segunda-feira, 16 de abril de 2012

Pensamentando

Morango e chocolate

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Cultura

Naquele tempo, o rio corria para o mar, passarinho voava no céu e gato caçava rato – o que ajudava para criar um ambiente conservador na cidade

13/04/2012



Aldo Gama



Não foi exatamente combinado. As coisas meio que foram acontecendo, se ajeitando, moldadas pelo tempo ou pelo atrito. E assim, de repente, dez anos depois, Carlota e Yolanda estavam juntas.

Naquele tempo, o rio corria para o mar, passarinho voava no céu e gato caçava rato – o que ajudava para criar um ambiente conservador na cidade. E esse aglomerado de gente e cimento vivia em relativa harmonia até o momento em que todos viram Carlota e Yolanda de mãos dadas.

Aqui cabe uma pequena intervenção para esclarecimento. Andar de mãos dadas, em si, não constitui qualquer caso digno de nota. Cabe muito bem nas regras do decoro pai e mãe de mãos dadas, por exemplo. Ou pai e filha, mãe e sobrinho e variações do gênero. Pai e pai de mãos dadas já não cabe, assim como a versão mãe e mãe. Pai e mãe de famílias distintas também não. Filho e filho, até uma determinada idade, é discutível (segundo critérios pessoais, religião e time do coração). Filha e filha até um pouco mais tarde, entrando numa zona igualmente nebulosa.

Carlota e Yolanda contavam então com imprecisos vinte e poucos anos. Novas, de fato, mas velhas também, que essas coisas são mesmo misteriosas. E houve algum comentário pelos cantos, nascidos de inocente observação, maldade ou desejo, sabe lá o que, e logo não havia outro assunto.

“Será que era? Será que não era? Era sim que eu sabia. Desde pequenininha. Sempre desconfiei. Não tinha namorado? Sempre andava de tênis. Nunca vi de vestido. Não ia na missa. Bebia cerveja. Por isso não deu pra mim!”

Família é sempre a última a saber dessas coisas. O menino bate em mendigo, dirige bêbado na contramão e a família nunca sabe por que ele estava sempre estudando pra passar no vestibular (mas não deu e o pai está pagando uma mensalidade absurda). Mas bateu no ouvido da mãe, que represou por alguns dias, mas vazou eventualmente.

- Como assim, Eugênia? – Perguntou o pai da Carlota.

- De mãos dadas, Norberto... – Sussurrou a mãe, como se repetir algo com um menor volume da voz fosse capaz de esclarecer alguma coisa.

E o Norberto, verdade seja dita, era um sujeito bem razoável. Duas amigas de mãos dadas não lhe parecia nada demais. Ou de menos. Que maldade havia?

- De mãos dadas, Norberto... – Insistiu a mãe, abaixando ainda mais o volume da voz.

- O quê? – Perguntou Norberto que não havia conseguido ouvir nada.

- Nossa filha está namorando uma das amigas! – Gritou irritada.

Sempre ponderado, ainda mais escaldado pelos exageros da esposa, Norberto apoiou o cotovelo direito na mesa e o queixo sobre o punho direito. Depois franziu o cenho e apertou os lábios, imprimindo no rosto o ar severo que guardava para esses momentos. E ficou em silêncio esperando ser deixado a sós com a sua severidade.

- Nossa filha! – Berrou Dona Eugênia vertendo lágrimas e lembranças da novela das seis.

- Vou falar com ela. – Respondeu ao se levantar severamente e subir as escadas para longe de Dona Eugênia, pensando seriamente em qualquer outra coisa.

O tempo passou e Norberto nada. Via a filha, dava um beijo, perguntava do dia e nem lembrava mais da história. Mas assunto que começa em esquina sempre dá um jeito de atravessar o quarteirão e, quando dá por si, está na boca do vizinho. Ou do barbeiro, que achava ter intimidade suficiente para comentar o caso, mas não tinha.

Sempre ponderado, Norberto ficou puto da vida, mandou o barbeiro à merda e foi para casa. Lá estava Carlota, na sala, comendo bolacha. Ele beijou a filha, perguntou do dia e sentou a seu lado para comer bolacha.

Dona Eugênia chegou pouco depois. Levou as compras para cozinha e ficou de lá vendo pai e filha comendo bolacha. Ela simplesmente não entendia porque o marido não fazia nada.

- Norberto, - disse chorosa. – Aproveita e fala com a menina...

E ele queria mesmo falar com ela. Queria saber por que a filha tinha essa preferência estranha, desde pequena quando escolhia bolacha recheada de morango. Isso criava um problema porque a desculpa que ele tinha para comprar bolacha era a filha. E se ela preferia morango, como ele ia comprar chocolate?

- Falar o que mãe? – Disse Carlota sem tirar os olhos da tevê.

- Você e a Yolanda... De mãos dadas... Tá todo mundo falando...

Carlota deitou os olhos na mãe com muito carinho. Ela mastigava e pensava no tipo de coisa que se falava e no tipo de coisa que Dona Eugênia ouvia – o que nem sempre é a mesma coisa.

- Pode ficar tranquila que eu não ando mais de mão dada com ninguém. – Disse voltando a olhar a tevê. – A não ser com meu pai.

Dona Eugênia sorriu satisfeita, deu meia volta e ia subindo a escada para seu quarto quando ouviu a filha:

- Mas eu ainda vou continuar trepando com a Yolanda.

A mãe deu de ombros. Se ninguém via não acontecia.
(Brasil de Fato)

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