quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Godard

Arquitetura da liberdade
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Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro

O tradutor Celso Marconi traz à luz um Godard mais jovem aos 80 anos do que muitos devotos da experimentação sem causa.

“Mas se houver tristeza que seja bonita.”
Mestre Candeia

Dedicado ao curta metragem Partido Alto de Leon Hirszman

Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Aí temos um rigoroso trabalho de um sólido militante da cultura. Um auxílio iluminado definitivo ao nosso empobrecido saber histórico, filosófico e cinematográfico. Godard e Youssef Ishaghpour em “Arqueologia do Cinema e Memória do Século”, numa brilhante tradução do filósofo, jornalista, crítico de arte e cinema Celso Marconi. Um pequeno livro mais que necessário e oportuno para esta nova geração sem muita expressão, moldada pela televisão e sua tecnologia de intimidação e controle.


Televisão que, sendo uma guerra aberta e permanente ao saber, ilustra bem um pensamento de Clausewitz em que diz: “A guerra é, portanto, um ato de violência exercido para obrigar o adversário a atender nosso desejo... Para alcançar esse fim com segurança, devemos tornar o adversário indefeso, e isto é, em princípio, o próprio objetivo da ação bélica.” Assim sendo, essa tradução oportuna de Celso Marconi, tem o efeito de uma vacina contra uma não-politização, tão necessária a essa permanente encenação bestial do poder. E poder e TV não estão intimamente ligados?

Espaços onde o ilegítimo torna-se referência do desânimo como justificativa da razão militar, que tudo tende explicar erradamente. Claro, o autoritarismo nunca foi um espaço do saber e do prazer, e sim do esvaziamento da poesia, do sonho, da imagem, da história e da revolta. Como sabiamente dizia Valéry: “O mais belo seria pensar em uma forma que tivéssemos inventado.” E é exatamente isso que Celso Marconi vai buscar em Ishaghpour e Godard, experiências de conhecimento que nos foram proibidas por anos e anos de fantasmagoria de encenação de horrores impostos por uma censura inserida por décadas na vida do país. E para quê?

Torna-se necessário reafirmar uma vez mais, a imersão do tradutor lá de Olinda num rico projeto tão anti-ilusionista mas potencializador de novos caminhos teóricos para o cinema. Uma tradução preenchida por um saber mais complexo desse ainda desnorteante Jean-Luc Godard, mais jovem aos 80 anos do que muitos devotos da experimentação sem causa. Na verdade, voyeurs e não cineastas significativos. Ousaríamos até dizer que o voyeur é uma distorção produzida pelo mercado de aberrações da política à TV, numa articulação feroz de inibição ideológica do real. Queiram ou não, tanto a TV como o cinema estão servindo como alimento repressor de intimidação e controle, para que não haja nenhum tipo de resistência ou dúvida quanto à ocupação do nosso mercado pelo lixo de fora e de dentro. E pelo visto o impulso ideológico criativo aqui morreu com Glauber que, sem exagero algum, sempre esteve muito próximo de Brecht e de Godard.

Trata-se de uma verdadeira cosmogonia onde foi se meter Celso Marconi com essa tradução sobre Godard, este verdadeiro Lucrécio de nosso Século XXI, inventor também, de nossa modernidade. Onde tudo é velho e, como querem, a caminho do lixo. Marconi ressuscita entre nós momentos reveladores desse cineasta que sabe olhar e ver mediunicamente, reinventando o mundo. Obra indispensável e oportuna, como oportuno é o tempo, o de mudanças. Assim é e deve ser o pensamento. Obra abrangente de um verdadeiro Godard, só e múltiplo. Como a totalidade, difícil de se revelar, na individualidade, o que só a arte possibilita. Uma real arquitetura da liberdade, o mundo cosmogônico do cineasta-filósofo e sentidor do mundo.

São diálogos em que todos estamos neles, direta ou indiretamente, dialogando também pela teleologia da paixão pelo cinema e a sua linguagem, impossível de se deter, mesmo ao longe, muito longe. Como o rabisco de um relâmpago que se vê e só se ouve depois. Esse é Godard de fogo que incendeia necessidades, alimentando-nos de luz e energia por meio da força invisível de imagens e linguagens que não podem ser tocadas. Abrigos que nos protegem nesta fase de ataque e de domínios contra o cinema, ao qual se refere essa obra maravilhosa e espontânea entre Godard e Youssef Ishaghpour, em seus diálogos. “Arqueologia do Cinema e Memória do Século” é, portanto, um repositório de todo o sentido dialético da história do cinema, através do pensamento e das ideias fruidoras, arrebentando comportas para que outras energias desvendem o verdadeiro significado dessa arte emblemática.

Quem conhece Celso Marconi sabe de suas paixões pela vida, pela arte e pelo cinema. E foram estes amores que fizeram com que se embrenhasse nessa difícil tarefa solitária de uma tradução como essa, em que surge um Godard fazendo história de outras histórias – uma sobrevida para todos nós amantes do inferno que fazemos paraíso através de imagens, histórias e utopias que o cinema nunca recusou. Uma ressurreição dos mortos e uma recuperação dos vencidos, esta a revolução de conceitos nessa bela obra. Uma cosmogonia de linguagem que se apresenta para que possamos caminhar também como um ser social ativo no processo econômico, histórico, político, artístico e cultural.

Esse é o mundo maravilhoso do mito e do conhecimento que Celso Marconi nos traz nessa sua tradução, aproximando Godard de Guimarães Rosa e Glauber (uma vez mais, e sempre)! Pelo olhar, o ver e o caminhar. Não sendo sem razão que Godard, no cinema, foi o único detentor do prêmio Goethe. E que ele, honrou-se, ao recebê-lo, mostrando que o Paraíso não é para qualquer um, o que nem Fausto conseguiu em suas trocas com Mefistófeles, na certeza de que todo poder é nulo se o ser social se manifesta como força histórica de si mesmo e de sua totalidade. Varrendo ele mesmo a história sem as estratégias de delegações, adornos e compensações, que o autoritarismo tem rotulado de Democracias! As insurgências do pensamento, das ideias, das imagens e do olhar e ver atentos, poéticos e humanos, de Godard. O que esse pequeno-grande livro nos revela em todo o seu esplendor e dialogismos.

A recusa do Oscar por Godard possui toda uma significação, a do próprio Godard, de seu cinema, de suas histórias, de seu imaginar, um homem comum e incomum que virou Ser com a presença do mito. Também para não ser, na invenção de outras e tantas histórias. A foto 3x4, num jornal americano com a manchete: “Procura-se”, só o engrandeceu. A mídia americana tentou fazer de Godard um fugitivo, um bandido como aqueles produzidos no grande espetáculo de violência e extermínio produzido quando a nação do Norte saía sem destino anexando o que encontrasse como território, riqueza e negócio. Uma saga de individualismo para a construção da sua totalidade de força, poder e destruição, o que suas guerras têm representado em todo mundo.

“Arqueologia do Cinema e Memória do Século”, nos revela uma montagem bela, generosa, abrangente e humana do tempo, esse intangível, que poucos tocam com Chris Marker, Godard, Resnais. E que Celso Marconi tocou, com sua tradução. Assombrosa, pelos desafios e percursos, na desconstrução do próprio tempo, transformando-o no tempo das musas, dos mitos e dos heróis! Com ela, Marconi não nega a sua tradição, a do gostar e a do ser nordestino. Este Nordeste de nossos maiores exemplos, em quase tudo, de gente, arte e histórias humanas. Sem dúvidas, Celso Marconi é parte de tudo isso, dessa ideia de Brasil que vamos construindo. Como Godard, construindo o mundo no cinema, nas ideias e na utopia!

Em breve numa livraria perto de você. Mas que seja lido como expansão da sua capacidade de sonhar e transformar o mundo para melhor.

23/10/2011

Fonte: ViaPolítica/Os autores

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