 1928, quando a abandonei, ao terminar meus estudos de Filosofia e Letras, ouvi naquele refinado salão, para onde acorria a velha aristocracia espanhola com o fim de corrigir sua frivolidade de praia francesa, cerca de mil conferências.

No desejo de ar e de sol, me aborreci tanto que, ao sair, me sentia coberto por uma leve cinza, quase a ponto de se transformar em pó-de-mico.

Não. Eu não gostaria que entrasse na sala essa terrível mosca do aborrecimento que costura todas as cabeças com um fio tênue de sono e põe nos olhos dos ouvintes pequenos tufos de pontas de alfinete.

Leia também
• Homenagem de Carlos Drummond de Andrade a Federico Garcia Lorca
• Hilda Hilst: Poema V; a Federico García Lorca
De um modo simples, com o registro que em minha voz poética não tem luzes de madeiras, nem curvas de cicuta, nem ovelhas que subitamente são facas de ironias, vou procurar dar-lhes uma simples lição sobre o espírito oculto da dolorida Espanha.

Quem encontra-se na pele de touro que se estende entre os Júcar, Guadalete, Sil ou Pisuerga (não quero citar as torrentes junto às ondas cor de juba de leão que agitam o Plata), ouve-se dizer com certa freqüência: "Este tem muito duende". Manuel Torres, grande artista do povo andaluz, dizia a alguém que cantava: "Tu tens voz, conheces os estilos, mas jamais triunfarás, porque tu não tens duende".

Em toda Andaluzia, rocha de Jaén e búzio de Cádiz, as pessoas falam constantemente do duende e o descobrem naquilo que sai com instinto eficaz. O maravilhoso cantador El Lebrijano, criador da Debla, dizia: "Nos dias em que canto com duende não há quem possa comigo"; a velha bailarina cigana La Malena exclamou um dia, ao ouvir Brailowsky tocar um fragmento de Bach: "Olé! Isso tem duende!", e aborreceu-se com Glück, com Brahms e com Darius Milhaud. E Manuel Torres, o homem com maior cultura no sangue que conheci, disse, escutando o próprio Falla tocar seu Nocturno del Generalife, esta esplêndida frase: "Tudo o que tem sons negros tem duende". E não há nada mais verdadeiro.

Esses sons negros são o mistério, as raízes que penetram no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial em arte. Sons negros, disse o homem popular da Espanha, e coincidiu com Goethe, que define o duende ao falar de Paganini, dizendo: "Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica".

Assim pois o duende é um poder e não um obrar, é um lutar e não um pensar. Eu ouvi um velho violonista dizer: "O duende não está na garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés". Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou seja, de velhíssima cultura, de criação em ato.

Esse "poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica" é, em suma, o espírito da terra, o mesmo duende que abraçou o coração de Nietzsche, que o buscava em suas formas exteriores sobre a ponte Rialto ou na música de Bizet, sem encontrá-lo e sem saber que o duende que perseguia tinha saltado dos misteriosos gregos às bailarinas de Cádiz ou ao dionisíaco grito degolado da seguiriya de Silvério.

Assim, pois, não quero que ninguém confunda o duende com o demônio teológico da dúvida, ao qual Lutero, com um sentimento báquico, lançou um frasco de tinta em Nuremberg, nem com o diabo católico, destruidor e pouco inteligente, que se disfarça de cadela para entrar nos conventos, nem com o macaco falante que tem o espertalhão de
Cervantes, na comédia dos ciúmes e das selvas de Andaluzia.

Não. O duende de que falo, obscuro e estremecido, é descendente daquele alegríssimo demônio de Sócrates, mármore e sal que o arranhou indignado no dia em que tomou a cicuta, e do outro melancólico demoniozinho de Descartes, pequeno como amêndoa verde, que, farto de círculos e de linhas, saiu pelos canais para ouvir cantarem os marinheiros bêbados.

Todo homem, todo artista, dirá Nietzsche, cada degrau que sobe na torre de sua perfeição é às custas da luta que trava com um duende, não com um anjo, como se diz, nem com sua musa. É preciso fazer essa distinção fundamental para a raiz da obra.

O anjo guia e presenteia como São Rafael, defende e evita como São Miguel, e previne como São Gabriel.

O anjo deslumbra, mas voa sobre a cabeça do homem, está acima, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza sua obra, ou sua simpatia, ou sua dança. O anjo do caminho de Damasco ou o que entrou pelas fendas do balcãozinho de Assis, ou o que segue os passos de Enrique Susson, ordena, e não há maneira de recusar suas luzes, porque agita suas asas de aço no ambiente do predestinado.

A musa dita, e, em algumas ocasiões, sopra. Pode relativamente pouco, porque já está distante e tão cansada (eu a vi duas vezes) que teve que colocar meio coração de mármore. Os poetas de musa ouvem vozes e não sabem de onde elas vêm; são da musa que os alenta e às vezes os merenda. Como no caso de Apollinaire, grande poeta destruído pela horrível musa que foi pintada a seu lado pelo divino angélico Rousseau. A musa desperta a inteligência, traz paisagem de colunas e falso sabor de lauréis, e a inteligência é muitas vezes a inimiga da poesia, porque imita demasiadamente, porque eleva o poeta a um trono de agudas arestas e o faz esquecer que logo podem comê-lo as formigas ou pode cair-lhe na cabeça uma grande lagosta de arsênico, contra a qual nada podem as musas que há nos monóculos ou na rosa de tíbia laca do pequeno salão.

Anjo e musa vêm de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas (Hesíodo aprendeu com elas). Pão de ouro ou prega de túnicas, o poeta recebe normas no bosquezinho de lauréis. Ao contrário, o duende tem que ser despertado nas últimas moradas do sangue.

E rechaçar o anjo e dar um pontapé na musa, e perder o medo da fragrância de violetas que exala a poesia do século XVIII, e do grande telescópio em cujos cristais dorme a musa enferma de limites.

A verdadeira luta é com o duende.

Os caminhos para buscar a Deus são conhecidos, desde o modo bárbaro do eremita até o modo sutil do místico. Com uma torre como Santa Teresa, ou com três caminhos como São João da Cruz. E embora tenhamos que clamar com voz de Isaías: "Verdadeiramente és um Deus escondido", ao fim e ao cabo Deus manda ao que o busca seus primeiros espinhos de fogo.

Para buscar o duende não há mapa nem exercício. Só se sabe que ele queima o sangue como uma beberagem de vidros, que esgota, que rechaça toda a doce geometria aprendida, que rompe os estilos, que faz com que Goya, mestre nos cinzas, nos pratas e nos rosas da melhor pintura inglesa, pinte com os joelhos e com os punhos com horríveis negros de betume; ou que desnuda Mosén Cinto Verdaguer com o frio dos Pirineus, ou leva Jorge Manrique a esperar a morte no páramo de Ocaña, ou veste com uma roupa verde de saltimbanco o corpo delicado de Rimbaud, ou põe olhos de peixe morto no conde Lautréamont na madrugada do boulevard.

Os grandes artistas do sul da Espanha, ciganos ou flamengos, quer cantem, dancem ou toquem, sabem que não é possível nenhuma emoção sem a chegada do duende. Eles enganam as pessoas, e podem dar a sensação de duende sem que ele esteja lá, como as enganam todos os dias autores ou pintores ou modistas literários sem duende; mas basta atentar um pouco, e não se deixar levar pela indiferença, para descobrir o engodo e fazê-lo fugir com o seu tosco artifício.

Uma vez, a "cantadora" andaluza Pastora Pavón, A Menina dos Pentes, sombrio gênio hispânico, equivalente em capacidade de fantasia a Goya ou a Rafael o Galo, cantava em uma pequena taberna de Cádiz. Cantava com sua voz de sombra, com sua voz de estanho fundido, com sua voz coberta de musgo, e a enredava em seus cabelos ou a molhava em camomila ou a perdia entre estevais obscuros e longínquos. Mas nada; era inútil. Os ouvintes permaneciam calados.

Estava ali Ignacio Espeleta, formoso como uma tartaruga romana, a quem perguntaram uma vez: "Como não trabalhas?", e ele, com um sorriso digno de Argantônio, respondeu: "Como vou trabalhar se sou de Cádiz?"

Estava ali Eloísa, a quente aristocrata, rameira de Sevilla, descendente direta de Soledad Vargas, que em trinta não quis casar com um Rothschild porque não a igualava em sangue. Estavam ali os Floridas, que as pessoas crêem carniceiros, mas que na realidade são sacerdotes milenares que continuam sacrificando touros a Gereão, e em um canto, o imponente dono de gado Don Pablo Murube, com ar de máscara cretense. Pastora Pavón terminou de cantar em meio ao silêncio. Só, e com sarcasmo, um homem pequenino, desses homenzinhos bailarinos que saem de súbito das garrafas de aguardente, disse com voz muito baixa: "Viva Paris!", como se dissesse: "Aqui não nos importam as faculdades, nem a técnica, nem a maestria. Nos importa outra coisa."

Então A Menina dos Pentes levantou-se como uma louca, tronchada como uma carpideira medieval, e bebeu de um trago uma grande copo de cazalla como fogo, e sentou-se a cantar sem voz, sem alento, sem matizes, com a garganta abrasada, mas... com duende. Conseguira matar todo a estrutura da canção para dar lugar a um duende furioso e abrasador, amigo de ventos carregados de areia, que fazia com que os ouvintes rasgassem suas roupas quase com o mesmo ritmo com que as rasgam os negros antilhanos do rito, agrupados perante a imagem de Santa Bárbara.

A Menina dos Pentes teve que descarregar sua voz porque sabia que estava sendo escutada por gente estranha que não pedia formas, mas tutano de formas, música pura com o corpo exíguo para poder manter-se no ar. Teve que empobrecer em faculdades e em seguranças; quer dizer, teve que afastar a musa e ficar desamparada, para que seu duende viesse e se dignasse a lutar com os braços nus. E como cantou! Sua voz já não cantava, sua voz era um jorro de sangue dignificado por sua dor e por sua sinceridade, e se abria como uma mão de dez dedos pelos pés cravados, mas cheios de borrasca, de um Cristo de Juan de Juní.

A chegada do duende pressupõe sempre uma transformação radical em todas as formas sobre velhos planos, dá sensações de frescor totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recém criada, de milagre, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso.

Em toda música árabe, dança, canção ou elegia, a chegada do duende é saudada com enérgicos "Alá, Alá!", "Deus, Deus!", tão próximos do "Olé!" dos touros que talvez seja o mesmo; e em todos os cantos do sul da Espanha a aparição do duende é seguida por sinceros gritos de "Viva Deus!", profundo, humano, terno grito de uma comunicação com Deus por meio dos cinco sentidos, graças ao duende que agita a voz e o corpo da bailarina, evasão real e poética deste mundo, tão pura como a conseguida pelo raríssimo poeta do século XVIII Pedro Soto de Rojas através de sete jardins, ou a de João Clímaco por uma estremecido acesso de pranto.

Naturalmente, quando essa evasão é alcançada todos sentem seus efeitos: o iniciado, vendo como o estilo vence uma matéria pobre, e o ignorante, no não sei quê de uma emoção autêntica. Há anos, em um concurso de baile de Jerez de la Frontera, quem ganhou o prêmio foi uma velha de oitenta anos, contra formosas mulheres e meninas com a cintura de água, pelo simples fato de levantar os braços, erguer a cabeça e dar um golpe com o pé sobre o tablado; mas na reunião de musas e de anjos que havia ali, belezas de forma e belezas de sorriso, tinha que ganhar e ganhou aquele duende moribundo que arrastava pelo chão suas asas de facas oxidadas.

Todas as artes são capazes de duende, mas onde ele encontra maior campo, como é natural, é na música, na dança e na poesia falada, já que elas necessitam de um corpo vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e alçam seus contornos sobre um presente exato.

Muitas vezes o duende do músico passa para o duende do intérprete, e outras vezes, quando o músico ou o poeta não são tais, o duende do intérprete, e isto é interessante, cria uma nova maravilha que tem na aparência, e nada mais, a forma primitiva. Este é o caso da enduendada Eleonora Duse, que buscava obras fracassadas para fazê-las triunfar, graças ao que ela inventava, ou o caso de Paganini, descrito por Goethe, que fazia com que se ouvisse melodias profundas em verdadeiras vulgaridades, ou o caso de uma deliciosa garota do Porto de Santa Maria, que vi cantar e dançar a horrorosa canção italiana O Mari!, com uns ritmos, uns silêncios e uma intenção que faziam da bugiganga italiana uma dura serpente de ouro puro. O que acontece é que eles encontravam efetivamente alguma coisa nova, que não tinha nada a ver com a anterior, que punham sangue vivo e ciência em corpos vazios de expressão.

Todas as artes, e também os países, têm capacidade de duende, de anjo e de musa; e assim como a Alemanha tem, com exceções, musa, e a Itália tem permanentemente anjo, a Espanha é em todos os tempos movida pelo duende, como país de música e dança milenares, onde o duende espreme limões de madrugada, e como país de morte, como país aberto à morte.

Em todos os países a morte é um fim. Ela chega e fecham-se as cortinas. Na Espanha, não. Na Espanha elas são abertas. Muita gente vive ali entre suas paredes até o dia em que morre e é colocada ao sol. Um morto na Espanha está mais vivo como morto que em qualquer lugar do mundo: fere seu perfil como um fio de uma navalha bárbara. O chiste sobre a morte e sua contemplação silenciosa são familiares aos espanhóis. Desde O sonho das caveiras, de Quevedo, até o Bispo apodrecido, de Valdés Leal, e desde a Marbella do século XVII, morta de parto na metade do caminho, que diz:

La sangre de mis entrañas
cubriendo el caballo está.
Las patas de tu caballo
echan fuego de alquitrán...

(1)
ao jovem moço de Salamanca, morto pelo touro, que clama
Amigos, que yo me muero;
amigos, yo estoy muy malo.
Tres pañuelos tengo dentro
y este que meto son cuatro... (2)

há uma balaustrada de flores de salitre, de onde assoma um povo de contempladores da morte, com versículos de Jeremias em seu lado mais áspero, ou com cipreste fragrante pelo lado mais lírico; mas um país onde o mais importante de tudo tem um último valor metálico de morte.

A faca e a roda do carro, e a navalha e as barbas pontudas dos pastores, e a lua despida, e a mosca, e as despensas úmidas, e os destroços, e os santos cobertos de renda, e a cal, e a linha cortante dos alpendres e dos mirantes têm na Espanha diminutas ervas de morte, alusões e vozes perceptíveis para um espírito alerta, que nos traz à memória o ar rígido de nosso próprio trânsito. Não é casualidade toda a arte espanhola ligada à nossa terra, cheia de cardos e de pedras definitivas, não é um exemplo isolado a lamentação de Pleberio ou as danças do maestro Josef María de Valdivielso, não é um acaso que de toda balada européia se destaque esta amada espanhola:

- Si tu eres mi linda amiga,
cómo no me miras, di?
- Ojos con que te miraba
a la sombra se los di.
- Si tú eres mi linda amiga,
cómo no me besas, di?
- Labios com que te besaba
a la tierra se los di.
- Si tú eres mi linda amiga,
cómo no me abrazas, di?
- Brazos com que te abrazaba,
de gusanos los cubrí. (3)

Nem é estranho que nos alvoreceres de nossa lírica soe esta canção:

Dentro del vergel
moriré,
dentro del rosal
matar me han.
Yo me hiba, mi madre,
las rosas coger,
hallara la muerte
dentro del vergel.
Yo me hiba, madre,
las rosas cortar,
hallara la muerte
dentro del rosal.
Dentro del vergel,
moriré,
dentro del rosal
matar me han. (4)

As cabeças geladas pela lua que Zurbarán pintou, o amarelo manteiga com o amarelo relâmpago de El Greco, o relato do padre Sigüenza, a obra inteira de Goya, a abside da igreja de El Escorial, toda a escultura policromada, a cripta dos Benavente em Medina de Rioseco, equivalem no culto às romarias de San Andrés de Teixido, onde os mortos tomam lugar na procissão, aos cantos fúnebres que cantam as mulheres de Astúrias com lanternas cheias de chamas na noite de novembro, ao canto e à dança da Sibila nas catedrais de Mallorca e Toledo, ao obscuro In Recort tortosino e aos inumeráveis ritos da Sexta-Feira Santa, que com a cultíssima festa dos touros formam o triunfo popular da morte espanhola. No mundo, somente o México pode ombrear com meu país.

Quando a musa vê a morte chegar fecha a porta ou ergue um plinto ou passeia uma urna e escreve um epitáfio com mão de cera, mas em seguida começa a rasgar seu laurel com um silêncio que vacila entre duas brisas. Sob o arco truncado da ode, ela junto com sentido fúnebre as flores exatas que pintaram os italianos do século XV e chama o seguro galo de Lucrécio para que espante sombras imprevistas.

Quando vê chegar a morte, o anjo voa em círculos lentos e tece com lágrimas de gelo e narciso a elegia que vimos tremer nas mãos de Keats, e nas de Villasandino, e nas de Herrera, e nas de Bécquer e nas de Juan Ramón Jiménez. Mas que horror o do anjo ao sentir uma aranha, por menor que ela seja, sobre seu terno pé rosado!

Ao contrário, o duende não chega se não vê possibilidade de morte, se não sabe que ela há de rondar sua casa, se não tem segurança de que há de balançar esses ramos que todos carregamos e que não têm, que não terão consolo.

Com ideia, com som ou com gesto, o duende gosta das bordas do poço em franca luta com o criador. Anjo e musa escapam com violino ou compasso, e o duende fere, e na cura dessa ferida, que não se fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra de um homem.

A virtude mágica do poema consiste em estar sempre enduendado para batizar com água obscura a todos os que o vêem, porque com duende é mais fácil amar, compreender, e é certeza ser amado, ser compreendido, e essa luta pela expressão e pela comunicação da expressão adquire às vezes, em poesia, caracteres mortais.

Recordai o caso da flamenguíssima e enduendada Santa Teresa, flamenga não por dominar um touro furioso e dar-lhe três passes magníficos; não por enfrentar frei Juan de la Miseria nem por dar uma bofetada no Núncio de Sua Santidade, mas por ser uma das poucas criaturas cujo duende (não anjo, porque o anjo não ataca nunca) a transpassa com um dardo, querendo matá-la por ter roubado seu último segredo, a ponte sutil que une os cinco sentidos com esse centro em carne viva, em nuvem viva, em mar vivo, do Amor libertado do Tempo.

Valentíssima vencedora do duende, e um caso oposto ao de Felipe da áustria, que, ansiando buscar musa e anjo na teologia, viu-se aprisionado pelo duende dos ardores frios nessa obra de El Escorial, onde a geometria ombreia com o sonho e onde o duende põe máscara de musa para eterno castigo do grande rei.

Dissemos que o duende ama a orla, o limite, a ferida, e se aproxima dos lugares onde as formas se fundem em um anelo superior a suas expressões visíveis.

Na Espanha (como nos povos do Oriente, onde a dança é expressão religiosa) o duende tem um campo sem limites nos corpos das bailarinas de Cádiz, elogiadas por Marçal, nos peitos dos que cantam, elogiados por Juvenal, e em toda a liturgia dos touros, autêntico drama religioso onde, da mesma maneira que na missa, se adora e se sacrifica a um Deus.

É como se todos os duendes do mundo clássico se juntassem nessa festa perfeita, expoente da cultura e da grande sensibilidade de um povo que descobre no homem suas melhores iras, suas melhores bílis e seu melhor pranto. Nem no baile espanhol nem nos touros alguém se diverte; o duende se encarrega de fazer sofrer através do drama, em formas vivas, e prepara as escadas para uma evasão da realidade que circunda.

O duende opera sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia. Transforma com mágico poder uma garota em paralítica da lua, ou enche de rubores adolescentes um velho roto que pede esmola pelas tendas de vinho, dá aos cabelos um cheiro de porto noturno, e em todo momento opera sobre os braços com expressões que são mães da dança de todos os tempos.

E é impossível que ele se repita, isso é muito interessante de sublinhar. O duende não se repete, como não se repetem as formas do mar na tempestade.

Nos touros ele adquire seus acentos mais impressionantes, porque tem que lutar, por um lado, com a morte, que pode destruí-lo, e por outro lado com a medida, base fundamental da festa.

O touro tem sua órbita: o toureiro, a sua, e entre órbita e órbita um ponto de perigo onde está o vértice do terrível jogo.

Pode-se ter musa com muleta e anjo com bandeirinhas e passar por bom toureiro, mas na faina de capa, com o touro limpo ainda de feridas, e no momento de matar, necessita-se da ajuda do duende para acertar no cravo da verdade artística.

O toureiro que assusta o público na praça por sua temeridade não toureia, mas encontra-se neste plano ridículo, ao alcance de qualquer homem, de jogar com a vida; ao contrário, o toureiro mordido pelo duende dá uma lição de música pitagórica e faz esquecer que arrisca constantemente o coração sobre os cornos.

Lagartijo com seu duende romano, Joselito com seu duende judeu, Belmonte com seu duende barroco e Cagancho com seu duende cigano, ensinam, desde o crepúsculo do anel, a poetas, pintores e músicos, quatro grandes caminhos da tradição espanhola.

A Espanha é o único país onde a morte é o espetáculo nacional, onde a morte toca longos clarins à chegada das primaveras, e sua arte está sempre regida por um duende agudo que lhe dá sua diferença e sua qualidade de invenção.

O duende que enche de sangue, pela primeira vez na escultura, as faces dos santos do mestre Mateo de Compostela, é o mesmo que faz São João da Cruz gemer ou queima ninfas nuas com os sonetos religiosos de Lope.

O duende que levanta a torre de Sahagún ou trabalha ladrilhos quentes em Calatayud ou Teruel é o mesmo que rasga as nuvens de El Greco e põe a rodar a pontapés os aguazis de Quevedo e as quimeras de Goya.

Quando chove faz surgir Velázquez enduendado, em segredo, por trás de seus cinzas monárquicos; quando neva faz Herrera sair nu para demonstrar que o frio não mata; quando arde, põe em suas chamas Berruguete e o faz inventar um novo espaço para a escultura.

A musa de Góngora e o anjo de Garcilaso hão de soltar a guirlanda de laurel quando passa o duende de São João da Cruz, quando

el ciervo vulnerado
por el otero asoma. (5)

A musa de Gonzalo de Berceo e o anjo do Arcipreste de Hita devem separar-se para dar lugar a Jorge Manrique, quando chega ferido de morte às portas do castelo de Belmonte. A musa de Gregoria Hernández e o anjo de José de Mora devem separar-se para que cruze o duende que chora lágrimas de sangue de Mena e o duende com cabeça de touro de Martínez Montañes, como a melancólica musa da Cataluña e o anjo molhado de Galicia olham, com amoroso assombro, o duende de Castilla, tão distante do pão quente e da dulcíssima vaca que pasta com normas de céu varrido e terra seca.

Duende de Quevedo e duende de Cervantes, com verdes anêmonas de fósforo um, e flores de gesso de Ruidera o outro, coroam o retábulo do duende da Espanha.

Cada arte tem, como é natural, um duende de modo e forma distintos, mas todas unem suas raízes em um ponto de onde manam os sons negros de Manuel Torres, matéria última e fundo comum incontrolável e estremecido de lenho, som, tela e vocábulo.

Sons negros por trás dos quais estão já em terna intimidade os vulcões, as formigas, os zéfiros e a grande noite apertando a cintura com a Via Láctea.

Senhoras e senhores; ergui três arcos e com mão torpe coloquei neles a musa, o anjo e o duende.

A musa permanece quieta; pode ter a túnica de pequenas pregas ou os olhos de vaca que miram em Pompéia o narizinho de quatro caras com que seu grande amigo Picasso a pintou. O anjo pode agitar cabelos de Antonello de Mesina, túnica de Lippi e violino de Massolino ou de Rousseau.

O duende... Onde está o duende? Pelo arco vazio entra um ar mental que sopra com insistências sobre as cabeças dos mortos, em busca de novas paisagens e acentos ignorados; um ar com cheiro de saliva de menino, de erva pisada e véu de medusa que anuncia o constante batismo das coisas recém criadas.

Notas

(1) O sangue de minhas entranhas
cobrindo o cavalo está.
As patas de teu cavalo
deitam fogo de alcatrão...

(2) Amigos, estou morrendo;
amigos, estou muito mal.
Tenho três lenços dentro
e com este que ponho são quatro...

(3) - Se tu és minha linda amiga,
como não me olhas, diz?
- Olhos com que te olhava
à sombra eu os dei
- Se tu és minha linda amiga,
como não me beijas, diz?
- Lábios com que te beijava
à terra eu os dei.
- Se tu és minha linda amiga,
como não me abraças, diz?
- Braços com que te abraçava,
de vermes eu os cobri.

(4) Dentro do vergel
morrerei,
dentro do roseiral
me hão de matar.
Eu ia, minha mãe,
As rosas colher,
Encontrei a morte
Dentro do vergel.
Eu ia, minha mãe,
As rosas cortar,
Encontrei a morte
Dentro do roseiral.
Dentro do vergel
morrerei,
dentro do roseiral
me hão de matar.
(5) o cervo ferido pelo outeiro assoma.


In Federico García Lorca. Obras Completas. Ed. Aguillar. Tradução: Roberto Mallet.

Colaboração Selenia Granja
À Ilharga de uma Geografa
(vermelho.org)

Deus

Deus triste

Deus é triste.

Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incompárável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.

A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
(Poemblog)

Cesar Kiraly

Cesar Kiraly
Greenwich por uma metafísica da casa


Esta apresentação foi escrita um pouco depois de concluídas as páginas do Greenwich. De alguma forma sentimos que algo relevante tinha acontecido, e que os elementos antigos intrínsecos a nossa conversa não eram capazes de explicar. A nossa conversa cessou por algumas semanas. Greenwich não foi a nossa primeira conversa, mas foi o nosso primeiro trabalho. Há um acordo tácito entre nós dois de deixar que o silêncio resolva os momentos em que o rigor não nos satisfaz. Greenwich veio à luz, antecedido e sucedido por muitas cartas – uma delas, ironicamente, perdida – menos numerosas do que a vontade de dizer. Não é bem possível discernir o lado R. do lado K. São dois lados de uma mesma rua. Mas é certo que é raseliana a maturidade visual desses meridianos.

Pois bem, em Greenwich nos interessou a pluralidade dos meridianos, isso que nos permite bem multiplicar. Num certo sentido, interessou-nos mais o instituinte meridiano, do que o instituído. Dizemos dessa forma, porque há uma política nos meridianos, aquela que nos faz preferir Greenwich a Paris. Mas, sobretudo, Greenwich é o nome, e apenas o nome, do processo espiralado de enunciados – pictóricos, portanto – passionalmente orientados – mistura de paixão e tinta – circundantes a um eixo com algum deslocamento. Dessa forma, Greenwich para nós é o nome de um meridiano instituinte. Há algo em sua metafísica de uma Ilha flutuante. Um lugar mais ou menos oscilante, mas sempre uma região. Nosso meridiano é como todo meridiano. Ainda que ele nasça de um marco em deslocamento. O seu corpo também é feito para servir de referência. Assim, ainda que nos percamos do meridiano, podemos, sem querer, encontrarmo-nos pisando por cima dele, podemos encontrar, de soslaio, o aviso de que estamos por cima dele, passando.

Dois são os personagens do nosso meridiano. O senhor B. é um antigo amigo de R., encontrado ferido no fundo de uma piscina. Este evento encontra abrigo na memória de K. acerca dos desafios à própria asma. Um vez que sempre esteve buscando bonecos perdidos na abissalidade das piscinas. O senhor B. é um meridiano, posto ter passado muitas vezes pelas mãos resgatadoras de K., mas, sobretudo, por ter sido escolhido a relicário por R. A senhora B. fora encontrada absolutamente intacta. Ainda que exista um Walter Benjamin no senhor B., não há casamento entre os B. Eles são parecidos e isto os une. O B. da senhora B. não é mais desconhecido do que o do senhor B. O meridiano não é uma semelhança de família, mas de espectros. São os fantasmas os juntadores de semelhantes.



A biografia Walter Benjamin do senhor B. lhe confere um corpo todo lanhado. Esses antigos confrontos com crianças, levados aos estupor do abandono, foram cuidadosamente preservados por R. A senhora B. não é menos acidentada, algo nos leva a crer que viveu muito mais do que o senhor B., mas suas marcas são meridianamente difundidas em suas cores doces, a leveza de seus sapatos, a amarradura eficiente de seus cabelos castanhos e as róseas circunferência em suas bochechas. O modo doce de difundir as marcas pela roupa fez com que a senhora B. tivesse uma disponibilidade virtuosa ausente no senhor B. A lacuna do senhor B., ao ostentar as marcas, ao ter como destino uma cabeça já aberta, o impede de se vestir para a senhora, com a senhora se veste virtuosamente para o senhor, ou de retirar o cabelo para fazer a meridiana lacunosa uma evidência. Nesse sentido é que Greenwich é um livro sobre o acidente lacuna. O jogo de dados é lacuna. O encontro entre as lacunas e a sorte, par hasard, é o que torna uma quebra lacunar necessária como uma piscada de olhos. A frivolidade da quebra não nos interessa.

A lacuna não é uma falta. Não tem uma natureza. A lacuna não tem princípio interno de atividade. Ela não se expande para além do seu meridiano. Não é repetição. Interrompe-se, posto que é colocada. Pode até mesmo ser promovida por um ser em estado de falta, mas como poderia sê-lo por qualquer outro estado de ser. A verdade da lacuna não é do sujeito, mas do tipo. Isso, a lacuna é a existência final do aspecto tipográfico da verdade. Vejamos que uma lacuna pode ser arredondada, como esta ( ), ou pode ter quinas, como estas [ ]. Greenwich é a manifestação de um tipo doce, possui personagens ironicamente quase-santos, sob luz alta. A lacuna, todavia, pode ser indicada por isto _____.

Mas a lacuna não precisa se restringir a um kairós cronológico de colocação instituinte. Nessa primeira modalidade a [ ] é inserida de modo a revelar o sentido pelo vazio. Há algo a ser esvaziado para permitir a compreensão. – A lacuna é a travessia do Alfeu a nado – . A lacuna pode ser um encontro marcado, em página branca ou preta. Ela pode ser uma tomada de posição no tempo. Mas também pode ser a projeção de um problema.

A cartomante que diz: - Mardi, Mercredi où Dimanche. Será sempre vencida pelo enxadrista duchampiano a sugerir: - Ora, Mardi não está lá, ou está? Aquilo que se encontra é sempre maior ou menor, e a lacuna mostra essa verdade. – Qual o tamanho do seu amor? [ ]. Dizer maior ou menor representa pouco pela tola exigência do ponto de referência. Porque não menos tolo seria perguntar: - Maior ou menor do que o quê? O meridiano da lacuna é a própria referência. A beleza da lacuna é que ela é, em seu tipo, ao mesmo tempo, cedo e tarde demais.

Publicação selecionada pela Galeria Gravura Brasileira para participar da SP Estampa de 2011.

Greenwich [Livro de artista de Rebeca Rasel e Cesar Kiraly]. Colagem, fotografia e impressão em papel canson. Tiragem: P.A + 7. Dimensões: 18x13cm. 2011.

Para Comprar Greenwich escreva para rebecarasel@gmail.com
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• Crítica de Arte (17)
(Modos de fazer o mundo)

Carnívoros

Mais de uma alternativa para deixar de ser carnívoro
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admin
– 18 de maio de 2011
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Novos setores sociais conscientizam-se sobre os danos do consumo de carne. Para enfrentar força do hábito, surgem opções com o flexitarianismo. Entrevista de Guilherme Carvalho, IHU On-line
Um dos principais reflexos da produção intensiva de carne se dá na água da região onde a pecuária existe. O problema é ainda maior quando se analisa a produção de alimentos para animais que depois vão para o prato das pessoas. A soja é um dos principais produtos utilizados em rações. O Mato Grosso é o Estado que mais produz esse grão no país e uma pesquisa, realizada em algumas cidades produtoras de soja, “encontrou resíduos de agrotóxicos no sangue e urina de moradores e nos reservatórios de água e poços artesianos das regiões pesquisadas”, como indica Guilherme Carvalho. Ele concedeu a entrevista a seguir por telefone à IHU On-Line em que falou a respeito das consequências e alternativas para o consumo e para a produção de carne no mundo.
Guilherme Carvalho é biólogo e gerente de campanhas da Humane Society International (HSI) no Brasil, uma ONG internacional de proteção animal. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você relaciona a questão das mudanças climáticas com o consumo de carne?
Guilherme Carvalho – Há uma relação muito próxima entre a produção de alimentos de cultura animal e as mudanças climáticas. Segundo um relatório de 2006 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 18% dos dados de efeito estufa emitidos por atividades humanas vêm deste setor, da cultura animal. Isto vem de vários subsetores dentro da cultura animal, incluindo principalmente o uso de combustíveis fósseis nas propriedades, a utilização de fertilizantes em grãos que vão virar ração animal, grandes quantidades de metano, o manejo, a destinação e o tratamento dos dejetos animais… Isto tudo junto soma, segundo os cálculos da FAO, 18% dos dados do efeito estufa que é comparável ou até mesmo superior à contribuição do setor de transporte.
IHU On-Line – Quanto o consumo de carne no mundo pode alterar o atual patamar das mudanças climáticas?
Guilherme Carvalho – Sem dúvida uma redução gradual do consumo per capita de produtos animais, principalmente em classes médias e emergentes, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento tem potencial, sim, de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Hoje, matam-se mais de 67 bilhões de animais terrestres por ano, somente para consumo de carne, leite e ovos. Este é um número astronômico.
Os Estados Unidos conseguiram, pela primeira vez em décadas, reduzir o número de animais que criam e abatem anualmente. Entre 2000 e 2009, reduziram de dez bilhões para nove bilhões, ou seja, ainda é um número enorme. Isto mostra que a redução do consumo de carne, que é uma questão que está sendo lentamente conquistada nos Estados Unidos, tem potencial de diminuir o número de animais, os impactos e as mudanças climáticas.
IHU On-Line – Que tipo de movimentos existem hoje na luta pela diminuição do consumo de carne no mundo?
Guilherme Carvalho – Existem várias opções de estilos de vida que trazem a ideia de diminuir o consumo de carne. Há vegetariano ou vegano e também o flexitariano, como se tem chamado aquele que chega a reduzir 50% do consumo de carne. Nos Estados Unidos, há um movimento chamado WeekendVegetarian, ou seja, aquele que só come carne nos finais de semana. Há ainda um movimento conhecido por Segunda sem Carne, que faz uma campanha internacional de grande potencial que está ganhando força no Brasil e pode ajudar a reduzir o nosso impacto no efeito estufa. Inclusive esta é uma das principais medidas que podemos empreender – junto com outras, é claro –, tal como reduzir o uso do transporte individual.
IHU On-Line – E o que o consumo de água tem a ver com o consumo de carne?
Guilherme Carvalho – Uma questão essencial de ser entendida na cadeia de produção de carne, leite e ovos, é a da convenção alimentar. Quando consumimos a carne de um animal que se alimentou durante a sua vida de alimentos de origem vegetal, estamos diminuindo a eficiência do uso daquele alimento de origem vegetal. Porque cada espécie tem uma taxa de conversão alimentar, ela come X quilos de alimento vegetal para produzir Y quilos de carne. No caso dos bovinos, esta taxa de conversão está nas casas de sete a dez, ou seja, para cada sete a dez quilos de proteína vegetal ingerida, é gerado um quilo de proteína animal.
No caso dos frangos, que vêm sendo geneticamente selecionados, isto está na casa dos dois a três quilos ingeridos para um quilo produzido. Isto tem uma série de impactos inclusive sobre a água, porque significa que existe por trás da produção animal uma produção vegetal enorme, que está dedicada exclusivamente a alimentar estes animais de produção. Hoje, 97% da soja produzida no mundo é usada para alimentar animais. Além disso, polui muito a água com o uso de fertilizantes e agrotóxicos. Este é um dos muitos componentes do impacto que temos da agricultura animal sobre a água, tanto que existe um estudo recente da Universidade Federal de Mato Grosso junto com a Fundação Osvaldo Cruz, que encontrou resíduos de agrotóxicos no sangue e urina de moradores e nos reservatórios de água e poços artesianos das regiões pesquisadas. Um deles é Campo Verde, um dos principais produtores de grãos no Mato Grosso, que é o maior produtor de soja no Brasil.
Foi verificado que 31% dos poços artesianos com resíduos de agrotóxicos e 40% das amostras de água de chuva estavam contaminados. Este é um exemplo de como a água pode ser afetada pela produção de carne. Pense que os animais produzem quantidades enormes de dejetos que são depositados em lagoas de dejetos; por exemplo, no caso da indústria de carne suína. Estes acabam quase sempre sendo despejados nos campos, sem tratamentos ou com tratamento mínimo, infiltrando-se nos lençóis freáticos e mananciais de águas.
IHU On-Line – Esta água utilizada na produção animal é descartada de que maneira? Ela pode ser recuperada?
Guilherme Carvalho – Ela não costuma ser descartada de maneira correta. Existe um estudo que apontou que uma grande quantidade de animais pode facilmente igualar-se a uma pequena cidade em termos de produção de dejetos. Existe uma iniciativa que pretende gerar combustível a partir dos gases destes dejetos animais, e, portanto, minimizar o impacto ambiental. Se os dejetos fossem tratados corretamente, teríamos alguma redução de impacto no meio ambiente, mas os custos seriam internalizados e tornariam os produtos animais mais caros.
IHU On-Line – Sendo o Brasil o país com maior porcentagem de água doce e, ao mesmo tempo, um dos maiores produtores de carne, como este processo afeta o meio ambiente do país?
Guilherme Carvalho – Existe uma série de efeitos que a agricultura causa no meio ambiente, um deles é o despejo de dejetos animais, como dissemos antes. Além disso, temos outro dado que revela o quanto a produção de carne é prejudicial: hoje, a pecuária é, no Brasil, a maior causa de desmatamento na Amazônia. Água e floresta são coisas que andam muito juntos. Então, quando se suprem áreas de floresta, a água aproveitável do local está sendo perdida.
IHU On-Line – Como mudar essa lógica de produção?
Guilherme Carvalho – O primeiro processo é a conscientização do consumidor. É preciso consumir menos e o consumidor precisa se conscientizar a respeito da qualidade ética e ambiental dos produtos animais que ele consome. É a partir daí que podemos efetivar a pressão sobre o poder público. As políticas públicas também desde já precisam levar em conta o setor da agricultura animal, porque ele tem que ser reconhecido como um causador de alguns dos maiores impactos no meio ambiente brasileiro. Além disso, a pecuária é a maior utilizadora de terras.
IHU On-Line – Que outros hábitos alimentares humanos vêm interferindo no clima?
Guilherme Carvalho – A alimentação que reduz o consumo de carne é ambientalmente melhor. Mas não adianta reduzir o consumo de carne se comemos produtos importados, que vêm do outro lado do planeta. Consumir produtos orgânicos e da agricultura familiar e local é melhor também.
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(Outras Palavras)

Cinema

Filmar o que não se vê
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admin
– 18/05/2011Posted in: Posts
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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo
Assim como o vento ou a eletricidade, que só se tornam “visíveis” pelo efeito que causam (o movimento das folhas, uma luz que se acende), também o espiritual, o sobrenatural, o “além”, só se dá a ver por sua ação sobre a matéria.
Vai daí que o cinema, arte da superfície das coisas visíveis, tem se servido desde suas origens de dois caminhos, basicamente, para mostrar o que não se pode ver: a) os efeitos especiais mais ou menos pirotécnicos (de Méliès a Spielberg); ou b) o que eu chamaria, em falta de definição melhor, de uma mise-en-scène do espanto, um modo de sugerir o sobrenatural pelo efeito que produz na emoção dos personagens.
Um exemplo acabado do primeiro tipo seria Poltergeist. Exemplo supremo do segundo seria Ordet – a palavra, de Dreyer, em que nos convencemos de um milagre sem que haja um único efeito especial.
Claro que é possível, e com frequência acontece, uma combinação entre essas duas vias.
Num cinema de condições modestas de produção, como o brasileiro, optar pela primeira via é uma temeridade. Corre-se o risco do canhestro e do ridículo. Com raras exceções, só os filmes brasileiros para o público infantil se arriscam nessa linha. Realizar no Brasil um Poltergeist seria impensável.
Até um cineasta como Martin Scorsese quebrou a cara, quando filmou A última tentação de Cristo, ao concretizar certas imagens bíblicas, como a do leão e da labareda falando com Jesus no deserto. Nem sempre é possível tornal literal o que é literário.
Salto no escuro
Todo esse preâmbulo é para falar do novo filme de Jorge Durán, Não se pode viver sem amor.
Se o longa anterior do cineasta, Proibido proibir, atinha-se aos limites de um estrito (e um tanto declaratório) realismo, este representa um corajoso salto no escuro, ou quase. O filme lida com premonições, poderes telecinéticos e, possivelmente, ressurreição.
Em resumo, trata-se da história de um menino (Victor Navega Motta) que vai ao Rio de Janeiro em busca do pai (num movimento oposto ao do protagonista de Central do Brasil). Acompanha-o a moça (Simone Spoladore) que o criou como filho, uma ex-namorada do pai desaparecido. Flashbacks esparsos e meio confusos permitem ao espectador construir até certo ponto o passado desse pai misterioso – e da mãe, mais misteriosa ainda.
Outras duas histórias aparentemente alheias a essa se desenrolam em paralelo: a de um jovem advogado desempregado (Cauã Reymond) e sua amada, uma dançarina de boate (Fabiula Nascimento); e a de um professor universitário (Angelo Antonio) e seu pai taxista (Rogério Fróes).
O modo como essas três linhas narrativas vão se entrelaçar é o grande trunfo do bom roteiro de Durán e Dani Patarra, premiado em Gramado, assim como a atriz Simone Spoladore. Alguém falou da semelhança dessa estrutura “multi-plot” com a dos filmes de Iñarritu roteirizados por Guillermo Arriaga. Mas acho exagero: não há no filme de Durán a compulsão barroca por multiplicar os caprichos do acaso que encontramos nos filmes da dupla mexicana.
Truques e dramaturgia
Um dos méritos de Não se pode viver sem amor, para voltar ao tema do início deste texto, é o comedimento com que lança mão de efeitos especiais para expressar os poderes paranormais do menino protagonista. Consciente da modéstia de seus recursos, Durán equilibra de modo satisfatório os truques técnicos e a dramaturgia, raras vezes descambando para o canhestro.
O filme está longe de ser perfeito. Algumas cenas – sobretudo os flashbacks – poderiam ser mais bem cuidadas, em termos de enquadramento e iluminação. Certos personagens secundários (os amigos do advogado, por exemplo) poderiam ser menos “chapados”.
Mas o que sobressai no conjunto é a saudável audácia de um diretor veterano (que filmou tão pouco: só quatro longas) em adentrar um terreno novo e perigoso, em vez de seguir caminhos já batidos.
A seguir, o trailer do filme.

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor, foi durante anos colunista na Folha, escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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