quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pensamentando

O masoquismo, subsolo do sadismo
O que Charles Chaplin estaria insinuando ao apresentar "O grande ditador" com a mesma fisionomia de um simples barbeiro do gueto? Estaríamos diante de uma sátira sobre as origens pauperizadas de Hitler, ou Chaplin estaria falando da contiguidade entre a massa anômica e o Führer patriarcal? A massa heterônoma de pequenos ditadores se reconhece no Führer Pai, o mesmo que logo recorrerá ao infanticídio de seus súditos. O holocausto do outro pressupõe o auto-holocausto. O masoquismo, subsolo do sadismo. Por Flávio Ricardo Vassoler.

Flávio Ricardo Vassoler


O que Charles Chaplin estaria insinuando ao apresentar O grande ditador (1940) Adenoid Hynkel com a mesma fisionomia de um simples barbeiro do gueto? Estaríamos diante de uma sátira sobre as origens algo pauperizadas de Hitler? Ou, na verdade, Chaplin teria apreendido a profunda contiguidade entre a massa anômica e o Führer patriarcal?

O contexto imediato de realização do filme não poderia ser mais tétrico para as democracias liberais. Em 1940, a Alemanha transforma a Europa em seu Espaço Vital. Mas o que a “inocente população civil” teria a ver com a ascensão meteórica do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães?

Eu me lembro de uma foto do período da República de Weimar – o período alemão entre guerras que antecedeu a chegada de Hitler ao poder. Um menininho solta pipa com uma fila interminável de desempregados a lhe observar. 1929 e suas decorrências implacáveis. As fraturas históricas tingem o lúdico com uma nova tonalidade. A pipa não era feita de mero papel. Não. A pipa era feita de papel-moeda, nada menos que 2 milhões de marcos completamente sem valor tentavam alçar voo com as empinadas do alemãozinho. A foto ainda pôde capturar outra ruptura: em frente a um mercado, os seguranças repelem um senhor que lá tenta entrar com um carrinho de mão repleto de moedas. Na vitrine, uma torta custa, aproximadamente, 4 milhões de marcos. A inflação estratosférica lotou o carrinho do senhor Fritz com a poupança desvalorizada em busca do mero almoço.

Tanto a Dialética do esclarecimento (1947), de Theodor Adorno e Max Horkheimer, quanto As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt, observam com quem a população depauperada pela profunda crise econômica tem contato ao tentar vender o almoço para poder jantar. Quem são os donos do mercadinho? A quem pertence a lojinha da esquina? “Judeus, judeus, judeus!” – ressoa o mantra do antissemitismo. Mas por que havia uma grande quantidade de judeus nos setores sociais de circulação monetária?

Ora, historicamente, a Igreja e os monarcas permitiam que os judeus ocupassem postos na administração pública? Setores-chave da economia lhes eram vedados. A esfera produtiva lhes era proibida por excelência. A perseguição histórica transformou os judeus em nômades. A alta burguesia judaica compôs o seleto rol dos banqueiros. O nome mais emblemático desponta com os Rothschild, junto a quem o empreendedor brasileiro Irineu Evangelista de Sousa, também conhecido como Barão de Mauá, tentou contrair empréstimos. A “grande conspiração judaica para tomar o mundo” decorre do ódio aos financistas profundamente imbricado ao antissemitismo.

Os cristãos poderosos jamais puderam prescindir das parcelas de um Rothschild para fomentar suas guerras – e seus pogroms. Os industriais sempre se mostraram consequentes com a lei de desenvolvimento das forças produtivas ao contraírem adiantamentos de mais-valia junto às casas bancárias. Para a sociedade alienada de si mesma, isto é, para a sociedade que apenas vê o machado, e não aqueles que efetivamente empunham o instrumento letal, o “judeu” é o culpado pela bancarrota das instituições, o “judeu” avarento, a pequena burguesia dona das lojinhas, das mercearias, o “judeu” usurário – em suma, todos aqueles que pertencem à esfera da circulação econômica e que apresentam aos trabalhadores desempregados a nota promissória de seus salários roubados no chão da fábrica.

Eis um ponto a ser novamente destacado: a sociedade alienada de si mesma não reconhece os verdadeiros carrascos. A lógica de dominação e exploração fica oculta sob o véu da aparência. Os “judeus” expulsos da esfera produtiva são os algozes do cotidianos, os agentes concretos da inflação – ora, será que um dono de mercearia poderia deixar de aumentar os preços de seus produtos em meio à inflação galopante? Mas o proletariado desesperado quer alguém a quem culpar. A história não se assenta sobre o evangelho segundo Talião?

Onde está o bode expiatório? “O câncer judaico não tem raízes. A nação alemã está farta desses usurpadores!” Enquanto latia essas palavras de ordem e de ódio, o autor de Mein Kampf (Minha Luta, 1925) conhecia o pragmatismo político de seu antissemitismo. “Se não houvesse o judeu, teria sido necessário inventá-lo”. Não à toa o grande capital ariano afluiu com investimentos inimagináveis para que os nazistas contivessem o espectro vermelho que rondava a Europa. “A horda bolchevique, os judeus internacionalistas!”

O salário expropriado na fábrica só se torna imediatamente nulo diante das compras. Eu não sei quem são os donos da minha indústria; os acionistas não passam de uma fantasmagoria. Mas “o judeu e seus traços fenotípicos não me escapam”. Nesse sentido, a percepção de Chaplin é acurada. Hitler, que viveu tempos de mendicância na Viena do entre guerras, pôde efervescer o rescaldo de seu antissemitismo ao assistir à “lógica clânica e endógena dos judeus”.

Ora, se um grupo é historicamente perseguido, seus membros tendem a estreitar relações para ajuda mútua. Estamos diante de uma forma básica de defesa. Mas como são os algozes que escrevem a história e propagam as sentenças pelo rádio, as vítimas se tornam os réus. Pelo veredicto de época, os judeus de fato se tornaram o povo escolhido.

Que tal oferecer à massa rota uniformes elegantes e bem cortados? Que tal dar à massa um sentido de grupo, um sentido de pertencimento? Que tal acabar com a anomia social fortalecendo os egos combalidos pela crise com a lógica do Partido, com eventos públicos intermináveis, em meio aos quais a serpente humana marcha a passo de ganso? Todos os anseios são corporificados por Deus Pai, o Führer – vale lembrar que o verbo führen, em alemão, quer dizer “conduzir, levar, guiar; dirigir, liderar, guiar, estar à frente”. Hitler é a vanguarda do proletariado. Que significa chamar seu partido de nacional-“socialista”? Ora, Mein Kampf já não havia diagnosticado que as táticas propagandísticas da esquerda eram infalíveis? A cor vermelha atrai a massa em meio às ruas e avenidas, da mesma forma que o touro tresloucado vai em direção à espada oculta do toureiro. (Como sabemos que as hordas nazistas não passavam de bucha de canhão para a guerra, a comparação não tem nada de fortuito.) E mais: Hitler bem sabia os alemães, o franceses e o ingleses se veem, antes de mais, como alemães, franceses e ingleses. “O internacionalismo é uma abstração do judeu Karl Marx”. Eis o logo do “nacional-socialismo”, e as massas marcham pela estética das flâmulas e das tochas para, logo em seguida, romperem seu anonimato nas salas de cinema que Joseph Goebbels, o ministro da propaganda, fazia questão de superlotar. O eu débil se sente menos combalido ao (não) se reconhecer nas paradas nazistas que logo se confundirão com as trincheiras. Logo menos, a massa entre os escombros já não poderá se reconhecer.

Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, em alemão). Se notarmos bem, o nome desponta como uma imagem especular com os termos equidistantes em relação ao eixo da contração “dos”: “nacional” hipnotiza os “alemães”; “socialista” faz comício para os “trabalhadores”. O NSDAP chega ao poder, em janeiro de 1933, de “maneira democrática” – enfatiza Charles Chaplin. Assim, a contiguidade entre o grande ditador e o barbeiro do gueto tem um substrato de profunda (re)produção histórica. O Führer pressupõe os pequenos ditadores, cuja distância do poder – frustração basilar em uma sociedade calcada no hedonismo de César – será compensada pelas façanhas de Deus Pai. E se a história se consuma pelos holocausto tanto das vítimas quanto dos soldados, a massa/bucha de canhão se sente proprietária das terras e do espólio que jamais lhe pertencerão, já que pode disparar seu ódio contra o outro, o réu, o culpado, o condenado. Pilatos em miniatura, os pequenos ditadores gritam com o dedo em riste: ecce homo, eis o homem – “o judeu”.

O bom e velho Charles Chaplin nos faz pensar sobre a continuidade da paranoia historicamente orientada. Será que superamos a lógica persecutória do bode expiatório? No contexto brasileiro, por exemplo, quem são os nossos “judeus”? A quem se deve culpar? Talvez tenhamos uma pista do ethos fascista Brasil adentro ao nos depararmos com a síntese do poeta Francisco Alvim, que, em seu livro Elefante, bem soube fazer o diagnóstico de nossa sociopatologia. Assim falou o poema-pílula “Parque”: “É bom/ mas é muito misturado”. (Será por isso que o Parque do Ibirapuera, em uma das regiões mais ricas de São Paulo, tem tão poucas entradas para pedestres?) Não é esse o hino da classe média que votou em massa no deputado estadual Ubiratan Guimarães, o coronel da PM que comandou a invasão do Carandiru pela Tropa de Choque?

Consta que o Leviatã (1651), obra magna do filósofo inglês Thomas Hobbes como bandeira para a legitimação do absolutismo, desponta com a imagem de um grande monarca a envergar a coroa, a espada e o cetro de seu poder. Charles Chaplin nos pede que que observemos a figura do grande ditador hobbesiano com mais atenção. Quando nos aproximamos da imagem, vemos que o Leviatã é composto da somatória de cada um dos seus súditos. A massa heterônoma de pequenos ditadores se reconhece no Führer Pai, o mesmo que logo recorrerá ao infanticídio de seus súditos. O holocausto do outro pressupõe o auto-holocausto. O masoquismo, subsolo do sadismo. Adolf Hitler sentencia que O grande ditador poderia dar um novo título à marcha da História. “Crime, castigo e sadomasoquismo”.

(*) Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

(Carta Maior)

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