terça-feira, 22 de maio de 2012

DDD - Diário de um Deus em eterna Depressão

“Um sonho. Eu era um Deus faminto, roto, sujo e descalço, perambulando errático, como um cadáver sonâmbulo, pelas ruelas de uma cidadezinha do interior. Era um povoado tedioso, sem correio ou telégrafo, isolado, esquecido, à margem da civilização. Eu estava a procura desesperada de um homem colorido (pois eu era um Deus em preto e branco; pior: eu era apenas o meu negativo, a minha cópia! E desejava ardentemente ser apenas o meu original!). Mas eu queria um Homem, apenas um, o Escolhido, o Dileto, o Homem em várias cores, o Homem arco-íris. Havia sob uns escombros, soterrado, semimorto, um Filho, um verdadeiro e legítimo Filho. Mas eu não queria um Filho! Tampouco moribundo (ou inclusive moribundo). Queria o Homem! Caminhava trôpego, lentamente, e via o mundo - o meu mundo! - também em preto e branco e meio fora de foco, como se algum fotógrafo amador ainda não soubesse manejar a sua máquina . E eu era o fotógrafo! E eu também era o mundo! Mas também era o filme fotográfico! Pois não havia alternâncias: assumia-me e assumia todo o resto ao mesmo tempo, pois eu era ubíquo – sou ubíquo! - só que tudo era incolor, um pouco embaçado e com cheiro de bolor. Era um mundo também com muita fome (estranho: ninguém tinha sede; as tigelas, cheias de água, uma água esverdeada, colocadas ao longo do sonho, estavam intocadas) e sem móveis ou mobília - havia apenas um velho e empoeirado lustre de zinco: todos sentavam no chão de cócoras, comiam seus parcos sanduíches (creio que de mortadela) no chão - e era um chão amarelado e tosco - sem talheres ou pratos, todos no chão de barro, cuspindo e tossindo e cochichando besteiras e falando mal uns dos outros. Às vezes alguém ria amarelo, dentes cariadUm terceiro coçava-se. Outro ainda dançava, descalço - era uma dança tribal e gutural, primitiva – mas sem música. (Uma dama, de verde, seus 28 anos, jazia no canto, desnuda, envergonhada e desolada...; um ‘príncipe’ cor de bege olhava-a, curioso e interessado: queria-a como mulher; e eles eram envolvidos por uma bruma pegajosa) E havia um curioso musgo em preto e branco sobre tudo e todos (esse musgo, que parecia ter vida, ascendia às paredes, aos tetos, e era pegajoso, fétido). Ao penetrar nesse estranho mundo, alguém comunicara-me, solenemente, que eu seria o primeiro homem a conhecê-lo. Mas se nem humano sou! E se estou a procura desesperada de um Homem, onde encontrar - questiono - o meu Eleito? Reivindico, então, com uma pompa e majestade meio forçada e artificial, a minha condição divina - eu sou Deus! - ao que sou vaiado implacavelmente, sobrevindo-me daí um inexplicável e estranho prazer masoquista. os e em seguida escondia os olhos com as mãos, envergonhado. Outro grunhia. Havia um gigantesco espelho naquele reino, fora o saldo de antigas rixas tribais, quando disputavam e duelavam a supremacia do belo, do digno, do leve, do sustentável (e às vezes até do surreal, sussurra-me uma voz desconhecida - e delicada, meiga, um pouco débil - de alguém que possui, interessante, narinas imensas) e todos ali eram convocados diariamente a uma quilométrica fila - era uma fila em ziguezague - para fita-lo, encara-lo, ‘adora-lo’. Seria como um ritual, uma norma rígida instituída, tudo já estabelecido, combinado: ao acordar todos deveriam dirigir-se ao espelho mágico (mas era real, de fato, ele existia, ocupava espaço). Instaram-me a comparecer ante o espelho. Diziam-me, através de gestos e acenos nervosos - pois todos ali, soube depois, eram mudos “Vá!”. Fui. Vi-me, observei-me, estudei-me, o k., tudo bem, eu era um Deus, e daí? Frente ao espelho misterioso havia também um trono desocupado, velho, imundo e enferrujado, com o assento ocupado por traças, e havia raízes que subiam desde o chão (e nesta sala do espelho, tudo estava escuro - lembro - mas era uma escuridão alegre, satisfeita consigo mesma; eram trevas maravilhosas, era uma negritude bela e contente, um escuro realizado e feliz. É, eram trevas felizes) eu então vi apenas a imagem de um Deus triste e solitário, um Deus melancólico, com alguns breves e fugazes lampejos de um humor cáustico e corrosivo. Eu, enfim. Vi-me depois sob um sol intenso e maravilhoso, mas, engraçado, eu não tinha sombra nem imagem, meu corpo não servia de obstáculo ou anteparo a luz, eu era estranhamente transparente como um vidro, e via, frente a mim, vários seres curiosos de sobretudo azul e chapéu coco - mas sem bengalas - todos com suas respectivas sombras enfileiradas por ordem alfabética e dispostas em círculo ao redor de mim. (reproduzido, a pedidos, trechos de um futuro livro)

Nenhum comentário:

Postar um comentário