sábado, 12 de maio de 2012

Poesia

Notícia da manhã Eu sei que todos a viram e jamais a esquecerão. Mas é possível que alguém, denso de noite, estivesse profundamente dormindo. E aos dormidos - e também aos que estavam muito longe e não puderam chegar, aos que estavam perto e perto permaneceram sem vê-la; aos moribundos nos catres, e aos cegos de coração - a todos que não a viram contarei desta manhã - manhã é céu derramado é cristal de claridão - que reinou, de leste a oeste, de morro a mar - na cidade. Pois dentro desta manhã vou caminhando. E me vou tão feliz como a criança que me leva pela mão. Não tenho nem faço rumo: vou no rumo da manhã, levado pelo menino (ele conhece caminhos e mundos melhor do que eu). Amorosa e transparente, esta é a sagrada manhã que o céu inteiro derrama sobre os campos, sobre as casas, sobre os homens, sobre o mar. Sua doce claridade já se espalhou mansamente por sobre todas as dores. Já lavou a cidade. Agora, vai lavando corações (não o do menino; o meu, que é cheio de escuridões). Por verdadeira, a manhã vai chamando outras manhãs sempre radiosas que existem (e às vezes tarde despontam ou não despontam jamais) dentro dos homens, das coisas: na roupa estendida a corda, nos navios chegando, na torre das igrejas, nos pregões dos peixeiros, na serra circular dos operários, nos olhos da moça que passa, tão bonitos! A manhã está no chão, está nas palmeiras, está no quintal dos subúrbios, está nas avenidas centrais, está nos terraços dos arranha-ceús. Há muita, muita manhã no menino; e um pouco em mim.) A beleza mensageira desta radiosa manhã não se resguardou no céu nem ficou apenas no espaço, feita de sol e de vento, sobrepairando a cidade. Não: a manhã se deu ao povo. A manhã é geral. As árvores da rua, a réstia do mar, as janelas abertas, o pão esquecido no degrau, as mulheres voltando da feira, os vestidos coloridos, o casal de velhos rindo na calçada, o homem que passa com cara de sono, a provisão de hortaliças, o negro na bicicleta. o barulho do bonde, os passarinhos namorando - ah! pois todas essas coisas que minha ternura encontra num pedacinho de rua dão eterno testemunho da amada manhã que avança e de passagem derrama aqui uma alegria, ali entrega uma frase (como o dia está bonito!) à mulher que abre a janela, além deixa uma esperança, mais além uma coragem, e além, aqui e ali pelo campo e pela serra, aos mendigos e aos sovinas, aos marinheiros, aos tímidos, aos desgarrados, aos prósperos, aos solitários, aos mansos, às velhas virgens, às puras e às doidivanas também, a manhã vai derramando, uma alegria de viver, vai derramando um perdão, vai derramando uma vontade de cantar. E de repente a manhã - manhã é céu derramado, é claridão, claridão - foi transformando a cidade numa praça imensa praça, e dentro da praça o povo o povo inteiro cantando, dentro do povo o menino me levando pela mão. Thiago de Mello (1921) (Poemblog)

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