quarta-feira, 11 de abril de 2012

Ditadura

Meu amigo, o guardião da memória, o tecelão da justiça
Quando alguém dizia a Eduardo Luís Duhalde que era preciso virar a página do passado e olhar para o futuro num clima de conciliação, ele respondia que estava de acordo – desde que antes fosse lido e revelado o que aquela página continha. Não pode haver conciliação enquanto houver injustiça e impunidade, dizia. Sem memória não há verdade, dizia, e sem verdade não há justiça, e sem justiça não há nem dignidade, nem democracia, e muito menos futuro. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno

Eu estava em Cuba, numa Havana ensolarada e de ventania, quando chegou a notícia da morte, lá em Buenos Aires, de meu amigo Eduardo Luís Duhalde.

Ele era advogado. Mas muito mais que isso, foi um eterno militante em defesa dos direitos humanos, da esperança e do futuro. Tinha 72 anos. Às vezes eu achava que tinha muito mais, pela vida vivida, pela experiência acumulada. Às vezes eu achava que tinha muito menos, pela fé no futuro, por uma espécie de esperança que se renovava, por uma espécie de ousadia quase ingênua – e que dava certo, dava resultados.

Nós nos conhecemos no velho café Ramos da avenida Corrientes, naquela sinistra Buenos Aires de maio ou junho de 1976. Ele havia acabado de cair de vez na clandestinidade. Havia contra ele uma ordem de prisão, que naquela ditadura argentina recém-inaugurada (o golpe havia ocorrido em março) significava morte certa: ninguém era formalmente preso, todos eram informalmente mortos. Havia contra ele um decreto desapropriando todos os seus bens, acumulados durante anos de uma vida de advogado de presos políticos, de perseguidos pela miséria humana, de militância sem fim: uma casa perto de onde eu morava, um par de contas bancárias mais magras que aquela gente que ele defendia.

Naqueles dias de turbilhão nos reuníamos numa Buenos Aires clandestina, eu sempre debaixo de uma nuvem de medo, ele sempre debaixo de um céu de confiança. Juntos escapamos de lá, juntos fomos para uma Madri tão idílica quanto traiçoeira – para a Espanha de agosto de 1976, menos de um ano depois da morte de Francisco Franco, generalíssimo, caudilho da Espanha pela graça de Deus. Madri continuava sendo uma cidade franquista, avara, embolorada.

Foi naquela Madri sombria, que nada ou quase nada tem a ver com a de hoje, que ele, em companhia de outros advogados militantes, criou a Comissão Argentina de Direitos Humanos – a CADHU que tanto fustigou a ditadura de seu país, divulgando suas atrocidades em todos os foros e espaços possíveis mundo afora. Foi a pertinácia de Eduardo Luís Duhalde, cruzando a Europa primeiro num Citroën mal ajambrado, depois num velho Volvo vermelho que vendi a ele por 400 dólares, que reuniu na CADHU gente como os escritores Julio Cortázar e David Viñas. Onde quer que houvesse alguém disposto a ouvir o assombroso relato de sequestros, torturas, desaparecimentos e assassinatos cometidos pela ditadura argentina, lá estava ele. E quando não aparecia ninguém disposto, ele corria até achar alguém, um só que fosse.
De um desses encontros surgiu um filme de Carlos Saura – ‘De olhos vendados’ – que marcou época. Qualquer expressão podia ser uma arma de denúncia.

Seu apartamento madrilenho era porto seguro para argentinos de todas as tendências e trajetórias. Nunca, em momento algum, mesmo nas noites mais sombrias daqueles tempo de breu, vi Eduardo Luis Duhalde perder o humor ágil e afiado, deixar-se sucumbir, perder um milímetro que fosse daquela sua fé infinita no dia em que se faria Justiça. E ele foi ferramenta essencial para que esse dia chegasse.

Tudo que a Argentina vive hoje – a vanguarda de um processo de busca da verdade, de resgate da memória e da realização da justiça – se deve à determinação do ex presidente Nestor Kirchner e de sua viúva e sucessora, Cristina Fernandez de Kirchner, é verdade. Mas de pouco teria valido essa determinação se não fosse a obstinada labor de Eduardo Luis Duhalde. Com seu trabalho levou a cabo a difícil tarefa de demonstrar que as leis de anistia eram inconstitucionais, que a impunidade contra crimes de lesa-humanidade ia contra acordos assinados pela Argentina, que as cortes e os tribunais internacionais exigiam o acionar da Justiça contra agentes públicos que implantaram o terrorismo de Estado. Antes, muito antes, lembro de quando começaram a chegar, na Europa, os primeiros relatos de roubo de bebês.

Muita gente boa duvidava que a cruel covardia da ditadura chegasse a esse extremo. Eduardo Luís Duhalde soube desde a primeira hora que aquilo podia muito bem ser verdade – como depois de confirmou.

Foi toda uma vida dedicada à defesa dos perseguidos. Defendeu, durante a ditadura que entre 1966 e 1973 antecedeu a volta da democracia e de Perón à Argentina, militantes dos grupos armados, tanto peronistas quanto marxistas. Teve um sócio que era ao mesmo tempo seu melhor amigo, Rodolfo Ortega Peña, a primeira vítima da Aliança Anticomunista Argentina, a tenebrosa ‘AAA’. Eram dos poucos, pouquíssimos, que se animavam a defender os militantes perseguidos. Ortega Peña pagou essa audácia com a própria vida. Duhalde, com o exílio.

Em 1983, quando a democracia voltou à Argentina, ele voltou junto. Escreveu um livro, ‘O Estado terrorista’, que é hoje um clássico soberano sobre as entranhas das ditaduras em nossos países, abordando um aspecto nem sempre lembrado: a confluência entre a defesa de interesses do grande capital e os horrores dos porões.

Passado o tempo, sua contribuição foi essencial para que os genocidas fossem levados aos tribunais e tantos deles tenham sido julgados e condenados. Como secretário de Direitos Humanos, atuou muitas vezes como advogado do Estado, abrindo processos e levando diante de juízes os que haviam sequestrado, massacrado e assassinato militantes da resistência à ditadura que imperou entre 1976 e 1983. Deu, a todos e a cada um, o que eles haviam negado às suas vítimas: o direito de defesa, de justiça.

Quando alguém dizia a ele que era preciso virar a página do passado e olhar para o futuro num clima de conciliação, ele respondia que estava de acordo – desde que antes fosse lido e revelado o que aquela página continha. Não pode haver conciliação enquanto houver injustiça e impunidade, dizia. Sem memória não há verdade, dizia, e sem verdade não há justiça, e sem justiça não há nem dignidade, nem democracia, e muito menos futuro.

Soube deixar sua marca entre adversários que divergiam de sua ideologia mas prestavam reconhecimento e respeito à sua luta permanente.

Fomos amigos durante 36 anos – a idade de meu filho. Em minha memória estará para sempre, para sempre, sua lembrança. Em meu baú de afetos haverá espaço permanente para a sua figura. Eduardo Luis Duhalde, guardião da memória, tecelão da justiça.

(Carta Maior)

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