terça-feira, 3 de maio de 2011

Pensamentando

Crônica de mente
.
Por Luiz Rosemberg Filho, do Rio de Janeiro


Um curta que é, talvez, até um filme singular nessa mesmice em que foi transformado o nosso cinema, mais fiel ao capital que ao saber e ao sonhar.

“Nós precisamos da arte para não morrer de verdade ”
Nietzche

Para Renata Sarraceni

Persiste uma ausência de estilo no cinema brasileiro da retomada, que acabou por ficar mais próximo da TV e bem menos do saber. Tal diluição serve ao espetáculo do empobrecimento humano e ao real desconhecimento das nossas muitas contradições. Mesmo os curtas que até outro dia eram ousados e referenciais, viraram invólucro do nada. Um amontoado de vazios como retórica da mesmice política de moralidade duvidosa. O que poderia ser o “pensamento solar” do saber virou poder, burocracia e impotência cultural. Todos os filme se parecem nesta burocratização opressiva do olhar. Olhar e nada ver para melhor se relacionarem com a baixa partidarização do processo criativo.

O curta Crônica de mente, de Clêmie Blaud, dedicado à memória do escritor José Agrippino de Paula, vai no sentido contrário da acomodação linear, ao tentar analisar e entender o que é possível na loucura e o que existe entorno dela como terapia. E, então, ouve-se pérolas como: “Eu não sei mais onde estou. Não sei de onde estou vindo, não sei para onde vou. Já cheguei no fim da estrada, e a estrada continuou. Lá no fim tem o meu princípio, meu princípio agora sou eu”.
Ou uma outra pérola do personagem principal: “Quem é louco para falar que o outro é normal e quem é normal para falar que o outro é louco?” Ou ainda da mesma personagem que pensa ter um duplo: “Pro Heidrich o tempo assim é como se fosse infinito. Mas aqui nessa parte aqui você coloca a máquina do espelho. E quando ele se levanta já vê o rosto todo distorcido e sugado para dentro”, numa referência inconsciente a pintura genial de Francis Bacon.

Ora, o que diz ou camufla o delírio de um paciente? O que o reveste de significação terapêutica? Como inseri-lo numa realidade como a nossa, ainda pior que o seu próprio delírio? No paciente real Marcelo Reis, que pensa ser Heidrich, colocado em chip no seu cérebro, tentam arquitetar fortalezas em suas carências alegóricas. E talvez o mundo sensível seja sugado por essa “máquina de espelhos”, e passe por essa adequação que nos faz perder nossa própria história. E que, ao reprimir em si o sagrado e o profano, torna-se desnecessário pois a loucura é uma estrada simbólica que vai além das certezas, paixões, medos, angústias e inspirações. O paciente enlouquecido e delirante, por ter uma linguagem diferente, está expulso do real. Mas foi Bachelard mesmo quem disse que “o sonhador se transforma no ser de sua imagem”. Por que não o delirante enlouquecido por esse sistema perverso? Então, encena um outro olhar para os poucos que sabem ver espaços inventados ou não como a tal “máquina de espelhos”.

Ora, não se pode inventar os espaços e as imagens do delírio? Uma vez expulso da “normalidade”, ao paciente-delirante só interessa o seu momento, sem obrigatoriedade alguma com o real: “A besta é o seguinte, a besta assim é... como se fosse tipo um piloto de série, né... entrou no túnel para um abismo. Só que aí ia acontecer às cenas de milhares. Ia começar uma coisa mais macabra ainda. Tipo Auschwitz-Birkenau. Pra sugar o quê? Sugar a luz e a imagem.”

As imagens eletrônicas de Clêmie Blaud tentam decifrar momentos revisitados pelas palavras do seu personagem escolhido. E se a palavra é uma fala, a imagem também é. Vestir-se das duas não deixa de ser um ritual simbólico da sua linguagem experimental. Crônica de mente não é, nem poderia ser um filme definitivo sobre a loucura, pois é uma simples chegada em forma de terapia do olhar e do ouvir. Afinal, não deixa de ser um discurso livre e aleatório sobre os estilhaços de momentos e conceitos vividos pelo personagem real de Marcelo Reis. Mas não tenta usar, interpretar ou se apropriar do que seja. E, sim, perambular com a imaginação do Outro. Vivendo-se então em poucos minutos experiências ricas e delirantes do antidiscurso do paciente, que acredita ser o nazista Heidrich. Curiosa esta especulação do passado norteando o presente.

Não poderia deixar de elogiar, uma vez mais, a montagem ágil de Cristina Amaral, que entre fantasmas e luzes faz do pequeno curta uma celebração visceral de incertezas poéticas, em que a única voz que se revela é a do paciente de uma instituição de saúde mental de São Paulo. Sua montagem, edição ou o que seja é uma tarefa difícil, pois se aproxima muito da abstração alegórica do anti-discurso de Marcelo Reis, e que não deixa de ser uma ralação compartilhada com o saber para que sejamos melhores. Melhores como seres humano. Melhores com o saber indeterminando falsos limites.

Crônica de mente é, talvez, até um filme singular nessa mesmice em que foi transformado o nosso cinema, mais fiel ao capital que ao saber e ao sonhar. Clêmie Blaud tenta retomar o curta-metragem como uma manifestação rica de significados. Vê, ouve e vaga com o seu personagem ( que ousa não ser entendido, até mesmo para os mais próximos). Claro que em tão pouco tempo não poderia ser um filme perfeito, mas... felizmente o delírio diz mais que tudo como a tal “estrada que continua” – só que para poucos. O que não deixa de ser uma percepção diferente da loucura, onde o espetáculo está ausente da cotidianidade do discurso como ponte entre a solidão triste do personagem e o cinema autoral.

22/1/2011

Fonte: ViaPolítica/O autor

Crônica de mente
Roteiro: Márcia Regina Rodrigues e Lucas Lui
Fotografia: Cleisson Vidal, Ivan Murilo e Pablo Pamplona
Montagem: Cristina Amaral
Música original: Theodoro Reis e Robson Gonçalves
Produção: Angélica Moura, Clêmie Blaud
Produtora: Bachiana Filmes
Elenco: Marcelo Reis, Marcelo Andrade e Rudifran Pompeu

Clemie Blaud - Bachiana Filmes
clemie@bachianafilmes.com.br


Mais sobre Luiz Rosemberg Filho

rosemba1@gmail.com

Veja, em ViaPolítica, quatro recentes curtas de Luiz Rosemberg Filho:
Nossas Imagen$
As últimas imagens de Tebas
O discurso das imagens
Sem Título

Nenhum comentário:

Postar um comentário