sábado, 12 de novembro de 2011

Pensamentando I

Banquete de pobres
Posted on 06/09/2011 by boitempoeditorial| Deixar um comentário
Por Urariano Mota.*
Quando Filadelfo se promoveu para morar numa casinha do beco, mudanças fundas vieram daí. Na recordação de Jimeralto, aqueles foram os anos mais felizes da sua vida. Na sua imaginação, em um curto intervalo de tempo ali houve o reino e pátria da felicidade. Em um processo estranho de mistura de momentos e ideias, chegou mesmo a crer que o céu foram aqueles dias, tão largos e fecundos. Era uma forma de sentir tão absurda, que chegava a transferir a falta de Maria para a sua presença em um céu azul que fosse o beco, cheio de nuvens brancas e papagaios empinados, com uma alegria de domingo de sol em uma praia de Olinda. Ou como um cinema feliz e fora de lugar, a passar numa tela de sala muito escura. E aqui as anotações da vida pulam e saltam das margens como felizes e encantadas rãs, entre grilos e esperanças. Rãs pulam como borboletas que pulassem, ou fossem pássaros em voos rasantes no mato verde e cheiroso de seiva. E vêm com aquele ar de rio, da aproximação da água no nariz, de banho e pulo de flecheiro, sempre como uma etapa do que virá e viria. Algo como uma pátria impossível, utópica, que um dia tenha sido realizada. As anotações da margem, marcas inapagáveis, transbordam.
O beco, dona Maria no beco, tinha cheiro de tanajura frita na panela com banha de porco. Que felicidade no cheiro, no antegosto, na prelibação daquelas pretinhas apetitosas com temperos de só maciez e bondade. Comê-las, antes de ser o fim da festa, era uma festa contínua que não cansava nem atingia o abarrotamento da exaustão. As tanajuras fritas se comiam, para o menino, como o justo coroamento de um trabalho de curumim, como se ele fosse um menino índio e livre, que caçava ao canto de “cai, cai, tanajura, tua bunda é uma doçura” (a rima era gordura, mas só queria dizer doçura). Antes, na procura da festa, havia que pegá-las com cuidado e habilidade para evitar o ferrão nas cabeças, mas que cheiro, que cheiro elas possuíam ainda cruas, cheiro de sovaco de menina-moça, que cheiro! Arrancar-lhes as cabeças, cortar-lhes as perninhas, e como um guerreiro empurrá-las para um caldeirão, imenso na esperança para a quantidade de tanajuras que pegavam. É verdade, a sua habilidade era pequena, sempre haveria de desejar mais que as suas toscas mãos conseguiam, mas era bom ainda assim pela liberdade de errar, tentar e afinal conseguir pelo menos 60 tanajuras para o jantar. Na mesa eram comidas com farinha de mandioca ou pão bolachão, num apetitoso e raro sanduíche. Era melhor que outra iguaria, pão com linguiça.
O curioso e bom é que antes da tanajura tinha a chuva, o toró, a pequena tempestade que descia do céu amplo, cinza, de um cinzento que para os meninos era uma festa, pois transformava o beco num grande chuveiro, num banho coletivo. Ah, suas mães permitiam que os moleques de calção ou nus pulassem na chuva, se emporcalhassem aos gritos “a praia, a praia”. Os meninos escorregavam na lama, que faziam de areia junto ao mar. Se soubessem então que existia algo de nome piscina, chamariam os mergulhos na lama de piscina. Ficavam todos molhados até os ossos, mas sem frio, porque brincar debaixo da chuva era um exercício, uma ginástica entre os pulos e gritos. Debaixo d’água disputavam um bueiro, um grosso cano que descia de um prédio em construção. Durante a chuva o bueiro jorrava, e por isso metiam a cabeça sob esse chuveiro farto, agachados, para melhor desfrute da abundante alegria. O quanto a felicidade era pobre, miserável e boa. Custava tão pouco, porque a liberdade distribuída pelas mães fazia do mísero o feliz.
Infância, Jimeralto lembrava com os olhos úmidos, fechados, com vontade de gritar: Infância, tu eras a liberdade! Então ele, enquanto dormia sob nome falso em uma pensão de outro país, porque São Paulo ou Rio para ele era outro país, então ele sob um novo nome, codinome, batismo forçado de Pedro, rolando no colchão de um cubículo abafado, lembrava o intervalo curto e feliz da vida de Jimeralto. Tudo era tão perto e tão longe. Da idade que ia dos 6 aos 8 anos, até o pulo magnífico para seus 21 anos, uma distância de apenas 13 anos. No entanto, aquele menino de nome real era como um ser de muito longe, de outro planeta.
*Do romance inédito “O filho renegado de Deus”
***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

Nenhum comentário:

Postar um comentário