segunda-feira, 4 de julho de 2011

Espanha

Indignados na Puerta del Sol

A ‘Spanish Revolution’ começou como mais uma manifestação na praça da Puerta del Sol, em Madri, se transformou num movimento social de protesto que pede, antes de tudo, uma democracia mais participativa.

Por Nazaret Castro, de Madri (Espanha)



Em 15 de maio, a praça mais central de Madri, a Puerta del Sol, se converteu num acampamento em que centenas de pessoas protestaram pela situação política e econômica na Espanha. Uma semana antes das eleições municipais, na simbólica praça, o quilômetro zero da Espanha, começava-se a gestar um movimento de protestos sociais que desembocaria em uma massiva manifestação ao grito de “democracia real já”. Insolitamente, alguns dos manifestantes decidiram montar suas barracas de campanha na praça para mostrar sua indignação; em muitas cidades e povoados da Espanha, imitaram o gesto. Acabaram ficando um mês. Antes, houve protestos na Grécia e na França; quando o povo espanhol saiu às ruas, o fez massivamente, e o chamou ‘Spanish Revolution’. A revolução espanhola não chegou a ser tão revolucionária, mas fez lembrar a milhões de cidadãos que têm direito a sair às ruas para reivindicar um sistema mais democrático e uma sociedade mais justa. E foi assim que o movimento de 15 de Maio, ainda sem saber bem para onde se conduzia, teve eco em todo o mundo e ganhou o apoio de respeitados intelectuais, desde Noam Chomsky até Eduardo Galeano.

Nos dias prévios às eleições, a Puerta del Sol era um fervedouro de jovens, velhos e crianças unidos pelo lema “estes políticos não nos representam”, exigindo dos políticos mais honradez, responsabilidade e transparência, gritando ao mundo que não é tão democrático um sistema onde esse ente abstrato que chamamos “mercado” quem acaba tomando as decisões, a de privatizar os benefícios e a de socializar as perdas. O incipiente movimento dos ‘indignados’ se organizou em comitês e assembleias com seu centro nevrálgico em praças de toda Espanha. Em 27 de maio, quando já parecia próxima a hora de ir-se e trasladar o movimento às assembleias de bairros, a polícia catalã, os ‘Mossos d’Esquadra’, entrou na Plaza Cataluña, de Barcelona, com inusitada violência, para desalojar os ‘indignados’ catalães. Longe de conseguir, a repressão policial se converteu em uma razão mais para resistir. As autoridades tomaram nota e decidiram não tentar o mesmo em Madri. Enquanto isso, as assembleias iam fechando com lentidão propostas mínimas para avançar como movimento. A ideia de uma democracia verdadeira era a que alcançava maiores consensos, ainda que resultasse mais complicado converter seu ‘não’ à representatividade em propostas concretas. As tinham, entretanto: referendos vinculantes (quando o Estado é obrigado a tomar a decisão referendada pela maioria), modificação da lei eleitoral – que na Espanha penaliza os partidos minoritários –, separação real dos poderes. Algumas propostas, como as listas abertas, demonstravam certo desconhecimento do sistema político espanhol, que faz confundir o trivial com o importante; mas, em linhas gerais, se propunham mudanças positivas e facilmente assumíveis por uma classe política que, entretanto, optou desde o primeiro momento por ‘fazer de conta que não entendia’.

Sol na encruzilhada

Nos dias prévios às eleições, vivia-se na Puerta del Sol um clima de euforia que fazia pressentir mais próxima a utopia. Depois, esse otimismo foi se diluindo. Em início de junho, os acampados de Sol se enfentavam com dois dilemas: o primeiro pontual, porém grave, era ‘como ir desmantelando o acampamento sem que o espírito do movimento se dissolvesse’, e vencer esse bloqueio que o próprio mecanismo de assembleias parecia estar levando. Finalmente, os ‘indignados’ levantaram acampamento em 13 de junho, deixando na Puerta del Sol madrilenha apenas uma barraca com um ponto de informações que recolhe propostas cidadãs. Não obstante, uns 50 acampados resolveram ficar, desobedecendo a decisão de uma assembleia que, finalmente, teve que renunciar à tomada de decisões por consenso. Agora, as assembleias dos bairros tem ainda que organizar sua estrutura de funcionamento, e os ‘indignados’ sabem que correm contra o tempo: devem se consolidar antes que se dilua o espírito do 15 de Maio.

O segundo dilema era ainda mais importante: ‘como converter esse ‘não’, global e rotundo, em propostas concretas, em um movimento social que aporte e influencie o debate político’. O 15 de Maio foi desde sua aparição um movimento político, ainda que apartidário. Porém, por querer ser muito inclusivo, se faz muito difícil pactuar decisões de plataformas mínimas sobre os rumos do movimento. “Um movimento social não pode ser plural!”, se queixa Enrique, veterano jornalista e militante. Contudo, o movimento dos ‘indignados’ mantém a simpatia de intelectuais e, em geral, dos espanhóis, incluindo quem vota na direita, como mostra uma recente pesquisa do instituto Metroscopia. Não em vão, o 15 de Maio é, antes de tudo, a explosão de descontentamento e desencantamento de uma sociedade que, nas pesquisas, aponta seus políticos como o terceiro problema do país, depois do desemprego e da economia.

“Se são plurais, deixam de ser um movimento”, recorda Enrique. Mostra-se cético, e critica a “falta de formação e de compromisso” de muitos dos acampados, mas reconhece que os ‘indignados’ de Sol souberam criar um clima de mudança e que, ainda que a chama de sua indignação se amaine, é muito provável que se retome o movimento mais adiante.

Crise política e econômica

Esta explosão de indignação se engendrou nos meses prévios, no seio da plataforma Democracia Real Já, que pede um sistema político mais participativo. O descontentamento chegava, provavelmente, com a impotência dos eleitores de esquerdas que viam como o governo de José Luis Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), aprovava em maio de 2010 os cortes orçamentários impostos pelo Fundo Monetário Internacional. Zapatero deixava entre seus potenciais eleitores a ideia de que de pouco serve uma democracia em que, governe quem governe, é o FMI e os todos poderosos ‘mercados’ quem acabarão impondo sua vontade. Espanha, depois de Grécia, Irlanda e Portugal – os três ‘PIGS’ da Europa, segundo a imprensa anglossaxônica –, começava a sofrer as medicinas que já experimentaram, uma ou duas décadas antes, tantos países latinoamericanos. Arrastado pela crise e pelos titubeios do governo, o PSOE, que governa a Espanha desde 2004, sofreu nas eleições de 22 de maio a maior derrota na história da jovem democracia espanhola: não ganhou em nenhuma das comunidades autônomas (o equivalente, resguardadas as dimensões, aos estados brasileiros) que celebraram comícios, e perdeu boa parte dos ajuntamentos em que governava. Uma hecatombe da qual o presidente Zapatero se fez implicitamente responsável ao assumir a derrota na mesma noite das eleições. A previsível derrota socialista canalizou o descontentamento da sociedade espanhola que, em 2008, viu-se imersa em uma profunda crise econômica, provocada pela crise financeira mundial e pela bolha imobiliária doméstica. Mas como a Espanha chegou a esse ponto?

Déficit, economia em retrocesso, credibilidade em questão, 5 milhões e meio de desocupados – 20% da população ativa, e até 40% no caso dos jovens. Apenas alguns anos antes, até que a bolha imobiliária e financeira estourou nos Estados Unidos em 2008, Espanha tinha vivido em um clima de festa, celebrando um crescimento acima da média europeia e chegando a níveis de empregos inéditos em um país onde o desemprego segue sendo um problema estrutural. Porém, os riscos de uma economia muito mais frágil do que queriam admitir os governantes eram palpáveis desde muito antes, como denunciou em seu momento o economista Juan Francisco Martín Seco. Ele explica como, tradicionalmente, Espanha compensa suas taxas de inflação, superiores às de seus competidores europeus, com desvalorizações da moeda; com a união monetária, essa possibilidade deixou de existir e isso se foi traduzindo em um maior déficit por conta corrente. Porém, como pertenciam ao Euro, os bancos espanhois podiam recorrer aos mercados internacionais e solicitar créditos a baixo custo, sem pagar o risco do seguro de câmbio. Foi o que fizeram, apoiados por uma crescente demanda creditícia dos espanhois, que necessitavam endividar-se cada vez mais para comprar uma casa. Desde que o governo do conservador Partido Popular aprovou, em 1998, uma lei que liberalizava o preço do solo, a habitação havia duplicado e triplicado seu preço em apenas alguns anos.

Especular com a habitação se convertera, aparentemente, no investimento mais seguro. Os bancos alimentavam, oferecendo hipotecas de 40 anos com juros variáveis, o que, num momento em que as taxas de juros estavam muito baixas, parecia melhor negócio que alugar. O problema chegou quando estourou a crise financeira, contagiou a Espanha e, seguindo um padrão também tradicional, traduziu-se em desemprego em muito maior medida que em outros países europeus: no primeiro trimestre de 2010, o desemprego alcançava na Espanha 20,05%, enquanto na União Europeia a média era de 9,6%. E, embora se espere que em 2011 o PIB volte a crescer, ainda que timidamente, segue-se sem criação de empregos, enquanto os milhões de desempregados com hipotecas veem como o Banco Central Europeu começa a subir as taxas de juros. Milhares de famílias tiveram suas residências embargadas por falta de pagamento, mas tem que seguir pagando as letras ao banco. Uma geração de jovens espanhois se sente frustrada, os que beiram trinta anos, ainda que tenham estudado na Universidade, nunca viram atingidas suas aspirações profissionais e econômicas. E a indignação nasceu de uma constatação: nos anos de vacas gordas, os salários apenas mantiveram seu poder aquisitivo, enquanto o crescimento passava a engrossar o benefício empresarial. A pouco suspeita OCDE (Organização para o Crescimento e Desenvolvimento Econômico) apontou em seu informe de 2007, durante a década anterior, que o salário real na Espanha havia diminuído 4%.

Paralelamente, durante anos de crescimento econômico e criação de emprego, em apenas uma década, um mercado de trabalho cada vez mais dual absorveu, na Espanha, quatro milhões de imigrantes, que se encarregaram dos trabalhos não qualificados, e modificaram a demografia do país. Enquanto isso, em muitos países europeus, como Noruega, Suíça e Finlândia, começam a despontar partidos de extrema direita, e o francês Nicolas Sarkozy e o italiano Silvio Berlusconi tem cada vez menos reservas em seus pronunciamentos xenófobos. Não chegaram à Espanha, até o momento.

Uma Europa nem tão unida

Enquanto se acendia a chama da ‘Spanish Revolution’ e em praças de toda Europa se reproduziam gritos de protesto imitando os da Puerta del Sol, os governos seguiam demonstrando que a União Europeia dificilmente se põe de acordo para além de proteger sua própria hegemonia – como quando se trata de manter a presidência do FMI. Desde que a crise financeira recrudesceu na Europa com os problemas da dívida grega, Alemanha não mostrou sua face mais solidária. Os espanhois sentem hoje, tanto como há quarenta anos, certo menosprezo por parte dos ricos estados do Norte em relação ao mais pobre Sul europeu. A crise do pepino, quando um alerta sanitário na Alemanha desembocou na proibição sem provas da entrada de hortaliças espanholas no país, refletiu esse sentimento.

O papel dos intelectuais

Desta vez, os intelectuais se anteciparam ao povo. E o fez antes de todos o francês Stéphane Hessel, de 93 anos, que defende direitos e liberdades desde quando, na Segunda Guerra Mundial, lutou contra os nazistas. Hessel publicou há uns meses o panfleto político “Indignez-vous!” (conclamando à indignação generalizada), que já vendeu mais de 700.000 exemplares. O título pegou, porque se algo não falta são motivos para a indignação: “Neste mundo há coisas insuportáveis”, diz Hessel. Em primeiro lugar, “a ditadura internacional dos mercados internacionais”, pois “nunca o poder do dinheiro foi tão imenso, tão insolente e tão egoísta, e nunca os fieis servidores de Dom Dinheiro se situaram tão altos nas máximas esferas do Estado”. Hessel já finaliza uma segunda publicação, o seguinte passo lógico: “Comprometam-se!”. Em março, um grupo de intelectuais espanhois, encabeçados pelo pensador José Luis Sampedro, apresentou “Reaja”, um conjunto de escritos coordenados pela jornalista Rosa María Artal, com prólogo de Hessel, amigo de Sampedro, nascidos ambos em 1917 e com vastíssima experiência de lutas nas costas. “O dinheiro é a medida de todas as coisas, convertemos tudo em mercadoria (...) É difícil manter a dignidade se não mediante a auto reeducação, diz Sampedro, para quem na Europa “o que falha é precisamente a política. Com a mal chamada globalização, os poderes políticos abdicaram de sua função política em favor dos financeiros, o que conduziu a déficits democráticos importantes, e à crise”. Em definitivo, “a humanidade avançou muito em tecnologia, mas muito pouco em sabedoria e humanismo”. Daí que a cada dia surjam novas fontes de indignação, novas injustiças inadmissíveis.

Assim o expressou o professor Santos Juliá em um artigo publicado pelo jornal El País: “Os governos não são depositários da soberania nacional, senão meros executivos de ordens que emanam dos centros do poder financeiro (...) Os políticos sucumbiram ante as exigências do capital, chamado agora de ‘mercado’”. Ao calor da primavera árabe, sopram na Europa os ainda tímidos ventos de mudanças, ainda que a primavera espanhola tenha mais a ver com aquele 1968 francês que com as revoluções árabes. Diz o lúcido José Luis Sampedro: “A globalização, ao mesmo tempo em que permitiu aos ricos dominar mais o mercado, criou os foros sociais que os podem minar”. Como disse o ex-dirigente comunista Santiago Carrillo, “ante a decepção dos políticos, é a intelectualidade que deve assumir responsabilidades (e) desenvolver o novo pensamento político capaz de mobilizar o povo”. Sampedro e Hessel, entre outros, acenderam a chama da indignação; outros intelectuais, como o escritor uruguaio Eduardo Galeano, o professor de ciência política Carlos Taibo ou o economista Juan Torres López, apoiaram o acampamento. Eles levaram anos plasmando em seus escritos o quanto tem de deficitária uma democracia toda vez que os grandes partidos “encenam todos os dias uma aparente confrontação ideológica que esconde que por detrás estão de acordo em tudo que é importante. Não é difícil saber o que há por baixo dos panos: grandes corporações econômicas que ditam as regras do jogo”, em palavras de Carlos Taibo.


Nazaret Castro é jornalista
(Caros Amigos)

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