quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Millôr, o genio de direita

O gato e a barata A baratinha velha subiu pelo pé do copo quase cheio de vinho, que tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância, que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, no alto do copo. - Gatinho, meu gatinho – pediu ela –, me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva. - Você deixa mesmo eu engolir você? – disse o gato. - Me saaalva! – implorou a baratinha. – Eu prometo. O gato virou o copo com uma patada, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada. - Que é isso? – perguntou o gato. – Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixava eu comer você inteira. - Ah, ah, ah! – ria então a barata, sem poder se conter. – E você é tão imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada? Moral: Às vezes a auto depreciação nos livra do pelotão. *********************** Cão! Cão! Cão! Abriu a porta e viu o amigo que há tanto não via. Estranhou apenas que ele, amigo, viesse acompanhado de um cão. O cão não muito grande mas bastante forte, de raça indefinida, saltitante e com um ar alegremente agressivo. Abriu a porta e cumprimentou o amigo, com toda efusão. "Quanto tempo!". O cão aproveitou as saudações, se embarafustou casa adentro e logo o barulho na cozinha demonstrava que ele tinha quebrado alguma coisa. O dono da casa encompridou um pouco as orelhas, o amigo visitante fez um ar de que a coisa não era com ele. "Ora, veja você, a última vez que nos vimos foi..." "Não, foi depois, na..." "E você, casou também?" O cão passou pela sala, o tempo passou pela conversa, o cão entrou pelo quarto e novo barulho de coisa quebrada. Houve um sorriso amarelo por parte do dono da casa, mas perfeita indiferença por parte do visitante. "Quem morreu definitivamente foi o tio... você se lembra dele?" "Lembro, ora, era o que mais... não?" O cão saltou sobre um móvel, derrubou o abajur, logo trepou com as patas sujas no sofá (o tempo passando) e deixou lá as marcas digitais de sua animalidade. Os dois amigos, tensos, agora preferiam não tomar conhecimento do dogue. E, por fim, o visitante se foi. Se despediu, efusivo como chegara, e se foi. Se foi. Mas ainda ia indo, quando o dono da casa perguntou: "Não vai levar o seu cão?" "Cão? Cão? Cão? Ah, não! Não é meu, não. Quando eu entrei, ele entrou naturalmente comigo e eu pensei que fosse seu. Não é seu, não?" Moral: Quando notamos certos defeitos nos amigos, devemos sempre ter uma conversa esclarecedora. **************** A sopa de pedras Quando terminou a guerra dos farrapos de Canudos, uma guerra dessas aí!, Serapião Pintumba perambulou por muito tempo no sertão. Á proporção que perambulava, penetrava, e, penetrando, sua miséria aumentava – pois o interior fazia as cidades empobrecerem com ele. Até que um dia chegou a uma aldeia de casas de taipa, distante de tudo, isto é, próxima de nada. Serapião bateu numa porta e pediu um pedaço de pão. Foi escorraçado. Bateu noutra porta, pediu um pedaço de queijo de cabra. Foi chutado. Bateu em outra porta e pediu um pedaço de rapadura. Foi cuspido. Bateu em outra porta e pediu uma lata velha. Foi atendido. Aí, Serapião se acocorou no meio da praça, fez uma trempe, botou a lata em cima e ficou esperando o destino. O destino, como sempre, juntou uns curiosos: “Que qui tu ta fazendo aí, Serapião Maluco?” perguntaram. “Uma sopa”, disse Serapião. “Tô veno nada”, criticou um velho crítico de sopas local. “Tão marranja água que cê vai vê”, disse Serapião. Arranjaram água pro Serapião, e fogo, e ele, assim que a água pegou uma fervura, jogou duas pedras dentro da lata e ficou lá mexe que mexe com um pau. “Que sopa é essa?”, veio a próxima pergunta. “Sopa de pedra”, disse Serapião. “De peeeeeedra?”, espantaram-se os habitantes da aldeia, em uníssono. “E pode sopa de pedra? Nóis num cômi sopa aqui tem mais di méis. Si dava para fazê sopa di pedra, a gente toda tava toda limentada.” Um demagogo presente aproveitou a dúvida no ar e vociferou: “É como os eternos leguleios, eternos prometedores de miragens, embaindo o povo do sertão com falácias infantis, acenando para o povo com soluções miríficas enquanto palacianos governosos se locupletam com suas gordas mordomias. Mas mesmo esses profissionais do engodo jamais pensaram em proposta de solução alimentar tão estapafúrdia!” Tomou ar e perguntou noutro tom: “Que é que você pretende exprimir, dialeticamente, com sopa de pedra?” “Bem”, respondeu Serapião, um tanto intimidado, a sopa pode sê só di pedra, né?, e inté qui sai boa. Mas se ocês mi arranja um picadinho de tocinho, um pezinho di cove, um naquinho di rapadura, aí dava muito in mió, né memo?” “Qué qui há, Maneco, sem essa!”, disse então um pau-de-arara que tinha trabalhado em Ipanema durante seis meses, pendurado num edifício da Vieira Souto, e por isso era considerado o grã-fino da aldeia. “Sopa de pedra é sopa de pedra! Não vem com subsídios que aqui não tem disso não. Você falou em sopa de pedra; vai ser sopa de pedra! Pessoal, todo mundo fazendo sopa de pedra aí na praça!” Em poucos minutos, a praça estava cheia de panelas, caldeirões, chaleiras, terrinas e latas fervendo com pedras. E cada um já procurava fazer sua sopa melhor que a do vizinho, com um sabor diferente: rocha, granito, sílex, calcário, pedra-pomes, basalto, pedra-sabão, pedra-ume, pedregulho. Mas terminou tudo numa grande decepção. Nenhuma das sopas de pedra tinha o menor gosto de sopa. Pior ainda – não tinha nem gosto de pedra. Foi aí que um caboclo mais imaginoso descobriu a única utilidade da pedra capaz de, naquele momento, satisfazer a todos os habitantes da aldeia. Tacou um paralelepípedo na cabeça de Serapião, que caiu ali mesmo e logo foi apedrejado por todo mundo, morrendo dilapidado. Como na Bíblia. Moral: Não se deve abusar da miséria do povo; ele acaba ficando empedernido. (Saite do Millôr)

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