sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Pinochet



Em 23 anos de democracia, o Chile condenou repressores, mas deixou Pinochet impune
O ditador chileno Augusto Pinochet faleceu sem ter cumprido um único ano de prisão. Ironicamente foi em nome dos direitos humanos que os seus advogados o conseguiram manter longe das grades. 23 anos depois as feridas continuam abertas no Chile. Por Victor Farinelli, do Opera Mundi

Victor Farinelli - Opera Mundi


Em setembro de 1999, diante do plenário da Corte Suprema de Justiça do Chile, o coronel na reforma Olagier Benavides declarava, sobre sua participação no caso Caravana da Morte: “a missão determinava que todos os detidos envolvidos com o outro governo (de Allende) estavam condenados à morte. Os superiores diziam que não podia haver piedade, porque aquilo tinha que marcar um precedente, deixar claro, a todos os opositores, e também aos regimentos militares do país, que o novo governo não toleraria nenhum titubeio”.

Relatos como o do coronel Benavides não foram ouvidos em nenhuma corte de justiça do Chile na época em que eles aconteceram, durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Nos primeiros anos do regime, apresentar um recurso de amparo na Justiça para investigar o desaparecimento de algum parente ou conhecido era a única medida legal que se poderia fazer por meio dos tribunais. Medida, ademais, pouco efetiva, já que os ministros da Corte Suprema, naquela época, diziam abertamente que desconheciam indícios concretos da ocorrência de desaparições e execuções políticas.

Terminada a ditadura, o Chile foi pioneiro no continente em investigar e processar criminosos por violações aos direitos humanos. Em 1990, dois meses depois da posse do primeiro governo após o retorno da democracia, o presidente Patricio Alwyn criou a chamada Comissão Rettig. Através do relatório final dessa “comissão da verdade chilena”, entregue em 1991, foram abertas as primeiras cinco causas de direitos humanos no país, no ano de 1998, nas quais se processaram o ditador Pinochet e seus principais colaboradores.

Ao longo dos anos, e com a realização de uma segunda comissão (a Valech, em 2003), foram abertos um total de 1104 processos – 733 ainda em andamento – relacionados aos crimes de 1544 vítimas da ditadura. Foram determinadas as sentenças de 276 agentes do estado, dos quais 262 permanecem presos, alguns faleceram na prisão e outros libertados por diferentes motivos.

Praticamente todo o alto comando dos aparatos de repressão está hoje cumprindo pena nos presídios de segurança máxima de Punta Peuco e Penal Cordillera, construídos especialmente para criminosos da ditadura e criticados por organizações de direitos humanos, chamados de “prisões de luxo”. Essas mesmas organizações alimentam outra frustração, muito maior, que é o fato de que Pinochet faleceu sem cumprir nenhum condenação – algumas das quais foram postergadas por liminares conseguidas pelos seus advogados, e que eram baseadas, ironicamente, em razões humanitárias.

Processo 2182/98
O coronel Olagier Benavides era oficial do regimento militar na cidade de Talca, no sul do Chile (240 Km de Santiago). No dia 3 de outubro, recebeu a visita de uma comitiva de sete oficiais do Exército, liderada pelo general Sergio Arellano Stark, junto com um comboio de soldados, que saíram da capital três dias antes. Era a “Caravana da Morte”, que por onde passava deixava um rastro de violência e morte, manchando de sangue toda a delgada geografia chilena.

O depoimento do coronel Benavides era parte do processo 2182/98, o primeiro e mais amplo caso judicial por crimes cometidos pela ditadura no Chile, iniciado em 1998 pela então presidente do Partido Comunista chileno, Gladys Marín, junto com a AFDD (Agrupação de Familiares de Detidos Desaparecidos) e a AFEP (Associação de Familiares de Executados Políticos).

Eduardo Contreras foi um dos advogados que trabalhou na equipe jurídica responsável pela acusação no processo e lembra do que ele qualifica como “uma batalha jurídica”, tensa desde o dia em que a protocolaram na Corte de Apelações de Santiago. “Pinochet ainda era o comandante-chefe das Forças Armadas e tinha muito poder. Para sustentar sua inclusão como réu, tínhamos que apresentar uma causa perfeita para que não fosse rejeitada”, recorda.

Originalmente, o processo 2182/98 considerava apenas os casos Caravana da Morte e Chacina da Rua Conferência. O juiz Juan Guzmán, considerado um dos mais conservadores da Corte Suprema chilena, aceitou a causa, que transformou em réus o ditador Augusto Pinochet e os chefes dos serviços de inteligência e tortura: Manuel “El Mamo” Contreras, Arellano Stark, Miguel Krassnoff, Álvaro Corbalán, Pedro Espinoza Bravo, entre outros.

Um mês depois, a Corte aceita incluir no processo as informações levantadas pelo relatório final da Comissão Rettig a respeito dos casos de Villa Grimaldi, Operação Colombo e Operação Condor.

Pinochet detido, mas não no Chile
O processamento, do qual foi notificado em fevereiro, foi apenas o primeiro revés sofrido por Pinochet em 1998, que seria seu annus horribilis. A situação levou o ex-ditador a fazer uma manobra, renunciando ao comando militar e assumindo o cargo de senador vitalício designado pelo Conselho de Segurança Nacional, o que lhe garantia imunidade parlamentária – originalmente, a Constituição da ditadura determinava que todos os ex-presidentes chilenos e ex-comandantes-chefes das forças armadas eram designados senadores vitalícios, o que foi derrubado pela reforma constitucional de 2005.

Em outubro daquele mesmo ano, o ex-ditador viajou a Londres e foi detido em uma clínica onde realizada exames, graças a um pedido de detenção internacional e extradição, emitido pelo juiz espanhol Baltazar Garzón. Na Espanha, Pinochet era investigado por 94 denúncias de torturas a cidadãos daquele país durante o seu regime, e pelo assassinato do diplomata Carmelo Soria por parte das forças repressoras, em 1975. Sua prisão temporária na clínica dura mais de 500 dias e ele só regressa ao Chile em março de 2000, depois de forte pressão de políticos chilenos, incluindo os da centro-esquerda, que defendia seu julgamento por parte da Justiça Chilena.

O processo 2182/98 ainda não está concluído, mas já levou à condenação dos réus mais conhecidos: Contreras, Krassnoff, Corbalán, Espinoza, entre outros. A única exceção foi o ditador Pinochet, que faleceu no dia 10 de dezembro de 2006, sem nunca ter sido preso no Chile, como foi no Reino Unido.

Participação do Estado
Segundo o advogado Eduardo Contreras, que atuou em algumas causas relacionadas ao processo, “a principal dívida do Estado Chileno diante das violações de direitos humanos é que nunca tomou iniciativa em levar os criminosos aos tribunais, mesmo tendo os relatórios de duas comissões da verdade. Todos os processos, desde esse primeiro, foram iniciativa das organizações de familiares”.

Por sua parte, o diretor do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior, Francisco Ugás, contesta em parte essa informação: “até 2009, havia um instrumento constitucional que impedia o Estado de participar de julgamentos dessa natureza”. Ugás diz que a partir de uma mudança realizada pela então presidente Michelle Bachelet, o Estado pode participar como parte interessada nas causas.

Para os familiares de vítimas da ditadura, porém, essa mudança é insuficiente. Segundo Gabriela Zúñiga, porta-voz da AFDD, “o Poder Executivo nunca teve uma atitude mais contundente em favor das causas de direitos humanos e o Poder Judiciário ainda mais, foi cúmplice dos crimes durante a ditadura, se negando a aceitar até mesmo os recursos de proteção, e depois, já na democracia, manteve certos pactos que permitiu a aplicação de benefícios inaceitáveis para os réus”. Zúñiga se refere a liminares com as quais os advogados de alguns condenados conseguiram a aplicação de “meia prescrição” e outros recursos visando diminuir as penas.

A mudança impulsionada por Bachelet também permitiu que a Corte de Apelações começasse a trabalhar em muitas outras causas menores de tortura e assassinato de opositores – até então, só era possível levar à justiça os casos de crimes massivos. Graças a isso, as organizações de familiares (AFDD e AFEP) protocolaram centenas de novas causas. “A grande maioria são casos desconhecidos, mas não menos importantes. Alguém que foi assassinado por estar na rua durante o toque de recolher, ou algum pequeno caso de desobediência civil que terminou em morte, também por abuso de autoridade”, explica Contreras.

Porém, três desses processos mais recentes se destacam pela importância de suas vítimas. Um foi o que rediscutiu a causa da morte do presidente Salvador Allende, que confirmou a tese de suicídio – e negando a possibilidade de que ele teria sido assassinado pelos golpistas.

Outros dois processos emblemáticos são o do general Alberto Bachelet, pai da ex-presidente e atual candidata presidencial Michelle Bachelet, e o que investida a causa da morte do poeta Pablo Neruda, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, falecido 12 dias depois do golpe, por uma suposta metástase de câncer que ele sofria.
(Carta Maior)

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