domingo, 29 de setembro de 2013

Manifestações

‘O Estado, a cada manifestação que passa, só deixa mais claro que declarou guerra à população’    l  
Escrito por Gabriel Brito e Raphael Sanz, da Redação 





“Não vai parar, não tem mais volta. Isso que aconteceu no Brasil foi uma ruptura, tanto pra escancarar a democracia disfarçada que temos, como pra fazer nossas reivindicações serem ouvidas de uma vez por todas”, resume ao Correio da Cidadania o advogado Luiz Guilherme Ferreira, um dos responsáveis por tirar da prisão os manifestantes detidos arbitrariamente, quando não a esmo, pela polícia militar, durante os protestos que o Brasil vem registrando.



Como se sabe, a brutalidade policial e seus traços de Estado de Exceção deram o tom dos atos realizados pelos estados brasileiros, no último dia 7 de setembro, mantendo na ordem do dia as pautas colocadas na mesa pela população a partir das jornadas de junho. Depois disso, o governo carioca sancionou lei que proíbe máscaras em atos de rua, em clara tentativa de criminalizar os militantes black blocks, sob as escusas de praticarem “vandalismo”, como bombardeia a mídia incessantemente.



Por outro lado, tal postura, hipócrita diante da omissão face as brutalidades do aparato de guerra do Estado, atesta que os poderes dominantes do país já estão em franco conluio pelo esvaziamento dos atos, que, lembre-se, repudiaram raivosamente antes do ponto de viragem. Para Ferreira, apenas mais um ato de criminalização da luta social, o que é comprovado pela postura arbitrária e obscurantista do Estado, através de sua polícia e delegacias, com seus inúmeros abusos sobre os direitos das pessoas, como descreve o membro dos Advogados Ativistas ao longo da entrevista.



Apesar da contra-ofensiva repressora, Ferreira não hesita em estimular as pessoas a continuarem no exercício de livre manifestação, inclusive radicalmente, esperando que o movimento se intensifique em 2014. “Vá pra rua como quiser, esse direito ainda está garantido, manifestar-se na rua, ainda, não é crime. Portanto, vá pra rua, com sua máscara, como quiser, de forma violenta ou não. Se for violento, o Estado não está autorizado a brutalizar sobre ninguém por algum crime. Faça o que pensa que vá modificar alguma coisa. Quer só levantar cartaz, levante, quer jogar pedra na polícia, também pode jogar. Não estou incitando nada disso, mas são coisas que acontecem e as manifestações estão aí pra deixar claro, os fatos estão aí provando o que ocorre nas ruas. E o Estado não está autorizado a cometer brutalidades contra o cidadão. Pelo contrário, o Estado já tem mecanismos, há muito tempo, instaurados na sociedade a fim de absorver esse tipo de atitude”, explica.



A entrevista completa com Luiz Guilherme Ferreira, novamente realizada em parceria com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.



Correio da Cidadania: Desde o mês de junho, você vinha oferecendo assistência jurídica às prisões claramente arbitrárias realizadas pela Polícia Militar durante as manifestações de rua, o que se repetiu nos atos de 7 de setembro. Inicialmente, o que poderia nos contar a respeito dessas recentes manifestações, o que elas reivindicaram e criticaram com mais força?



Luiz Guilherme Ferreira: Este último ato foi chamado por diversos movimentos, com as bandeiras que todos já vinham trazendo, em nome de transporte público, desmilitarização da polícia etc. Mas a novidade, por ser um 7 de setembro, dia da falsa independência do Brasil, era que muitos setores da direita iriam comparecer. Iriam, porque na verdade não foram às ruas. Porém, isso tornou as expectativas mais tensas. E tudo acabou se confirmando, com uma repressão bem brutal da polícia.



Correio da Cidadania: Como foi a atuação dos black blocks, agora no centro da discussão política e novos alvos de criminalização por parte de governos, a exemplo da lei anti-máscara no Rio? Como se deu, mais precisamente, a repressão estatal nos atos?


Luiz Guilherme Ferreira: Em princípio, o black block é uma forma de atuação, uma tática. Não é organização e não tem líder. As autoridades estão buscando, com seus velhos parâmetros, referenciados em grupos antigos, um líder, uma organização, coisas que não existem. Por isso, a incapacidade de conseguirem lidar com eles. No mais, a incapacidade do Estado em lidar com a população sempre foi clara. Agora, fica latente com os grupos novos, que reivindicam apenas o básico para sociedade, o que incomoda os poderes dominantes.



O black block tem a ação direta como forma de atuação, que por vezes depreda patrimônio público e privado. Apenas constatar que são criminosos, e têm de ser presos, é esvaziar demais uma atuação totalmente política. Eles não saíram às ruas da noite para o dia e resolveram quebrar tudo. E com essa criminalização, pela incapacidade do Estado em lidar com tal novidade, gera-se a brutalidade policial. Assim como a incapacidade de lidar com a pobreza, e tudo aquilo que foge à realidade dos padrões de vida de classe média pra cima, gera a resposta bruta e desmedida do Estado. E insistem, ainda por cima, em chamar de “confronto”. Policiais armados até os dentes contra um bando de moleques com máscara é algo tido como “confronto”.



Mas não é novidade pra ninguém. O lado fascista da polícia paulista, carioca etc. sempre foi latente. Só que no 7 de setembro, especificamente, ao menos aqui em São Paulo, foi uma coisa desmedida. Teve gente que ficou cega, foi atropelada, torturada, conforme informações que obtivemos nas delegacias. Os próprios policiais civis e delegados tentaram impedir o trabalho dos advogados, tentaram nos intimidar... Portanto, é assim: o aparato estatal contra a população.



Correio da Cidadania: Você acha que a atuação repressora, dentro da sua visão, próxima aos fatos, confirma as opiniões que afirmam ter o Estado preparado um clima de terror psicológico contra a população, ecoado pela mídia, com a finalidade de esvaziar os protestos nesse dia simbólico?



Luiz Guilherme Ferreira: Claro. Desde o início, em todos os lugares, a polícia, como braço armado, foi colocada pra amassar as manifestações. Atualmente, dizem que o black block traz insegurança às ruas. Mas, na verdade, nem precisamos falar de manifestação. Voltando um pouquinho no tempo, por exemplo, a janeiro: estava todo mundo andando tranquilo na rua, em janeiro? Com certeza, não. E o black block, estava na rua? Tampouco. De modo que, como sempre, trata-se do Estado policialesco. Agora, a atuação deles se volta a outra faceta da população. Ainda há o massacre na periferia, mas agora resolveram massacrar um pouco mais pelo centro, massacrar outro “caráter” de pessoa, como eles dizem, não apenas os seus tradicionais “bandidos”. Claro que tentam apresentar os novos inimigos como bandidos. Mas é apenas mais uma história de criminalização de movimentos, cerceamento de direitos (como no caso das máscaras), prisões arbitrárias etc.



Correio da Cidadania: Até que ponto existe legalidade, ou não, na lei que proíbe as máscaras, aprovada no Rio de Janeiro e provavelmente vista com muito carinho pela classe política dos outros estados?



Luiz Guilherme Ferreira: Sobre as máscaras, é uma iniciativa totalmente ilegal do Estado. A quadrilha de bandidos, como podemos chamar esses que legislam, deputados estaduais, federais, senadores e respectivos governos, agora que vê uma revolta popular pisando em seus calcanhares, resolve ser rápida na resolução de determinados assuntos. Porém, é uma rapidez totalmente ilegal. A Constituição Federal garante direito de manifestação, não diz nada sobre máscara etc. Temos de levar em conta que as manifestações são atitudes legítimas do cidadão. Mas saindo do contexto da manifestação, não posso andar de máscara na rua, fora de atos? Claro que posso. Tenho de me identificar a todo momento? Não.



Assim, a manifestação não se difere muito do dia a dia, é a mesma coisa que o direito de ir e vir. E a identificação forçada que querem fazer beneficia quem? A polícia, que fica filmando e fotografando movimentos, e depois busca seus militantes em casa etc. A lei não ajuda ninguém, portanto. Eles podem andar sem identificação na farda. Podem dar tiro e cegar pessoas. Mas nós não podemos andar de máscara na rua. Nesse ponto, legalmente falando, não há o mínimo cabimento. Mas até se discutir isso numa esfera maior, leva-se tempo. E eles utilizam a lentidão, produzida por eles mesmos, pra manterem a situação tal como está.



Correio da Cidadania: Quais as manobras do Estado pra dificultar o trabalho dos advogados que tentam libertar os presos em atos políticos?


Luiz Guilherme Ferreira: Desde o início das manifestações, percebemos que são atitudes propositais. Desde a plantação de provas, colocando mochila com molotov, bola de gude, estilingue e atribuindo seus usos aos presos. Espancam os manifestantes no trajeto da rua à delegacia. Avisam que levarão os presos a uma determinada delegacia e não o fazem, levando-os a outro lugar. Os delegados tentam impedir o trabalho dos advogados, dizendo que estamos lá pra “captar cliente”, algo proibido pela OAB. Tentam usar nosso trabalho dessa forma, alegando “captação de cliente”. Omitem informações, escondem os presos.



A partir do dia 7, teve gente que passou dias presa porque não tivemos nem notícia da prisão. Gente que não teve direito ao telefonema, ao advogado, nada. De todas as formas, o uso da máscara está conectado às dificuldades que o Estado e seu aparato tentam impor às manifestações. Querem sufocar as manifestações e continuarem na vidinha bonita deles.



Correio da Cidadania: Tendo em vista que já temos presos, mortos e desaparecidos nesses tempos de democracia, vimos o caso da menina do Rio de Janeiro que teve seu nome incluído num inquérito policial por ter postado matérias do black block. Depois, até por orientação dos pais, avisou que poderia pedir asilo político na Argentina. Qual o impacto de tal fato no momento político que vivemos, trata-se de mais um caso que corrobora a ideia de semelhança do atual regime político brasileiro com a ditadura?



Luiz Guilherme Ferreira: É o complemento que faltava: a relação desses fatos com ditaduras militares. O que são ditaduras? Regimes de exceção. A que? Às leis que vigoram no país. Colocar o crime de formação de quadrilha sobre pessoas que não se conhece e administram uma página virtual do black block é uma exceção à lei. A pessoa não voltar pra casa, por correr risco de ser presa, configura exceção à lei. Uma pessoa ser detida apenas para averiguação, quando a prisão só pode ser feita em flagrante ou através de ordem judicial, é uma exceção à lei.



O que estamos vivendo hoje não é uma ruptura do dia pra noite, tal qual no golpe de 1964. Mas é algo maquiado e vem vindo aos poucos. Como eu disse, antes mesmo das manifestações, já não tínhamos nossos direitos respeitados, principalmente pela polícia. Agora, a situação apenas se agravou. A semelhança com ditaduras é gritante e só não vê quem não quer. Se sair à rua pra se manifestar e não saber se voltará pra casa, ou se voltará cego por causa da brutalidade policial, não configura regime de exceção, não sei o que pode ser um regime de exceção.



A lei está dando lugar à arbitrariedade das ditas “autoridades”. Portanto, fazem o que querem, na hora que querem, sem respeitar lei alguma. Sem a mínima dúvida, um regime de exceção.



Sobre a história da menina, como o nome diz, asilo político significa perseguição política. Num Estado dito democrático, é impensável. Mas é o que está acontecendo.



Correio da Cidadania: Quais caminhos você acredita que a sociedade e seus movimentos mais organizados podem tomar pra conter e superar, progressivamente, a truculência estatal nas manifestações, que, de norte a sul, segue a mesma linha traçada por você?


Luiz Guilherme Ferreira: Permanecer na rua. O Estado, a cada manifestação que passa, só deixa mais claro que declarou guerra à população. Mas seus representantes só estão lá porque permitimos. Portanto, em minha opinião, tem de se continuar na rua. Alguns coletivos, como os advogados ativistas, se organizam pra defender as pessoas de qualquer tipo de ilegalidade – tentam ao menos. Conforme a repressão do Estado aumenta, a articulação do povo aumenta na mesma proporção. Se eles têm o Estado a favor, temos nossa articulação do nosso lado.



Não vai parar, não tem mais volta. Isso que aconteceu no Brasil foi uma ruptura, tanto pra escancarar a democracia disfarçada que temos, como pra fazer nossas reivindicações serem ouvidas de uma vez por todas. Para que possamos ter uma vida mais digna, políticos mais dignos, viver sem uma polícia militarizada e todo o resto que disso decorreria.



Correio da Cidadania: Finalmente, o que você espera das mobilizações, principalmente nos próximos 12 meses, com eleições e olimpíadas no calendário? E que orientações jurídicas você passaria aos manifestantes?


Luiz Guilherme Ferreira: Em relação à Copa do Mundo, em minha opinião, não deveria sequer ser realizada aqui. Pra mim, tal processo deve ser travado, porque se, é pra agradar os poderosos desalojando gente, investindo bilhões em estádios, enquanto todo o resto fica às traças, não tem que ter Copa nenhuma. Minha esperança é que ,perto da Copa do Mundo, estejamos num estado de caos muito mais grave que agora. Assim espero, e gostaria mesmo que acontecesse. Estaremos na rua compondo o movimento.



Sobre orientações jurídicas, é o seguinte: vá pra rua como quiser, esse direito ainda está garantido, manifestar-se na rua, ainda, não é crime. Portanto, vá pra rua, com sua máscara, como quiser, de forma violenta ou não. Se for violento, o Estado não está autorizado a brutalizar sobre ninguém por algum crime. Faça o que pensa que vá modificar alguma coisa. Quer só levantar cartaz, levante, quer jogar pedra na polícia, também pode jogar. Não estou incitando nada disso, mas são coisas que acontecem e as manifestações estão aí pra deixar claro, os fatos estão aí provando o que ocorre nas ruas. E o Estado não está autorizado a cometer brutalidades contra o cidadão. Pelo contrário, o Estado já tem mecanismos, há muito tempo, instaurados na sociedade a fim de absorver esse tipo de atitude.



Minha orientação jurídica é a de que o cidadão vá à rua, mas sem esquecer de fazer o seguinte: tenha o número de um advogado e esteja com seu documento, pra eles não sumirem com você.



Ouça o áudio da entrevista aqui.

Gabriel Brito e Raphael Sanz são jornalistas.

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