quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Surrealismo

Surrealismo místico . Por Jorge Pinheiro Em Paris, um debate sobre a obra de Paul Tillich Paris – Paul Tillich, colega de viagem, em Teologia da Cultura, diz que a consciência imediata do incondicionado não tem caráter de fé, mas é auto-evidente. E que a fé contém certo elemento contingente e exige risco: combina a certeza ontológica com a incerteza a respeito de todas as coisas condicionadas e concretas. Chamo esse fato de surrealismo místico. Vou ilustrar. Tomei o voo TAM 8098 para Paris. Saí de São Paulo no dia 12 de maio (2009), às 19h45, com a alegria normal de um mortal que pretende estar de corpo presente no XVIIIe Colloque de l’Association Paul Tillich d’expression française. Acho que você também, leitor, estaria alegre. No mínimo porque o seu editor pagou os direitos autorais devidos e você não teve que enfiar a mão no bolso. Nada mais justo que, à hora do jantar, diante da pergunta da aeromoça – o que o senhor deseja tomar? –, você dissesse: um tinto, por favor. E lá vem, para acompanhar a massa do avião, o vinho. Tudo corre como planejado, quando, de repente, na poltrona da frente, um senhor pesado na sua obesidade reclina-se repentinamente. E o vinho todo é derramado no meu colo. Escorre por entre as pernas e se deposita ao fundo, me encharcando por completo. Mas, como se não bastasse, parte dele é derramado exatamente sobre o volume de Teologia da Cultura, em português, que acabou de ser lançado e que estou levando de presente para a associação tillichiana francesa. O que você faria, além de chamar a aeromoça, como a criança que grita pela mãe diante de desastre semelhante? Como você se sentiria, além do desespero irado por saber que vai atravessar a noite com a calça e, em especial, os fundilhos molhados? Sem falar no cheiro do vinho impregnando o corpo e o friozinho desagradável produzido pela combinação líquido derramado e ar condicionado meio para o gelado. A noite foi ruim. Habitada por pesadelos e uma ideia a martelar: cuidado com o vinho. Ah! meu Senhor, então, é isso? Ter cuidado com o vinho? Mas o que significa ter cuidado com o vinho? Segurar bem o copo para que não derrame, ou não bebê-lo? E o que significa não bebê-lo? É não bebê-lo muito, só um pouquinho ou nada? Puxa, não bebê-lo nada? Tem certeza? Nadinha, mesmo? Mas estou chegando a Paris! Cheguei e me instalei no Au Pacific Hotel, ali na rue Fondary 11, perto da madame Eiffel e do senhor Seine. Recomendo o hotel. Simpático, bom atendimento, muito limpo e preços dignos. Não é merchandising não. É que gosto de dar dicas de viagem. E à tarde, depois do banho tomado e da roupa trocada, fui a Saint Germain de Prés, fazer a ronda turística intelectual nos cafés, nas livrarias, lembrar um pouquinho de Wilde, de Hemingway no Les deux magots e de Sartre e Beauvoir por ali. Essas coisas. Mas eis que ao deambular pelas redondezas, dou de cara com uma loja do Nicolas, que há quase um século tem uma atrativa especialidade: vinhos. E na vitrine vejo garrafas de pequenas colheitas artesanais de várias partes da França. Procuro uma da minha região ou próxima. Fiz parte de minha pesquisa de doutorado no sul da França, na Faculdade Protestante de Teologia de Montpellier, e elegi a cidade como minha casa francesa. E voltando à vitrine, eis que vejo Les petites récoltes, vin de Pays de la Cité de Carcassone. Carcassone é uma cidadezinha medieval, murada. Está no sul da França e é aquele lugar de conto de reis e rainhas, magos e fadas. Torres, muralhas, pontes, ruazinhas. E vinho artesanal, lá perto do meu pedaço francês. O rótulo da garrafa escrito à mão, e o preço tão em conta que eu não conto. Senão algum leitor pode duvidar e eu vou ficar mal na história. Entrei, comprei, saí e me perdi. É isso mesmo, a poucas quadras do hotel, tendo a madame Eiffel como referência visual, me perdi ao tentar voltar a pé. Com le vin de Pays de la Cité de Carcassone numa sacolinha, parece, fiquei dando voltas sem achar o caminho. Três horas dando voltas. Até que me sentindo meio Balaão, um profeta meio louco do testamento hebraico, voltei à conversa que tinha iniciado no avião. É nem um pouquinho, mesmo, não é? Está bem, o Senhor me leva de volta ao hotel, e não pode ser de táxi, porque senão não tem graça. Já estou tri cansado. E eu não vou beber desse cintilante petites récoltes de la Cité de Carcassone. Dito e feito. A cem metros encontrei o metrô. E eu estava, depois de andar tanto, a apenas uma estação de metrô do hotel. Por isso, Tillich diz que o risco da fé não é arbitrariedade: resulta da união do destino com a decisão. Baseia-se num fundamento que não é arriscado: a consciência do elemento incondicional em nós e no mundo. A fé só pode ser justificada e é possível nessa base. Ou, como eu disse no início, isso é surrealismo místico. Ou como nos ensina Troeltsch, o discurso teológico não pode ser apenas o discurso objetivo da fé de uma comunidade cristã. Quando se fala de fé, o teólogo deve estar envolvido, deve se comprometer. E, assim, passei o meu primeiro dia em Paris, nessa temporada francesa, a pão e água. A bem da verdade, baguette e Pérrier. 16/5/2009 Fonte: ViaPolítica/O autor Mais sobre Jorge Pinheiro

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