O que aprendeu a ser,pra sempre,um desafinado.
Ano1983. Faltava pouco, muito pouco mesmo pra ditadura civil-militar tirar o time de campo. Mas a repressão aproveitava para raspar o tacho. Mais brasileiros sumindo. Encontrando a antimatéria. Vocês sabem: matéria não pode encontrar anti-matéria. A matéria some,desaparece.Era isso o que estava acontecendo desde 1964. E houve um salto quântico, uma aceleração do processo, nos cinco últimos anos da ditadura.Mas eu não vim falar disso. Vim falar do encontro que tive com ela.Dez anos antes da sua chegada no mundo. Onde ia encontrar outras palavras, outros sentimentos,outro tipo de homem. Puta frio no inverno de São Paulo.Julho pesado, dentro e fora dos apartamentos. Escuras viaturas, homens de terno e metralhadora, a raspa no tacho. ”Depressão dá em quem pensa demais”, fulminou a jovem.Ela estava muito perto de mim e imaginei como o seu corpo estaria quente por baixo daquelas roupas de frio. Eu queria sentir o (ainda)cheiro de leite da menina. Mas o cheiro, na minha imaginação , era de fêmea: pele, pelos, secreção de fêmea. Adolescente, ela já ia publicar um livro de contos e poesia. Eu estava ali pra dizer :menina, você tem um texto denso, existencial,O que você escreve perturba, põe feridas em carne viva,embora não sejam textos explicitamente políticos. É bom pra este momento em que a ditadura vai tirar o time de campo mas deixar o esquema tático montado para os “democratas”jogarem contra o povo.”Vamos fazer a festa da democracia e você não esquece a ditadura”, disse ela.Falei :”A festa quem está fazendo é a ditadura, que continua levando as pessoas a bater de frente com a antimatéria. “A resposta dela foi rápida : “Não entendi nada. Parece um louco.Tira essa obsessão da cabeça e vai se divertir. Como você se diverte ?”. Pensei em confessar : “Pensando em você”. Mas preferi falar algo como ficar relendo as tiradas irônicas de Mao-Tsé-Tung e de Che Guevara contra os Estados Unidos nos momentos mais aguçados da crise entre socialismo e capitalismo. Procurei cumplicidade no olhar dela. Encontrei pena. Olhei pra ela como um cão abandonado :nunca entendi as perguntas do seu olhar, quanto mais o segredo dos seus olhos. Ela me encarou,muito séria :”Agora preciso estudar.Tenho prova amanhã”. Perguntei se podia tomar a Said eira. Fez um gracioso gesto significando “à vontade”.Botei o uísque sem gelo no copo e desta vez não fui saboreando lentamente. Entornei de vez. Saí sem bater a porta,sem fazer alarde. No começo da escada,chequei se estava com a carteira de identidade.O uísque já queimava meu estômago e chegava ao cérebro. Começava a sentir o impacto da Said eira e a saudade do cheiro de fêmea. Na saída do prédio, a leve impressão de que já ia tarde. Chequei de novo a carteira de identidade. Os “homens”podiam me abordar na próxima esquina. E eu correria o risco de encontrar a minha própria anti-matéria. Como os quase 100 brasileiros que sumiram de 1980 a 1983.
RobertoMenezes
15/1/2011
Dedico esse texto a UMA AMIGA do Orkut. Mas qualquer semelhança com ela é mera coincidência.A parte histórica da anti-matéria, os mortos, o medo e o arrumadinho da democracia, tudo isto é verdade.
(Do amigo Beto)
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