sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Trevas

As trevas
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Por Halley Margon V. Jr
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Colagem de Luiz Rosemberg Filho
À moda de aforismos (ou meros insights):

Na cidade, onde na aparência tudo está em movimento, deslocar-se, como se fosse isso possível, para fora da superfície, para fora da aparência.

No território da cidade, onde tudo é mercadoria, tudo é aparência e superfície.
Como se fosse isso possível, cada gesto deveria ser política. Onde colocar o olhar, impassível, impotente, essa escolha (essa política) é possível.
O nome da coluna foi furtado do título de um livro do filósofo esloveno Slavoj Zizek, A Visão em Paralaxe (Boitempo Editorial), e significa, na definição do Houaiss, “deslocamento aparente de um objeto quando se muda o ponto de observação”. E isto é política.

As trevas
Havia um professor que dizia: a direita não pensa. A direita não pensa porque não pode pensar, concluía. Não pode pensar porque a ação do pensamento a conduziria a se chocar contra seus interesses de classe. E estes estão acima do que quer que seja. Estava se referindo não ao ato corriqueiro de fazer o cérebro funcionar para responder questões práticas do dia a dia, o que qualquer mentecapto é capaz de fazer, mas à capacidade de penetrar o real para desvendá-lo e, portanto, de produzir pensamento.
Pensar é superar o dado e o passado, ultrapassar o estado atual ou aparente das coisas. Com isso o velho professor queria dizer que ao contrário de querer desvendar o real, trazê-lo da sua opacidade natural à iluminação e dar à luz o novo, à direita interessa manter las tenieblas e, é claro, o mundo como ele é. Fixo, estático. A cidade como pura aparência. Está certo o velho pensador. Mas mais certo estaremos se dissermos que a burrice (a par e passo com a esperteza) é universal e serve aos mais variados interesses. (E, de novo: a direita, como comportamento e discurso, está tanto onde está mesmo a direita, mas às vezes e não raro também onde a esquerda está.)

Dick Vigarista
Perguntado sobre a disponibilidade de abdicar da competição para ajudar o companheiro Fernando Alonso (já caracterizado como o inescrupuloso personagem do desenho “Corrida Maluca”) na conquista do título mundial, o piloto Felipe Massa não titubeou: sim, sou um piloto profissional. Com isso querendo dizer que as regras do esporte que pratica pouco importam quando se trata de defender os interesses da empresa para a qual trabalha. Esses interesses estão acima da competição que, aliás, justifica a existência da empresa e a sua própria como profissional.
Assim é o mundo próspero. Uma de suas expressões mais notórias está visível, como cicatriz indelével, no indefectível sou um profissional. Expressão usada sempre que alguém pretende se colocar à margem de julgamentos éticos e justificar o injustificável, seja na conquista de um título no esporte, seja ao conduzir prisioneiros para a câmara de gás. Preste atenção e veja como toda vez em que este clichê aparece lá está acoplada uma atitude pelo menos suspeita. É como se o sujeito dissesse: fiz, mesmo contra minha vontade (meus desejos, meus princípios etc.) porque, afinal, sou um profissional. E assim se isenta automaticamente de qualquer responsabilidade. O sujeito se irresponsabiliza de ser o que é. Ao obedecer o “faça bem seu serviço, e faça-o seja qual for, ninguém poderá condená-lo”, ele se ausenta. Aliena-se.
Há a respeito uma fala das mais esclarecedoras no filme O Segredo de Berlim, de Steven Soderbergh (roteiro de Paul Attanasio): “Esse rapaz dirigia um caminhão de gás. Eles enchiam a traseira de judeus e ligavam o exaustor interno. Quando chegavam ao destino, já estavam mortos. Muito eficiente. Dirigindo, ele matou mais gente que Al Capone em toda a sua vida. Mas se lhe perguntassem, ele diria que não é assassino. É motorista de caminhão.”

A Serpente
A serpente deposita seus ovos. Não se sabe ainda se irá chocá-los, ou se o clima permitirá que vigorem (que se tornem política), ou que forma assumirão caso vigorem. Mas a serpente pôs e segue pondo seus ovos. O ódio acumulado, o rancor acumulado (o racismo acumulado, seu parente consanguíneo), às vezes dissimulados. Só às vezes. Noutras são levados ao centro do palco onde sua presença se destaca, e são alimentados e estimulados. As últimas eleições nos deram alguns exemplos. Um dia se discutirá, quem sabe, quais terão sido os responsáveis por trazê-los ao tablado. O palco, pouco importa se cibernético, mostra sempre o mesmo: a miséria do espírito dilapidado pela incontrolável expansão da forma mercadoria, pela glorificada falência do projeto humano, pela brutalidade do trabalho alienado, pela vitória política do mundo próspero (e suas insalubres regras de conduta).
O fato é que a serpente não bota sozinha seus ovos: é espicaçada a fazê-lo por tantos quantos de uma ou outra forma não sofrerão as consequências disso. Seja qual for o estado da nação haverá sempre aqueles que nunca são afetados pelo aparecimento da besta. E que, ao contrário, lucrarão, como sempre – e que querem sempre sair lucrando, não importa como. Porque o lucro é o que os alimenta.
(Há um filme terrível de Ingmar Bergman, com David Carradine e Liv Ullman, chamado precisamente O Ovo da Serpente que, talvez, esclareça um pouco do que estou tentando contar.)
As redes sociais foram um espaço privilegiado para a exibição de pequenas pérolas da bestialidade adormecida. Pareceriam fatos isolados. Talvez sejam. Como a mensagem postada na internet pela jovem de classe média paulista, estudante de direito, bonita e bem alimentada:
“Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo: mate um nordestino afogado.”
Quando o país inteiro não decreta luto ao se deparar com uma mensagem como aquela eu ligo meus sinais de alerta. E tremo. O que está ali é a escolha de quem é e quem não é gente. De quem merece e quem não merece viver. Exatamente como no ambiente que inspirou O Ovo da Serpente. Talvez seja necessário que a imaginação se ausente (ou uma certa indisponibilidade para olhar para além das cascas) para não ver quantos não foram os que compartilharam o sentimento da moça paulista!
Mesmo que do ponto de vista político seja apenas o resíduo do acirramento dos ânimos, naturais durante algumas disputas, revela a existência de uma matéria psíquica perversa, uma disponibilidade latente para o mal em estado quimicamente perfeito que, dependendo das circunstâncias, pode ser (ou não, é claro) explorada.
Pode ser também que esses sinais de alerta só existam numa mente disposta a explorar à exaustão todas as potencialidades dramáticas reveladas no extenso painel mais ou menos subterrâneo de uma refrega político-eleitoral, afinal encerrada. Ou que sejam apenas a emergência esporádica de lixo emocional num período particularmente tencionado da vida dos cidadãos. Mas será? E será apenas isso?
Resta saber se há gente disposta e apta a instrumentalizar politicamente a existência desse lixo. A resposta está ainda bem próxima. Basta ver a incorporação do ideário da direita mais extremada por um e, às vezes, também pelo outro lado. Nas palavras do insuspeito editor da revista Época: “os tucanos assumiram um discurso conservador puro e duro, doutrinário... (agarrando-se) ao extremismo católico e evangélico... (abrigando e estimulando) um debate que foi muito além do confronto político, com a criação de um ambiente de inquisição em que a adversária deveria ‘confessar’ maus pensamentos ou arder nas chamas da intolerância.” (Tucanos no extremo. 30/10/2010. http://colunas.epoca.globo.com/paulomoreiraleite/ )
Política e Desejo
Não sei falar de política sem falar do desejo, sem pesquisar meus medos. Talvez saiba, mas não quero. Já tem gente suficiente fazendo daquela maneira.
Lua de Mel
Políticos espertos e altamente profissionais (ou profissionais e altamente espertos, difícil diferenciar) existem em todos os campos. O partido do vice-presidente eleito está cheio deles. O próprio vice é dos mais notórios. Alguns aparecem com destaque na simulada lua de mel que se estabelece após a consolidação do resultado das urnas. Para além da cena a disputa é ferrenha. Na maioria das vezes nem tentam dissimular o que está por detrás da atuação. Um vasto comodato de interesses, como aquele partido já foi descrito. De pequenos interesses na grande parte do tempo, diga-se, tão insignes e dispersos que jamais se amalgamam na conformação de um projeto político unificado para o país. Seguem na rabeira dos outros, tentando sempre fazer crescer o tamanho das porções que podem ser abocanhadas. O crescimento do seu peso numa determinada circunstância política pode aumentar desmesuradamente e provavelmente aumentará a fome e a disposição de comer.
27/11/2010
Halley Margon V. Jr é o novo colunista semanal de ViaPolítica.
É escritor e arquiteto. Nasceu em Catalão, Goiás, em 1956. Na década de 70 colaborou com o jornal Versus, de São Paulo. Hoje reside no Rio de Janeiro. Lançou, recentemente, seu primeiro romance. Trata-se de Paisagem com cavalo [Rio de Janeiro, Ed. 7Letras, 160 páginas, R$ 33,00

Site: http://www.7letras.com.br/

Leia entrevista recente de Halley Margon V. Jr aos jornalistas Carlos Willian Leite e Euler de França Belém,
divulgada no site do Jornal Opção, de Goiás

Leia outros artigos de Halley Margon V. Jr. em ViaPolítica:
“Uma festa na Floresta Negra”
“Os Sertões de Euclides da Cunha e outros sertões”
“Philip Roth e alguns dos seus amigos”

E-mail: halleymargon@globo.com

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