domingo, 1 de setembro de 2013

Snowden


Sobre Snowden
23/8/2013, [*] Gabriella Coleman – Princeton University Press, USA
“Gabriella Coleman, Author of Coding Freedom on the NSA Leaks”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Edward Snowden em Moscou
De todas as acusações arregimentadas contra Edward Snowden, considero o “diagnóstico de narcisismo” a mais espúria e intrigante. Em que sentido, exatamente, arriscar a própria vida – e prisão perpétua – seria caso de personalidade narcísica? Embora se tenha exposto em público, em parte para sua autoproteção, Snowden limitou ao mínimo possível suas interações com a mídia, bem claramente sem buscar atenção indevida. Dado que não há sinais dessa patologia, rotulá-lo como narcisista soa, isso sim, como assassinato de reputação, para desqualificar “preventivamente” questões mais graves que a ação de Snowden trouxe à tona.

Se se contextualiza o que ele fez, não em termos de personalidade, mas à luz do momento histórico contemporâneo, o que se vê, sem sombra de dúvida, é que Edward Snowden não está só. Ele é parte de um cortejo crescente de indivíduos que há anos já diagnosticaram o crescimento explosivo do estado de vigilância e segredo como problema tão grave, que todos se dispõem a assumir riscos pessoais para forçar o debate e as mudanças. O mais notável desse cortejo é que nele se reúnem pessoas de dentro do sistema (William Binney, Thomas Drake, Edward Snowden, Bradley Manning) e marginais (Julian Assange, Barrett Brown e James Bamford).

O fato de que já se ouça um coro de vozes é significativo.

Julian Assange
A opinião pública talvez se mantivesse mais cética, se só se ouvisse uma voz, ou se só os Julian Assanges do mundo – ativistas há muito tempo, que sempre se mantiveram fora do aparelho do estado – estivessem tocando o apito e dando o alarme. O fato de que no mesmo cortejo se reúnam jornalistas investigativos, pessoal militar, empregados de agências de segurança e ativistas sinaliza eloquentemente a extensão do problema: indivíduos sem qualquer conexão entre eles, emergindo de diferentes campos da vida, todos estão identificando problemas semelhantes.

Isso nos leva rumo às margens da segunda questão: a “santidade” da lei. Parece-me, agora já bem claramente, que os programas revelados violam aspectos da lei, tanto no espírito da lei, quanto na letra da lei. Foi o que advogados disseram, sem meias palavras: “Os dois programas violam a letra e o espírito da lei federal. Não há lei nos EUA que explicitamente autorize a vigilância em massa”.

Num mundo ideal, nós simplesmente usaríamos mecanismos legais para eliminar leis nocivas e combater injustiças graves. Os críticos seguiriam essa trilha, antes de infringir a lei. Exatamente o que aconteceu nesse caso.

Desde a aprovação da Lei Antiterrorismo [orig. Patriot Act], aprovada em tempos de grande agitação e muito medo nos EUA, vimos inúmeras tentativas, empreendidas por organizações que defendem as liberdades civis, contra a vasta empreitada das escutas e gravações clandestinas sem mandado e sem supervisão judicial. Um primeiro processo, movido pela EFF e ACLU em 2006 contra a empresa AT&T foi não apenas descartado, mas acabou por ser mumificado por uma lei dúbia, que garantiu às grandes empresas de telecomunicações que cooperassem com o governo um tipo jamais visto de imunidade retroativa. A lei foi adulterada de tal modo, que perdeu qualquer serventia real.

Além dos esforços legais empreendidos por organizações civis, alguns indivíduos usaram canais legais que encontraram à disposição deles para forçar mudanças, sem qualquer resultado.

Thomas Drake
Não é preciso ir além do caso de Thomas Drake, empregado da Agência de Segurança Nacional por longos anos e que, num certo momento, passou a se sentir incomodado com as incontáveis violações da lei a que assistia quase diariamente, e de primeira mão. Seu primeiro ato teve caráter reformista. Procurou seus superiores, disse das suas preocupações e ouviu que parasse imediatamente de meter-se no que não era de sua conta. Procurou então a imprensa, com informação não sigilosa. Por isso, pagou caro, virou alvo de uma investigação do Departamento de Justiça – a qual depois foi suspensa, mas não antes de a carreira de Drake como funcionário público ter sido arruinada.

Até agora, as únicas ações que geraram debate substantivo e esperanças de alguma mudança foram os vazamentos de Snowden. Por quê? Em primeiro lugar, porque não existe a tal maioria inventada que apoiaria a vigilância desmedida.

Quando surgiram as primeiras notícias sobre o programa PRISM e fizeram-se as primeiras pesquisas, só 56% se declararam a favor da vigilância irrestrita pelo Estado, mas a pesquisa não informava que os próprios cidadãos entrevistados estavam sendo também vigiados clandestinamente. Seja como for, como um número que expressa apenas a metade da população poderia ser apresentado como “maioria”? Não pode. E a questão da “aprovação” pelos cidadãos permanece aberta.

Bradley Manning
Além do mais, conforme vinham à tona as revelações mais graves, os números mudaram, e mais e mais norte-americanos opõem-se hoje aos programas de vigilância, sobretudo quando já se sabe que a vida digital dos norte-americanos está sendo capturada e armazenada.

As razões de Snowden para revelar o que revelou não podem ser reduzidas a simples “não deve haver segredos”. Suas palavras sobre porque fez o que fez e os documentos que vazou mostram raciocínio muito mais complexo, que não pode ficar de fora de nossa análise.

O que Snowden fez foi abrir a torneira, para que informação valiosa possa jorrar sobre uma opinião pública que tem do direito de saber. Só se obtiver informação verídica e confiável, o público poderá construir avaliação realista dos acontecimentos e decidir sobre o que fazer de uma agência do governo que, hoje, tem ilimitados poderes para vigiar tudo e todos; que ativamente sonega informação; e que mentiu ao Congresso dos EUA sobre o que faz.

O debate apaixonado que Snowden gerou, a fervente coalizão que se vai construindo e a militância que já chega à imprensa exigindo mudanças depois daquelas revelações – não alguma reverência cega a leis duvidosas – são a própria vida da democracia, em seu pulso mais vital. Todos devemos muito a Snowden, que abriu as portas. Agora, cabe a nós concluir o trabalho.
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[*] Gabriella Coleman ou Biela Coleman (nascida Enid Gabriella Coleman) é uma antropóloga, acadêmica e ensaísta cuja obra incide em “cultura hacker”, estudo sobre os “Anonymous”e ativismo online em geral. Atualmente ocupa a Cátedra Wolfe em Scientific & Technological Literacy na McGill University, Montreal, Canadá. Seu trabalho The Chronicle of Higher Education é considerado o mais importante do mundo sobre os “Anonymous”. Graduou-se na Columbia University, fez mestrado e doutorado na University of Chicago.
(Redecastor)

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