domingo, 13 de fevereiro de 2011

Pensamentando I

Nem Sansão, nem Dalila
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Por Jorge Pinheiro, de São Paulo


Talvez o antídoto contra a submissão e o poder se encontre na leitura gnóstica da sexualidade e da natureza humana.

Colagem de Luiz Rosemberg Filho

Ele se chamava Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz, nasceu em Málaga, em 1906, e morreu no Rio de Janeiro, em 1970. Trabalhou em circo e aprendeu a vida de artista com o pai e mãe. Mas, virou astro de cinema, o maior do Brasil. E eu me lembro do primeiro filme que vi dele, levado pela mão por minha mãe, ali no Pathé da Cinelândia.

O pensamento divergente ao catolicismo brotou na Idade Média como socialista, na verdade, anarco-socialista. E, somado a diferentes expressões libertárias da fé cristã, de negação do Estado e dos poderes por direito divino, ensinaram que a consciência de cada pessoa era a única lei aceitável, e a comunidade, dona de seu destino, deveria recuperar as terras dos senhores, e negar ao Estado o serviço pessoal ou o tributo em dinheiro. [1]

Essas expressões libertárias da fé cristã forneceram base ideológica para o anarco-socialismo: na Boêmia receberam o nome de hussita; na Alemanha, na Suíça e nos Países Baixos, de anabatista. Eram movimentos de revolta contra o senhor, o Estado, a Igreja, o direito romano e contra o direito canônico, em nome do protestantismo primitivo.

Anabatistas, bogomilos, hussitas e franciscanos, estes mais tarde seriam deglutidos pela igreja, assim como os jansenistas, ressuscitaram crenças que se originaram no gnosticismo cristão e no protestantismo primitivo e transformaram-se em correntes subterrâneas até os séculos XIV a XVI, quando explodiram em revoltas.

Colagem de Luiz Rosemberg Filho

Nem Sansão, nem Dalila, o filme, estrelado por Oscarito e Fada Santoro, é a história de um barbeiro chamado Horácio, que depois de sofrer um acidente, que funciona como máquina do tempo, vai cair no Reino de Gaza, lá na Palestina antes de Cristo. E lá ele conhece um herói, Sansão, cuja força vinha de uma peruca. Horácio, então, troca a peruca por um isqueiro e transforma-se no homem forte e poderoso de Gaza. A partir daí vira um ditador.

Nessa raiz subterrânea estava o primeiro pensamento libertário do cristianismo medieval, o catarismo que, por seus vínculos diretos com a gnose, foi golpeado pelo catolicismo, mas permaneceu nas artes, em especial no trovadorismo [2] e na simbologia alquímica [3].

Assim, o gnosticismo esteve presente na ancestralidade do anabatismo e do anarco-socialismo. Aliás, segundo Piotr Kropotkin (1842-1921), quando perguntaram a Hans Denck (1495-1527), pastor do movimento anabatista, se reconhecia a autoridade da Bíblia, ele disse que somente a regra de conduta que uma pessoa encontra, para si na Bíblia, é que constitui a obrigação da sua consciência. [4]

Sansão desde a perspectiva do gnosticismo, num mergulho e utilização da mitologia grega, traduz arquétipos masculinos negativos, de inferioridade e rejeição, de ódio e menosprezo pela mulher, e a utilização desta como objeto de prazer sexual. E, com humor, Nem Sansão, nem Dalila trabalha esses elementos, que vão estar presentes na música de Cazuza.

O caráter de fé dos movimentos de pensamento divergente ao catolicismo, para Kropotkin, levou o anarco-socialismo a ter uma dívida histórica com o gnosticismo e com o cristianismo libertário medieval. E isso fica claro na leitura que Mikhail Bakunin (1814-1876) faz do mito de Adão e Eva. [5]

Dalila, ainda segundo o gnosticismo, apresenta um arquétipo negativo da mulher: o aproveitamento do adormecimento emocional do homem, a fim de provocar perda de poder, de força espiritual, e fazê-lo macho rendido diante do seu próprio erotismo.

O pensamento gnóstico sobreviveu a partir da Idade Média, já que as comunidades cristãs libertárias foram perseguidas e exterminadas, através das guildas, associações profissionais e sociedades secretas, das quais a mais conhecida hoje é a franco-maçonaria.

O sigilo profissional, aceito e reconhecido, evitava o policiamento das autoridades sobre essas organizações, às quais só se tinha acesso após cerimônia de iniciação. Assim conservaram idéias libertárias tanto no que se referia às questões sociais como religiosas. A franco-maçonaria manteve, dessa maneira, a concepção de mundo gnóstica, aliada ao simbolismo alquímico, mesmo quando os vínculos dessa sociedade com pedreiros e construtores se perderam.

Nem Sansão, nem Dalila é, assim, um conceito gnóstico que parte da mulher alquimista, a sacerdotisa do fogo, arquétipo superior, que nasce quando o lado narciso desta, o Si-mesmo, é transcendido. Vive, então, a beleza espiritual, que pode, entre outras coisas, se expressar na sexualidade tântrica, quando alcança orgasmos múltiplos sem ejaculação, bem como ejaculação sem orgasmos. A partir desse momento se torna redentora do macho caído, imerso no sono emocional. Por isso, nem Sansão, nem Dalila fala da construção do humano.

Diante da relação entre as associações profissionais e o gnosticismo, e dos vínculos entre os movimentos de fé libertários e o anarco-socialismo, Kropotkin disse que homens de direito e por iniciativa individual, que não tinham sido pervertidos pela corrupção de um governo ou da Igreja, constituíam fraternidades ajuramentadas, sociedades políticas e religiosas, uniões de ofício, guildas, como se dizia na Idade Média. [6]

Existe uma linha histórica e de pensamento entre gnosticismo, cristianismo divergente e anarco-socialismo, conforme defende Kropotkin, que teve origem na luta contra o Império Romano, origem dos males que, em tempos modernos, coagularam ao redor da noção de Estado.

O Império Romano, acreditavam os gnósticos, era a encarnação do inimigo, sistema de dominação presente no campo político, social e espiritual, legislando sobre todos os setores da vida.

Para Kropotkin, o Império Romano foi um Estado na acepção do termo. Até os dias atuais ainda subsiste, para o legislador, como um império ideal. Os órgãos desse império cobriam uma rede imensa, um vasto domínio. Tudo afluía para Roma: a vida econômica, a vida militar, as relações jurídicas, as riquezas, a educação e até a própria religião. De Roma vinham leis, magistrados, legiões para defender o território ameaçado, governadores, deuses. A vida do império remontava ao Senado, e, mais tarde, a César, onipotente, onisciente, Deus! [7] É por isso que um pensador gnóstico moderno, Philip Dick, considera que o Império nunca acabou. [8]

“Dalila:/ Eu nunca fui Sansão/ Nem Rambo, tele-catch, bobão/ A minha pátria é a vida!/ Dalila:/ Você me dá um trabalho/ Não sou Hércules, nem nada/ Facilite a parada!/ Nem Sansão, nem Dalila/ Apenas dúvidas, feridas/ Você me corta, trai e atrai/ Mas é a vida, querida”. [Cazuza/ Arnaldo Brandão/ Torquato Mendonça].

E, se a coisa segue nessa marcha, ainda segundo Kropotkin, talvez o Império nunca acabe, pois a história é uma evolução ininterrupta. Às vezes, a evolução tem se detido para depois recomeçar. O mundo antigo, as costas do Mediterrâneo, a Europa central, alternadamente, foram teatro da ação progressiva da história. Mas, cada vez que esta evolução recomeça, iniciando uma nova fase para passar depois à comuna rural e, em seguida, à comuna da cidade, acaba por morrer na fase-Estado. [9]

Por isso, a pergunta: se escolhermos voltar à comuna, esta não terminará se degradando em Estado, como aconteceu no mundo antigo e na Europa? Uma volta no parafuso resolve o problema ou o desafio é definir na condição humana que fator é responsável por essa degradação da comuna em Estado? Talvez a leitura gnóstica, ao dizer nem Sansão, nem Dalila, esteja a nos dar uma pista, talvez aí se encontre o antídoto contra a submissão e o poder.

“Cante o seu canto de Iemanjá matreira/ Que eu quero ser que nem marinheiro é/ Amarrado na sereia, não vou ser o primeiro/ Minha Mata Hari, me mata (sem pena, mas vale)”. [Nem Sansão, nem Dalila, Cazuza/ Arnaldo Brandão/ Torquato Mendonça].

4/12/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Referências:
[1] Piotr Kropotkin, O Estado e seu papel histórico, São Paulo, Ed. Imaginário, 2000, pp. 57-58.
[2] Denis de Rougemont, O Amor e o Ocidente, São Paulo, Ediouro, 2003.
[3] C. G. Jung, Psicologia e Alquimia e Aion, Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Petrópolis, Editora Vozes, 1991.
[4] Kropotkin, op. cit., p. 58. E também Elaine Pagels, Os Evangelhos Gnósticos, São Paulo, Ed. Cultrix, 1979.
[5] Mikhail Bakunin, Deus e o Estado, São Paulo, Ed. Imaginário, 2000, pp. 15-17.
[6] Kropotkin, op. cit., pp. 24-25.
[7] Kropotkin, op. cit., pp. 10-11.
[8] Philip K. Dick, O Mistério de Valis, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 1993.
[9] Kropotkin, op. cit., p. 92.

Jorge Pinheiro é cientista da religião e teólogo. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Pastor adjunto na Igreja Batista em Perdizes (SP). Nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, foi dirigente estudantil secundarista e universitário. Ligou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de inspiração brizolista. Exilou-se no Chile, onde foi preso após a queda do governo de Salvador Allende. Ligou-se às correntes trotskistas internacionais, viveu em Portugal e, clandestinamente, no Brasil, sob a ditadura. Foi processado pelo regime militar e, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Exerceu o jornalismo na revista Manchete e no jornal Folha de S. Paulo, e foi um dos editores do jornal alternativo Versus, em sua última etapa, em São Paulo.

E-mail: jorgepinheiro.sanctus@gmail.com

Blog: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com/

Um comentário:

  1. esse jorge pinheiro fez coisas demais para
    apenas uma vida. Não fez psicanálise depois disso
    tudo? Um abraço, Yêda Fajardo

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