sábado, 15 de junho de 2013

Pensamentando

Romper com a santa trindade de Israel: assentados, religiosos e ricos
A sociedade israelense foi há muito tempo sequestrada pela santa trindade dos assentados, religiosos e ricos. "O Discurso da servidão voluntária", um tratado de Etienne de la Boétie, do século XVI, é estranhamente relevante para a sociedade israelense. Ele nos ajuda a entender a persistência de formas de tirania que pode ser explicada apenas por um profundo e inconsciente hábito de obediência. Por Eva Illouz.

Eva Illouz (*) - Haaretz



Etienne de la Boétie nasceu em 1530. A história poderia facilmente ter esquecido dessa mente brilhante, mas ele era o amigo muito amado de Michel de Montaigne, o famoso autor francês dos “Ensaios” e, graças a essa amizade, seu nome sobreviveu.

Em 1548, aos 18 anos, ele escreveu um pequeno livro chamado “Discours de la Servitude Volontaire” – O Discurso da Servidão Voluntária. O texto tinha a aparência de ter sido feito como um exercício escolar, na melhor tradição humanista dos escritos do século XVI. Mas o uso de referências gregas e romanas foi um expediente pouco disfarçado para a sua própria segurança. Ele tinha um propósito muito mais radical: atacar a monarquia e apresentar ideias novas e incendiárias a respeito da natureza da soberania e do poder político.

O rei, François I, tinha decidido aumentar impiedosamente o altamente impopular tributo sobre o sal, conhecido como "gabelle", não apenas aumentando a taxação sobre o consumo do sal, como forçando os cidadãos a adquiri-lo. Por essa época, em que La Boétie escreveu seu famoso ensaio, havia rebeliões contra esse aumento da taxação que eram violentamente reprimidos pelo exército real. Esse testemunho da intratabilidade do crescente poder monárquico provocou desconforto dentre a aristocracia local e a classe burguesa.

Alguns anos mais parte, o ensaio se tornou vastamente conhecido como o livro anti-tiranos, e foi amplamente usado pelos protestantes na sua resistência contra as violentas repressões católicas, especialmente após o massacre de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, no qual católicos massacraram protestantes ao longo de 20 cidades em toda a França.

O livro foi reimpresso várias vezes nos séculos seguintes, curiosamente em épocas de explosões de outras revoltas. Ele chega a nós hoje ainda cintilante, afiado na agudeza de seu pensamento, como uma pedra incandescente brilhando num quarto fechado.

Este pequeno e poderoso ensaio levanta uma questão enganosamente simples: por que as pessoas concordam em servir a tiranos?

“Eu gostaria de entender”, pergunta La Boétie com dissimulada ingenuidade, “como pode tantos homens, vizinhos, cidades, nações, às vezes sofrerem tanto sob o poder de um só tirano, cujo poder é tão grande quanto eles lho concedem; que só tem o poder de fazer-lhes o mal que eles próprios, voluntariamente, concederam-lhe, e que não poderia ser capaz de fazer-lhes qualquer mal se eles, de fato, não preferissem sofrer, a contradizê-lo”. La Boétie nos leva para muito longe da visão posteriormente desenvolvida pela filosofia política de esquerda, pois, como ele diz, foi o povo que “cortou a sua própria garganta quando, tendo uma escolha entre ser homens livres ou vassalos, desertaram de suas liberdades e escolheram o jugo, consentindo com a sua própria miséria ou, antes, aparentemente, aceitando-a”.

Enquanto marxistas, socialistas ou feministas tornariam “o povo” vítima de interesses econômicos ou da vontade de poder, aqui foi o povo diretamente responsabilizado por viverem sob o jugo em que vivem. Não há tirano que dure um dia se o povo não lhe conceder de fato o seu poder.

Por que, então, o povo abdica voluntariamente de sua própria liberdade? La Boétie tinha uma resposta simples: eles perderam a sua capacidade mesma de desejar e de persistir na defesa da liberdade. Podemos, impacientemente, perguntar: por que eles renunciaram ao desejo básico de liberdade? Aqui, mais uma vez, a resposta de La Boétie é formidável e simples: eles renunciaram porque esqueceram dela. La Boétie sugere a ideia bizarra segundo a qual o povo de alguma maneira esquece a própria capacidade de desejar ser livre.

La Boétie não tinha ouvido falar de economia comportamental – o estudo da construção de vieses cognitivos que tornam difíceis para as pessoas pensar acuradamente e planejar o seu bem estar – e então entendeu, como muitos outros pensadores políticos clássicos, que o amor pela liberdade vem a nós por instinto. Mas o que era novo aqui era a sua sugestão de que esse instinto poderia ser chocantemente desaprendido. Como um instinto pode ser esquecido? Porque uma mecânica até mais poderosa da mente entra em jogo: o hábito. Aristóteles – e depois dele muitos teóricos da educação – já tinha enfatizado o papel do hábito na formação do caráter.

La Boétie tomou essa teoria e lhe concedeu um surpreendente viés: ele a aplicou ao corpo coletivo – o povo – e a usou para explicar, não a virtude ou o pecado, mas antes um fato político, a persistência da tirania. Para ele, disposições políticas eram o resultado do modo como as instituições políticas moldavam o caráter habitualmente – quer dizer, compelindo o povo a se comportar repetidamente. Foi Alexis de Tocqueville que mais tarde chamaria de “hábitos decorados” o conjunto de disposições com as quais as pessoas se relacionam a suas instituições políticas.

Para La Boétie, o hábito que tinha o poder de fazer as pessoas esquecerem da liberdade era a “obediência”. O que era (e talvez ainda seja) radical a respeito dessa teoria é que ela não supõe que a tirania necessite do exercício da força e da violência. A obediência é aprendida na rotina comum, a qual não é em si mesma política: através do trabalho duro nos campos, por meio da presença diária do suserano perambulando ao seu redor, por meio da exaustão do próprio corpo no exército do rei, com a internalização de doses diárias de medo. É através desses hábitos do corpo e da mente que o instinto por liberdade se torna reprimido. Assim que o corpo esquece a liberdade, a mente não pode mais persistir nela. As pessoas começam a pensar que o seu desejo pela verdadeira liberdade não é razoável, que o seu destino não pode melhorar, que o seu país na sua atual forma é a única coisa razoável que se pode esperar, que esperar mais é coisa de idealistas incuráveis.

A obediência se alimenta de desculpas: “Os homens vão crescer acostumados à ideia de que sempre houve sujeição, de que seus pais viveram da mesma maneira; pensarão que são obrigados a sofrer deste mal e vão persuadir a si mesmos pelo exemplo e pela imitação, finalmente atribuindo a esses que mandam neles direitos de propriedade, baseados na ideia de sempre foi assim”. Em alguns casos extremos e perversos, o povo que vive escravizado eventualmente pensa até que o seu regime político e o seu povo são os melhores do mundo.

La Boétie formulou um dos mais duradouros problemas da filosofia política: por que o povo consente com regimes políticos que o faz viver num estado de sujeição, que lhes denega o direito à liberdade? O que faz o povo aceitar passivamente uma autoridade que os priva do direito a uma vida boa e segura?

La Boétie fornece à política emancipatória ou progressista um programa diferente daquele que conhecemos: o objetivo aqui não é atacar as estruturas políticas, sistemas ou regimes, mas virar a atenção para a direção oposta: o cidadão. Se, assim como La Boétie, entendemos que nenhum regime pode durar sem a cooperação e o acordo dos cidadãos, então o propósito das ações políticas se torna descobrir por que cidadãos são cegos à sua própria condição. Esta não é uma política da ação, per se, mas uma política que
visa
a mudar o núcleo mesmo da vontade e do desejo do cidadão.

Curiosamente, as questões levantadas por La Boétie sobre a natureza da tirania se tornaram mais, e não menos, relevantes, com a ascensão das democracias de massa. Isso se dá porque as democracias sabem como escamotear suas tiranias incomparavelmente melhor do que outros regimes – elas podem ser tiranias da riqueza, da etnia ou da dominação de gênero de um grupo sobre outros, ou poderá ser uma tirania exercida por ideologias nacionalistas. Tocqueville, por exemplo – que não tinha muita paciência com as ideias iluministas – reconhecia precisamente o perigo dos regimes democráticos, que poderiam esconder melhor formas variadas de tirania. Se os cidadãos puderem ser manipulados, isso com efeito anularia a ideia mesma de “consenso” pressuposta na democracia. A ideia de democracia faz sentido apenas se admitimos que o consenso dos cidadãos está baseado tanto num verdadeiro entendimento de seus interesses (tanto privados como coletivos) e na sua capacidade de serem agentes morais.

Este tratado do século XVI de que poucos israelenses ouviram falar é estranhamente relevante para a sociedade israelense. Ele nos ajuda a entender a persistência de formas de tirania que pode ser explicada apenas por um profundo e inconsciente hábito de obediência.

Eis aqui três exemplos óbvios:

1. A muito longa tirania exercida pelos ultra-ortodoxos na sociedade israelense, sociologicamente similar à exercida nas antigas sociedades de castas. Assim como nestas sociedades, um grupo social é materialmente sustentado por outros grupos sociais (seculares, reformistas, conservadores, judeus ortodoxos modernos, árabes), com base não em seu próprio mérito ou necessidade, mas apenas em suas práticas religiosas. Assim como nas sociedades de castas, o grupo privilegiado vê os não membros como menos puros do que eles. Os não membros são, a um só tempo, instrumentos para obter privilégios materiais e fontes de poluição e perigo.

No entanto, há uma grande diferença em relação aos tradicionais sistemas de castas: os ultra-ortodoxos estão representados no Knesset [o parlamento israelense], moldando o destino da política “impura” de segurança, dos assuntos de economia e orçamento, legislação, direitos humanos, políticas de imigração e por aí vai. O verdadeiro enigma é que esse sistema, sem equivalente ou paralelo no mundo, tem durado por tanto tempo e tem sido discutido apenas em convencionais e frequentemente impotentes partidos políticos, sem sequer gerar protestos significativos nas ruas e uma oposição de massa.

2. Considere isto: a anexação de fato dos territórios ocupados transformou radicalmente a natureza do nacionalismo israelense. Agora é um obstinado, indisfarçado e entusiasmado colonialismo, cercando e sufocando os palestinos, gerando políticas de dominação brutais (vejam o filme “5 Broken Cameras”), e aumentando o isolamento dos israelenses da diáspora judia.

O movimento dos assentados, interpretando corretamente a sua própria história, desenvolveu uma filosofia política radical, na qual a violência e a dominação se justificam e se tornam operações banais e ordinárias de estado.

Mas o enigma não é esse; está, antes, em muitos israelenses que têm consciência moral e se preocupam com a democracia. Por que esses israelenses deixaram a democracia escapar de suas mãos? A democracia e uma rede de proteção social básica – dentro das fronteiras da linha verde, de 1967 – foram sequestradas sob os nossos olhos meio-cooperativos e meio-incrédulos. Donde minha questão: como podemos explicar que todos esses milhares, talvez milhões, que se preocupam que Israel permaneça um estado liberal não se engajarem num movimento de massa para protestar e recusar a banalização da brutalidade e o racismo?

3. Agora considere isto. O cidadão israelense (do secular ao tradicionalista) serve num dos mais exigentes exércitos do mundo, e cumpre em média 24 dias de deveres de reservista por ano, regularmente interferindo na sua rotina, no seu trabalho, na sua família e nos salários, para servir ao exército.

Esse mesmo cidadão paga impostos muito elevados, frequentemente trabalha em dois empregos e enfrenta hospitais lotados, preços de imóveis nas alturas, um horário escolar muito curto, o declínio do desempenho escolar, a negligência com parques e vias públicas, atividades culturais muito caras, livrarias públicas pobres ou não existentes. Esse cidadão comum não quer mais continuar a carregar nas costas as escolhas dos ultra-ortodoxos, o estilo de vida de luxúria dos assentamentos, as políticas tributárias que ajudam os ricos a ficarem mais ricos. Assim, esses cidadãos fizeram o que cidadãos ao redor do mundo fazem – em 2011, começaram um movimento de protesto político.

No começo, o protesto parecia equivalente às ondas de protesto que tinha tomado a Europa e os EUA, desde 2008. Outros países experimentaram desordem e caos por muito menos, quando tiveram uma crise financeira diante de si. O movimento Occupy, os Indignados da Espanha, os protestos na Grécia, as manifestações massivas na Itália, foram todos movimentos políticos que duraram anos. Eles levaram a confrontos violentos entre a população e a polícia e a crises políticas sérias, com governos que renunciaram ou foram substituídos. Mas os israelenses, o cidadão comum mais comum do mundo desenvolvido, protestou num estilo amigável: primeiro, recusando a definição do protesto em termos políticos (o equivalente a nadar sem se molhar); depois, insistindo na solidariedade nacional.

Esse foi, eu penso, um momento de verdade histórica: cidadãos israelenses revelaram um elemento fundamental de sua psique política: o poderoso campo magnético da “solidariedade coletiva” neutralizou as forças centrífugas do protesto. Cidadãos israelenses podem ser difíceis no trânsito, mas são os mais legais quando se trata de manifestações de massa nas ruas. Entre a solidariedade e o protesto, os israelenses escolheram a primeira.

Donde minha questão: por que a “solidariedade nacional” sobrepujou o protesto político? Por que os cidadãos israelenses não se comportam como outros cidadãos – quer dizer, enxergam seus interesses como separados daqueles do estado? Somente um povo acostumado a um excepcional grau de obediência pode sustentar essas variadas formas de tirania com um entendimento tão complacente. Como La Boétie afirma, há uma “obstinada” vontade de se submeter. Quer dizer, há não apenas a vontade de se submeter, mas um prazer em submeter-se.

Se é assim, então é de se perguntar: onde os israelenses aprenderam hábitos tão penetrantes e profundos de obediência, tornando-os, de fato, politicamente dóceis, relutantes em se engajar num protesto político genuíno? “Desespero” não pode ser a resposta, pois há certamente populações em situações muito piores do que a nossa que encontraram recursos políticos para rejeitar seu destino. Deixem-me oferecer alguns pensamentos, ainda tentados, na medida em que meu objetivo aqui é gerar discussão.

De acordo com o grande sociólogo Max Weber, o exército historicamente tem sido a fonte mais significativa do aprendizado da disciplina – por causa da rotina de obediências e dos comandos de ordens. As exigências do exército sobre o próprio corpo e vida do homem é uma razão para fortalecer o seu instinto de autoproteção, criando uma estrutura mental para assegurar que ele seguirá ordens de maneira inquestionável, ao responder rapidamente ao chamado do autosacrifício. Exércitos, assim, são poderosos sistemas de treinamento do povo para tornar rotineira a disciplina requerida para enfrentar o perigo. (Um “herói” é em regra alguém bem treinado desta maneira.)

Em Israel, o exército está sob escrutínio quando comete erros, quando uma bala atinge a pessoa errada, quando soldados se comportam de maneira vergonhosa com populações locais, quando oficiais brutalizam seus soldados, ou quando a força excessiva é exercida. Mas isso distrai nossa atenção para o efeito mais significativo do exército, que se verifica em suas operações ordinárias, corriqueiras, normativas. O exército é uma fonte massiva para o disciplinamento do self, em toda parte. Mas em Israel esse efeito é consideravelmente amplificado, por muitas razões: por causa da conscrição universal, do serviço militar extremamente duradouro (dois ou três anos, frequentemente mais), porque afeta a ambos os gêneros, porque tem estado, de modo tão acachapante, presente na vida israelense pelos últimos 60 anos e porque o serviço militar continua após o período inicial, e pode durar até a metade dos quarenta anos, com obrigações de reservistas.

2. Considerem agora estas histórias, contadas por vários jovens, recém saídos do colégio, treinados durante o período conhecido como tironut, ou treinamento básico (foram conversas coletadas informalmente, com jovens que tinham acabado de prestar o serviço militar).

Yoav: [No tironut] eles gritam com você o tempo todo; você só pode falar se for para receber alguma ordem, não há uma conversa normal, aqui”.

Yinon: “No tironut, você tem de dizer, constantemente “sim, meu comandante” [ken, hamefaked], esta é a primeira coisa que você aprende – a sempre dizer isso”. O soldado deve aprender a introjetar os comandos de obediência em suas vestimentas, postura corporal, modo de falar e sobretudo na sua capacidade de obedecer ordens instantaneamente.

Ori: “Havia um exercício comum durante o tironut, no qual o comandante dava missões impossíveis, por exemplo, ir do ponto A ao ponto B e então voltar ao A em dois minutos, quando a maneira mais rápida de fazer isso leva dois minutos e meio ou mais. Depois de você não conseguir fazer isso, ele lhe pune, mandando-o na maior parte das vezes fazer isso repetidamente”.

Nesse exercício de rotina é óbvio para os comandantes que não se pode cumprir a tarefa; isso também se torna rapidamente óbvio para os próprios soldados. O ponto da ordem é então, precisamente, dar uma ordem arbitrária, irracional e incompreensível, para checar a capacidade do soldado de seguir uma ordem absurda. Quando uma ordem que não respeita um pressuposto básico de racionalidade e razoabilidade é ainda assim seguida, isso significa que a autoridade da pessoa que a emite foi firmemente estabelecida e pode, portanto, gerar obediência genuína.

Daniel, outro jovem, acabou de se alistar nos exercícios do tironut: “Um dos exercícios que achei mais bizarros é o que nos ordena a não olhar o comandante nos olhos quando falamos com ele. Você tem de olhar diretamente para a frente; eu não posso entender a que propósito isso pode servir”. E Sigal, uma jovem, diz: “O comandante nos mandou limpar os quartos em três minutos; três minutos para limpar um quarto tão grande é impossível. Quando terminamos, tivemos de fazer de novo, porque não conseguimos terminar a tempo; eu não consigo entender por que eles nos obrigam a fazer coisas assim”.

O exército de Israel é um exército do povo que recruta uma vasta gama de homens e mulheres. Ele instila hábitos penetrantes e poderosos de dar e receber ordens. Em termos sociológicos, o exército instila um habitus (hábito, em latim) muito distinto, que condensa diferentes hábitos: aceitar ordens, executar ordens irracionais, aceitar a ideia de que o estado sabe mais, viver num estado mental de permanente perigo e sobrevivência.

A criação desse hábito é feita por meio de poderosas técnicas, bem conhecida dos psicólogos: através do medo da punição e da recompensa. A punição é inerente ao sistema militar. Escute Yoav mais uma vez: “É idiota, mas você sabe, apesar das punições de que somos ameaçados serem ridículas, elas funcionam. Eles nos punem ameaçando-nos de ir para casa uma hora mais tarde ou não nos deixando ir para casa mais ou nos privando de nossos intervalos. Mas mesmo não sendo grande coisa, todo mundo tem medo disso. Eu não sei por que ou como, mas todos nós temos medo dessa punição”.

A punição é uma técnica altamente eficiente de fortalecer o aprendizado da disciplina. Mas em contraste com muitos exércitos do mundo, que não são apenas punitivos, o exército israelense também oferece fortes recompensas e por meio delas domestica o soldado de maneira muito mais poderosa. A recompensa é a participação emocional na solidariedade horizontal e vertical: a solidariedade horizontal ocorre entre diferentes grupos socioeconômicos, ao passo que a vertical – a mais forte – conecta tanto os soldados como os comandantes à história e ao destino do povo judeu e à nação israelense.

Através da solidariedade vertical os soldados chegam a sentir que os comandantes e eles mesmos têm os mesmos objetivos e interesses, e que de fato constituem um só grupo – separados apenas temporariamente pela hierarquia. Como diz Yoav, refletindo sobre a experiência do tironut como um todo, “foi divertido com os caras e as garotas”.

Deve-se deixar claro que a obediência produzida não está conectada às opiniões políticas conscientes de cada um. Antes, a obediência ocorre num nível de emoções inconscientes que têm um profundo impacto político: impotência (o sistema não pode ser mudado ou, como Daniel me disse, “você aprende muito rapidamente que é uma pequena peça numa grande engrenagem, que não há nada que possa fazer”); cinismo (Sigal: “O sistema é tão ruim e abusivo que você aprende que é inútil tentar fazer qualquer coisa contra, então você passa a tentar se safar o quanto puder; eu aprendi a trapacear como nunca, antes”). Mas o efeito mais poderoso é simplesmente o hábito automático de aceitar que o “sistema é maior do que si mesmo”, que as coisas não podem ser mudadas, que se deve tentar sobreviver por conta própria e que a autoridade do estado sempre prevalecerá. O hábito é uma resposta automática que nós sequer vemos. Permitam-me reformular: o núcleo da cidadania israelense consiste na obediência ao estado por meio da disciplina aprendida no longo período de serviço militar, através da poderosa combinação de disciplina, punição e recompensa.

Pode-se pensar que estou exagerando uma parte insignificante das vidas dos homens e mulheres: as poucas semanas de tironut, as quais se supõe desaparecem de nossa memória rapidamente. A socialização com o exército começa cedo e penetra todo o sistema educacional. Muito antes de servirem ao exército, meninos e meninas sabem que terão de obedecer a ordens. O exército tem uma presença predominante e autoridade sobre a vida das crianças. Garotos adolescentes tomam frequentemente lições preparatórias para o treinamento militar. Mais ainda, além de serem encapsulados num breve período de serviço militar, têm de lidar com deveres de reservistas, com a rotina de dar e receber ordens. Quando o serviço militar termina, finalmente, é numa idade em que esses hábitos já estão profundamente arraigados e não precisam mais de manutenção. Como o conhecido jornalista e meu amigo Danny Rubinstein gosta de dizer, fazendo piada, “Você sabe sobre o que eu e meus amigos de 70 anos conversamos quando nos encontramos? Tironut!”.

Esse efeito é sociologicamente repercutido por dois fatores: um é que, se por um lado a história dos judeus desenvolveu tradições notáveis de resistência contra tiranos não judeus, por outro, tem pouca tradição histórica de resistência contra instituições judaicas abusivas. Nosso DNA cultural é profundamente voltado para a solidariedade do grupo. O segundo tem a ver com o fato de que as elites que muito provavelmente conduzirão mudanças políticas e sociais também são as que provavelmente se alistarão no exército e se tornarão oficiais, evitando assim um verdadeiro questionamento do estado no interior das próprias elites. As elites são super-identificadas com as necessidades do estado. Essa hiperidentificação é oposta às demandas da cidadania. Por que? Por definição, o exército é um corpo de violência organizada. É por isso que nunca pode fornecer justificação para suas ações.

Só o domínio da política pode explicar e justificar. Verdadeiros soldados, que ainda não foram contaminados pelas normas políticas democráticas, são definidos por sua capacidade de defender seus homens e civis, e de matar quem quer que os ameace. É esta a razão por que as normas democráticas de responsabilização pública, a discussão pública e as justificações racionais têm tão pouco espaço no exército, no qual a hierarquia, a autoridade e a violência, em última análise injustificáveis perante o escrutínio público, devem prevalecer.

Em contraste, nas democracias liberais e democráticas, a cidadania é exercida apenas no espaço que separa o estado da sociedade civil. Um cidadão das democracias liberais deve não apenas ser sobrepujado pela “emergência” ou por sua identificação com o estado, porque ambos neutralizariam a distância necessária ao uso de sua consciência moral, ao confrontar as instituições estatais e a sua capacidade de criticá-las.

Podemos resistir?

Eu não tenho dúvidas de que minhas afirmações enfrentarão descrença, porque esse quadro que tracei questiona um estereótipo familiar – segundo o qual israelenses são desafiadores e até desrespeitadores da lei. Como pode a obediência descrita aqui coexistir com a mentalidade indômita, selvagem e fora da lei, tão penetrante em Israel? Isso ocorre porque tanto a obediência como o desvio da lei são efeitos do fato de que somente o estado tem autoridade real.

Um cidadão que porta a lei dentro de si mesmo – como Immanuel Kant e incontáveis filósofos morais modernos nos ensinaram – é um cidadão que não tem medo de desafiar o estado quando ele deturpa princípios morais fundamentais. Nas democracias liberais, cada cidadão representa, individual e privadamente, uma porção do direito público. Mas em países em que o exército e o estado ocupam um vasto espaço mental na educação e socialização da cidadania, os cidadãos têm muito mais dificuldade de desenvolver padrões morais independentes do estado, e em enxergar o estado como uma entidade que deve obedecer a padrões morais claros. Precisamente porque o mesmo cidadão é esmagado pelo estado, ele ou ela também aprendem a trapacear este estado, fora do radar, quando lhe for conveniente.

Somente cidadãos que não estão mental e socialmente habituados à presença esmagadora do estado querem dar sustentação ao direito e se engajar em ações políticas criativas que podem se opor ao estado, tais como protestos de massa, desobediência civil ou a resistência pacífica. (Os notáveis movimentos de protestos que nascem do coração do exército não foram, no geral, seguidos pelos cidadãos).

Isso não é dizer que estou convocado os cidadãos para deixarem de se alistar no IDF [Forças de Defesa de Israel, nas suas iniciais em inglês]. Para ser honesta, eu não tenho solução prática imediata para os milhares de mísseis do Hezbollah ou do ódio sólido antijudeu que tem se constituído em muitos países árabes. Eu estou chamando os israelenses que se preocupam com a democracia, com valores universais e direitos humanos, a usarem e expandirem sua atrofiada musculatura política. Certamente a esquerda – de centro, moderada ou radical – pode ser mais determinada a defender esses valores do que tem sido, até agora.

Uma lei banindo a crítica ao IDF foi aprovada pelo gabinete do primeiro ministro no dia 6 de maio e centenas de milhares não estão nas ruas? Palestinos estão morrendo, sufocados por políticas desumanas e nós ficamos em casa, grudados às telas de tevê? Onde está a determinação política de centenas de milhares, talvez milhões, que ainda ligam para a democracia e a igualdade? Como é que o radical, quase anarquista espírito dos primeiros sionistas, que reinventaram sua própria história com tanta determinação, não deixou rastro na psique israelense? Isso ocorre porque o ethos e o eros arraigados na sociedade israelense são poderosos hábitos de “pertencimento” e parceria, profundamente inscritos na história da Diáspora.

A sociedade israelense foi há muito tempo sequestrada pela santa trindade dos assentados, religiosos e ricos. Podemos nos opor aos tiranos que liquidaram o espírito democrático de Israel? La Boétie, de 18 anos, dá-nos esperança: “Decida a não servir mais e você estará liberto”. La Boétie provavelmente não tinha intenção de escrever um chamado à resistência, mas seu livro foi mais tarde lido como manifesto pela desobediência civil (Ralph Waldo Emerson e possivelmente Thoreau mergulharam pesadamente no livro para articular suas ideias de desobediência civil). Hoje, também, podemos e devemos dizer: rompam com o consenso e o poder político desmoronará como um castelo de cartas.

(*) Socióloga, escritora e professora na Universidade de Jerusalém.

Tradução: Katarina Peixoto

(Carta Maior)

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