quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Literatura

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O dono da ponte
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Um conto de Cláudio Noronha, de Porto Alegre



Desenho de Joaquim Fonseca
Eu tinha oito anos. Jesus, se vivo fosse, completaria mil novecentos e sessenta, naquele verão. Deus, seu pai eterno, estaria perto dos dois mil, imaginava eu. Estas eram as contas que eu sabia fazer. Ainda que discutíveis e confusas, eram compreensíveis para mim naquele segundo ano de colégio e primeiro de catequese, no Internato Marista. Estas cômicas deduções aportam à minha mente, de uma só vez, como que a emoldurar uma patética cena vivenciada na minha já distante infância. Sempre lembro tudo, por inteiro e ocorre quando encontro, na rua, algum familiar do Tião Aporrinhado, apelido dado por meu avô a Sebastian Urruzmendi, castelhano, por certo uma das mais irritadiças criaturas que possa ter sido parida nesta terra. E o que, até hoje, me surpreende é que a apoquentação, nessa família, perpassa gerações, tendo se tornado traço comum a esses viventes.

Na verdade, a falta de habilidade do meu pai no trato com empregados foi o que deu início a tudo que passo a contar. Ora, mandar justamente o Tião buscar as ovelhas paridas na invernada dos Borba e me levar junto! Francamente! Nenhum peão gosta de tocar cordeirada nova por diante, e muito menos acompanhado de um piá que, sempre ao querer se exibir, acaba atrapalhando. E muitíssimo menos Tião, um aporreado da primeira hora. E o que era pior: tudo pronto para chover. A pressa era fundamental à boa execução da ordem dada. A chuva, que se avizinhava, era a razão do serviço.

Foi quando chegamos próximos à ponte de madeira sobre a Sanga da Macega. As ovelhas começaram a evitá-la dispersando-se, dando meia-volta. Os cordeiros, que vinham atrás, instintivamente acompanhavam suas mães e também se embolavam com os cachorros. Estes, enlouquecidos, latiam, avançavam e logo recuavam. E todo aquele cortejo agora girava, levantando a poeira da terra acumulada na cabeceira. Pequeno, coloquei-me de pé nos estribos; só então pude entender o que acontecia.

Um enorme lagarto apresentava-se como dono da ponte. Saltava sob suas curtas patas e a enorme cauda desferia golpes de laço, feito um chicote vivo de couro cru, afastando, assim, qualquer intruso que se atrevesse a discutir a posse do lugar que ele escolhera para esperar o temporal. Tião apeou, aos berros e instigou a cachorrada a acompanhá-lo. O primeiro guaipeca que adentrou presumível território alheio perdeu o olho num golpe de velocidade imperceptível a quem estivesse observando. A sangueira abundante, os ganidos estridentes e os balidos histéricos do rebanho parido pareciam subtrair a coragem dos demais. O castelhano urrava, batia com o mango nas tábuas da ponte, sapateava, mas não se aventurava a invadi-la. E lá se foi uma orelha de outro pobre cusco! Grossas e profundas riscas de sangue agora já reluziam nos costilhares e focinhos da maioria dos ovelheiros.

Desenho de Joaquim Fonseca
Aquele estranho bicho, meu desconhecido até então, defendia seu imaginário espaço como ninguém. Cabeça erguida, altaneiro, vigilante, esperto, informava que não iria ceder tão cedo. Agora, talvez sabedor do estrago que causara, parecia ainda mais arrogante, cheio de si. A surpresa, para o menino que era, é que um animal tão diferente dos demais pudesse ser tão brigador. Não cabeceava, não coiceava, não tinha aspas para furar, dentes para morder, mas a cauda treinada, ligeira, funcionando em perfeita sincronia com os saltos daquelas curtas, fortes e resolutas patas golpeavam exemplarmente quem se atrevesse a se aproximar. Isto era um motivo suficiente forte para atrapalhar a lida de seis cães, um adulto e um menino.
E a chuva, que já tinha alcançado os cinamomos da tapera do Lili, molharia a todos, dentro de poucos instantes. Para mim, encantado com tudo aquilo, pouco se me dava. Calado, vibrava com o que presenciava. Que quantidade de causos a contar depois, quando, me julgando adulto o suficiente, pusesse trocar mentiras com a peonada no galpão!

Não tive tempo de estranhar a ausência de outra atitude por parte de Tião. Puteando sua pobre vida, lamentando-se pelo custo das balas, que o patrão não indenizava, e dizendo incompreensíveis palavrões, descarregou seu revólver, de longo cano, no corpo do dono da ponte, pondo um trágico fim àquela situação. Não contei os estampidos, mas logo divisei o estrago. Um filete fino de um escuro líquido escorria junto a uma das paletas do soberano réptil. De sangue frio, soube depois, sacudiu-se bastante antes de se dar por morto. Jazia agora ali, no meio daquela gosmenta poça aquele que para mim, até então, fora o sinônimo perfeito da coragem e da bravura, com sua altiva arrogância.

Pensei em chamar o castelhano de covarde, de brutamontes, de sei lá o quê, de ameaçar contar para meu pai, para meu avô, mas não conseguia falar. A presença da morte, ocorrida de forma tão grotesca, desproporcional, desequilibrada, e se mostrando ainda fresca ao meu olhar travava minha voz. Tive vergonha de chorar e, ao mesmo tempo, tive medo. Temi irritar, ainda mais, aquele descontrolado que, não contente com o que tinha acabado de fazer, agora, tentava, a curtos golpes, esquartejar, com sua faca, a dura carcaça do animal e, assim, servir aos cães, que se vingavam, arrancando com afiadas presas pedaços da carne do inimigo morto. Então se ouviram os primeiros raios. A chuvarada nos alcançara. Aos gritos, o tresloucado mandou que tocasse para casa. Ele trataria de tudo sozinho. Que não o atrapalhasse mais! Seu guri de merda!

Chorando, não sei se cheguei a trotear por trezentos metros. Meu petiço, assustado com a barulheira do temporal, preferiu ver-se livre do traste que carregava. Corcoveou, aliviou-se de mim e zuniu a galope em direção a um capão de eucaliptos que se divisava próximo. Assim fiquei, caído, de bruços, estaqueado, golpeado nas costas e pernas por doloridos golpes de pingos d’água que mais pareciam finas estocadas de pontiagudas adagas. A cabeça, eu a cobria com os braços, mal e mal.

Desenho de Joaquim Fonseca
Assim se passaram os piores e mais longos momentos da minha vida, até que a lembrança alcance. Os ruídos dos trovões pareciam montar uns nos outros. Tudo tinha ficado escuro, de repente. Riscas brancas cortavam o céu, a cada instante. Empapado, assustado, pensei em dormir, para assim fugir da sofrida coça de insuportável realidade que jamais tomara em meu curto existir. Queria fugir desta vida e viver noutra, que não fosse tão ruim, tão dura. Não sei se adormeci: a verdade é que foi outro o mundo que divisei com meus olhos quando voltei a abri-los.

Os trovões tinham cessado. Clareara. Só o assobio do vento ainda denunciava o final da passagem da tormenta. O ruído que se ouvia, agora, era do motor do jipe do meu pai, que se aproximava. Levantei-me. A cena completa invadiu, de pronto, meus úmidos olhos e pensei em Deus. Uns vinte animais, entre ovelhas, cordeiros e cães jaziam mortos no correr da cerca, com seus corpos tisnados, ainda fumegantes, existências ceifadas por um raio. E o corpo morto de um homem.

Foi minha primeira aula de religião, fora da classe. E assim mesmo, à luz do dia, escarrada na minha cara. Bastou! Jamais na minha vida me entenderia com esta gente que não vemos. Só se sabe de ouvir falar. A turma do Céu, Santíssima Trindade e tudo mais.

Foi um castigo deveras exagerado para aquele destemperado gaúcho. E uma covardia desnecessária, inominável, para com os pequeninos cordeiros.

E minha mãe sempre dizia que eu deveria agradecer aos céus, que fora poupado por vontade divina.
Sabe-se lá...

11/12/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Cláudio Noronha é contista e enófilo. Assinou a coluna Boca de Bacco em ViaPolítica.

E-mail: ccnoronha@planitrade.com.br

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“Gracias, garnizés”

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