sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Eva

A função Eva
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Por Jorge Pinheiro, de São Paulo


O mito original de Eva ainda provoca e inquieta religiosos e pesquisadores. Para a civilização ocidental, sua importância permanece diante da ambiguidade e da culpa imputada às mulheres pelas sociedades, no passado e no presente.

A criação de Eva, Capela Sistina

O poeta gnóstico William Blake (1757-1827) escreveu sobre as diferenças entre sua visão e a leitura ortodoxa das Escrituras. Disse que ele e os cristãos ortodoxos liam as Escrituras, mas onde os ortodoxos viam preto, ele via branco. Essa lógica também serve para os quatro primeiros séculos do cristianismo no confronto entre os ortodoxos e o pensamento divergente dos gnósticos.

É importante dizer que o gnosticismo cristão é uma heterodoxia do cristianismo primitivo. Mas que, ao olhar para si mesmo, se vê como experiência de um conhecimento transcendente, que dá sentido e significado à vida, porque leva o humano a encontrar sua essência pela via do coração.

Daí que uma de suas críticas ao cristianismo ortodoxo é que este lê a Bíblia, inclusive Gênesis, como relato histórico e que, por isso, considera Adão e Eva figuras históricas, ancestrais da espécie humana. A partir dessa interpretação literalista, criticam os gnósticos, e do conceito de transgressão, os ortodoxos fizeram leituras morais, e passaram a afirmar que existiu uma "queda" da espécie humana por causa do pecado original.

Outra consequência moral foi o status inferior e ambivalente das mulheres, que foram vistas como conspiradoras históricas, ao lado de Eva, na fatídica desobediência. Tertuliano, inimigo dos gnósticos, disse que frente às mulheres os homens estão diante do portão do inferno, pois foi Eva quem persuadiu Adão a pecar, coisa que nem o diabo arriscou fazer. Por isso, a sentença de Deus paira sobre a vida sexual humana e, consequentemente, a culpa.

“Depois aprendi a transubstanciar/ O pão ázimo/ Acolher o sagrado/ Balançar a queimar incenso/ Cobras verde-azuladas de fumaça/ Enroladas em volta da orla do meu manto/ Seduzido por essas multidões fervorosas”. [Carol Ann Duffy, Papisa Joana].

Gênesis redescoberto

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis quase que por acidente. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre os mitos de origem de seu povo. Então, ele lhe disse que o mito da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.

Isso é assim porque a busca pela compreensão da natureza, sua origem e modo como se comporta remontam às origens do humano. Tais questionamentos levaram ao surgimento dos mitos de origem, que formataram as culturas dos povos antigos.

Depois da conversa, Pagels viu na revista Time que leitores contestavam um artigo que falava sobre as mudanças de comportamento nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Adão e Eva, como Deus criara o primeiro casal humano, e como isso poderia ser hoje importante para os estadunidenses. Estimulada pela conversa com o líder sudanês, Pagels constatou que povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

Pagels considera que, como as histórias de outras culturas, o relato de Gênesis aborda questões fundamentais. Os dinkas e todos nós, ocidentais, não somos tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

Debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o pensador gnóstico Stephan Hoeller chamou de “Fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Visotzky Burton, viraram série de televisão dedicada ao livro do Gênesis.

O pastor batista Bill Moyers, que depois veio a ligar-se à Igreja Unida de Cristo, foi um dos que propôs que, frente à modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, e de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar aos relatos de origem. E, assim, agnósticos, budistas, católicos, hindus, judeus, muçulmanos e protestantes começaram a participar dos debates de Bill Moyers.

Mas, um grupo de pessoas estava faltando nesses debates, o dos gnósticos, considerado fonte criativa e antiga na interpretação dos textos de Gênesis. E com a descoberta das escrituras gnósticas no vale de Nag Hammadi, no Egito, voltar aos gnósticos passou a ser necessidade hermenêutica.

A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos gnósticos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Niceia, em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contém textos de cinquenta e dois tratados gnósticos, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma tradução, parcial, de A República de Platão.

Segundo James Robinson, na obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de textos não canônicos nas suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif. Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos estão escritos em copta, mas são traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

Eva redescoberta

“No alto de uma cadeira papal/ Bênção e bênção do ar/ Mais perto do céu/ Que cardeais, arcebispos, bispos, padres/ Vigário de Roma/ O Vaticano é minha casa/ Como o melhor dos homens/ In Nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amém. Duas vezes mais virtuoso que eles/ Passei a acreditar/ Que não acredito em uma palavra”.

Os gnósticos que escreveram as escrituras de Nag Hammadi não leram os relatos do Gênesis como fatos históricos, mas como mitos com sentidos a serem traduzidos. Para eles, Adão e Eva não eram figuras históricas, mas representações dos padrões existenciais do humano. Adão era a personificação dramática da psique, a alma, enquanto Eva personificava o pneuma, o espírito. Alma, para os gnósticos, incluia as funções emocionais, pensamento e personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência crítica e livre, cósmica.

Assim, Adão era a representação do “Si-mesmo”, arquétipo da personalidade humana, cuja dinâmica é o instinto; e Eva representaria a função transcendente, o “Eu superior’, a centelha divina. Obviamente, então, Eva não era inferior a Adão.

A função transcendente de Eva fica evidente quando exerce o papel de despertadora de Adão. Adão no seu sono profundo é acordado por Eva, a libertadora. Enquanto a Eva da compreensão ortodoxa emerge fisicamente do corpo de Adão, a representação gnóstica parte de um princípio espiritual, Eva surge das profundezas do inconsciente de um Adão sonolento. Assim, emerge a consciência crítica e libertadora. O texto gnóstico de João [Gnostic Apocryphon of John] fala dessa Eva.

“Entrei no calabouço que é a prisão do corpo. E falei: ‘Aquele que ouve, deixe-o surgir do sono profundo’. E então Adão acordou, chorou e derramou lágrimas. Depois limpou as lágrimas amargas, e perguntou: ‘Quem é aquela que chama o meu nome, e onde está essa esperança que vem a mim, estando eu na cadeia desta prisão?’ E ela falou assim: ‘Eu sou a Pronoia [a previsão] da luz pura, sou o pensamento do espírito imaculado. Levanta e lembra e siga a sua raiz. E cuidado com o sono profundo’”.

Outra escritura da mesma coleção, “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World], expande a reflexão do tema. Aqui a Eva mítica cujo nome é Zoe, que significa vida, é apresentada como filha e mensageira da Sophia divina, a hipóstase feminina da divindade.

Sophia envia Zoe, sua filha, como instrutora, a fim de que levantasse Adão, que não tinha transcendência. A finalidade era fazer com que os humanos futuros, gerados por ele, pudessem alcançar a sabedoria. Quando Eva viu seu companheiro, que era parecido com ela, mas que dormia, sentiu pena dele, e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Imediatamente suas palavras produziram resultado. Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você é a ‘mãe dos viventes’, porque me deu a vida”.

Na mesma passagem, o criador sussurra a seus companheiros, enquanto Adão dorme: "Vamos ensiná-lo em seu sono, dizer a ele como Eva veio a existir a partir de sua costela, para que a mulher sirva e ele seja senhor sobre dela”. O relato da origem de Eva como costela de Adão revela-se, então, a partir da edição patriarcal do mito de origem, como defesa do arquétipo, do “Si-mesmo”. Para os gnósticos, tal compreensão não procede, pois Adão estava em débito com Eva, por trazê-lo à vida e à consciência.

O teólogo Paul Tillich, sem ser gnóstico, faz um interpretação semelhante, entende a “queda”, expressão que não está presente no texto da criação e é uma construção teológica posterior, como símbolo da situação humana, não a história de um evento, não um "era uma vez". Para Tillich, o símbolo “queda” representa, em termos psicológicos, um despertar da consciência para a realidade da existência. Nesse sentido, sem a função Eva, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.

“Digo para vocês agora/ Filhas e esposas do Senhor/ O mais próximo que senti/ Do poder de Deus/ Era o sentido de uma mão/ Levantar-me, atirando-me para baixo/ Levantar-me, atirando-me para baixo/ Como meu bebê, empurrada para fora/ De entre as pernas. Onde estava na estrada/ No meu milagre/ Não era homem, nem Papa para todos”. [Carol Ann Duffy, Papisa Joana].

27/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Veja o filme
Uma lenda cristã medieval ilustra a trajetória impossível da mulher frente ao “Si-mesmo” da religião como espaço masculino, a “Papisa Joana”.



Referência
Stephan A. Hoeller, The Genesis Factor, in The Gnosis Archive
http://www.gnosis.org/genesis.html

Jorge Pinheiro é cientista da religião e teólogo. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Pastor adjunto na Igreja Batista em Perdizes (SP). Nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, foi dirigente estudantil secundarista e universitário. Ligou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de inspiração brizolista. Exilou-se no Chile, onde foi preso após a queda do governo de Salvador Allende. Ligou-se às correntes trotskistas internacionais, viveu em Portugal e, clandestinamente, no Brasil, sob a ditadura. Foi processado pelo regime militar e, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Exerceu o jornalismo na revista Manchete e no jornal Folha de S. Paulo, e foi um dos editores do jornal alternativo Versus, em sua última etapa, em São Paulo.

E-mail: jorgepinheiro.sanctus@gmail.com

Blog: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com/

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