segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Mickey Mouse

Mickey Mouse versus Ho Chi Minh
Posted: 10 Dec 2010 07:20 AM PST
Creio que o WikiLeaks, entre outras novas claridades, nos faz lembrar que, em algum momento, nós perdemos ou rompemos a conexão entre nossa cultura e nossas vidas. Isto é, Julian Assange e o WikiLeaks crêem que vivemos num universo no qual a realidade não é real, sob cuja superfície existe outra realidade, oculta a nós, cidadãos comuns, estimulados por uma cultura de simulacros e, por conseguinte, por uma vida falsa. Entre dimensões de nossa cultura, especialmente a política, as conexões com nossa vida real são obscuras - quase tão obscuras quanto as guerras reais que estão ocorrendo agora no mundo e que nos parecem tão distantes.
Sinto que temos um gosto pela guerra. Inclusive nós, brasileiros pacíficos (só que nossas guerras, cujos campos de batalha são quase sempre as periferias e as favelas, são de brasileiros contra brasileiros). Talvez seja possível justificar uma guerra, mas não é tarefa fácil.
Entretanto, inspirado pela recente leitura de uma autobiografia de Ho Chi Minh, o líder revolucionário e estadista vietnamita (sua autobiografia é na verdade um conjunto de poemas escritos durante seus tempos de prisão), e pelo surgimento do WikiLeaks, que nos revela bastidores políticos e militares da diplomacia e da guerra, lembrei-me da Guerra do Vietnã, uma das mais estúpidas entre todas as guerras estúpidas, umas das mais assassinas, desproporcionais e injustas – e, também, umas das guerras mais documentadas e que mais gerou protestos em todo o mundo.
A guerra do Vietnã serve de exemplo para pensarmos um pouco sobre a relação entre a nossa cultura e as dimensões políticas, sociais e econômicas que tanto a influenciam, quando não a determinam em vários aspectos. As guerras no Iraque e Afeganistão também servem de exemplo, aliás, estas repetem muitas das mesmas obscenidades da guerra do Vietnã: interesses escusos, condutas irregulares, mentiras, assassinatos etc. Mas a matança nesses lugares está acontecendo agora e nós não estamos ligando ainda - pois delegamos aos filósofos o esforço de compreender o que nós, contemporâneos, nos contentamos em viver.
Guerra do Vietnã e nossa cultura
Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987), filme crítico de Stanley Kubrick sobre a guerra do Vietnã. Escolhi citar esse filme por que ele traz cenas emblemáticas para o contexto que busco aqui. Em uma delas (veja a cena no youtube) um grupo de fuzileiros americanos enfrenta um franco-atirador numa cidade em ruínas e acaba por matá-lo: na verdade, o atirador era uma garota vietnamita esquálida e subalimentada, sozinha - uma alegoria bruta que revelava muito sobre aquela guerra. Outra alegoria – a cena que encerra o filme: os fuzileiros americanos patrulham sobre os escombros do que um dia foi uma cidade, e cantam (sugiro que assistam para contextualizarmos a sequência do texto, clique aqui para acessar o vídeo no youtube).
Os fuzileiros cantam, em côro, “The Mickey Mouse Club March”. A cena denota os valores ocidentais impondo-se com armas sobre os valores daquele país oriental que pouco devia saber sobre o Disney World. Cabe lembrar, no entanto, que os vietnamitas escorraçaram de lá os norte-americanos e, antes deles, os franceses, ainda que com muito sacrifício: no conflito morreram cerca de 6 milhões de vietnamitas contra 58 mil soldados americanos.
No Brasil, por sua vez, – e exemplifico através de meu estado, a Bahia – o Disney World se impôs sem disparar sequer um tiro: a parada Disney contou, segundo algumas notícias, com financiamento público de 500 mil reais por parte do Governo do Estado e o governador Jaques Wagner, em companhia do prefeito João Henrique e de outras autoridades, lá estavam prestando homenagens ao Mickey Mouse, no centro, imponente, de fraque! Todos sorrindo, reverentes! Em Brasília, nossa capital Federal, símbolo de desenvolvimento e autonomia do país, o aniversário 50 anos da cidade, comemorado em 2010, contou com uma Parada Disney! Precisamente quando o cinquentenário de Brasília dá à cidade a 1ª geração de cidadãos lá nascidos e criados, tem-se uma Parada Disney! como presente.
... Retomemos o fôlego. Hufff
Sinceramente, nada tenho contra o Mickey Mouse, mas, em solidariedade aos vietnamitas, afegãos, iraquianos, e a Kubrick, claro, digo que uma imagem como essa causa alguma indignação e nos expõe, em alguma medida, ao ridículo no mais pejorativo dos sentidos.
Quem venceu a Guerra Fria?
A guerra do Vietnã foi efeito da Guerra Fria, essa atmosfera aterradora que envolveu toda a segunda metade do século XX. O Vietnã lutava por sua unificação socialista – e os EUA não queriam isso.
Ho Chi Minh, cuja autobiografia eu mencionei ter lido recentemente, liderou a resistência e o idealismo comunista dos guerrilheiros vietnamitas e deu nome à trilha estratégica que ficou famosa na guerra do Vietnã por ser a principal rota de abastecimento das forças Vietcongues – a Trilha Ho Chi Minh. Entre 1965 e 1971, “foram lançadas mais bombas sobre essa trilha do que todas as bombas que caíram durante toda a Segunda Guerra Mundial.” (fonte: Wikipedia).
Mais um sintoma emblemático: atualmente, a famosa ‘Trilha Ho Chi Minh” foi ressuscitada sob a forma de um luxuoso resort que oferece um belo campo de golfe! Onde antes ouviam-se as infindáveis explosões das bombas, hoje só se ouve o ruído seco dos golpes dos tacos na bolinha branca, característico de um dos mais elitistas dos esportes. Simbolicamente, não pode ser mais evidente o resultado da famigerada Guerra do Vietnã: a inutilidade de tanta morte e destruição que resultou na ampla vitória de quem perdeu a guerra – os capitalistas. Ontem, o confronto que matou milhões; hoje, o conforto para pouquíssimos.
Independente de ideologias, é lícito apontar: a guerra do Vietnã - como outras guerras atuais - revelam, muitas vezes, um conflito de mentalidades, um embate de valores espirituais. Enquanto nós no Brasil e os fuzileiros americanos cantamos a marchinha do Mickey Mouse e aplaudimos o camudongo e o Pato Donald, Ho Chi Minh, principal articulista da luta do Vietnã contra o domínio colonial francês e depois contra a invasão norte-americana, vencendo a ambos, escrevia no cárcere:

INFORMAÇÃO A SI MESMO
Sem o frio e a desolação do inverno
Não haveria a ternura e o esplendor da primavera.
As calamidades me temperaram e enrijeceram,
Transformando minha mente em aço.

A queda do muro de Berlim representa a imagem romântica do fracasso do comunismo. Um campo de golfe num luxuoso resort onde antes fora a Trilha Ho Chi Minh é uma ironia de mal gosto. Mas somente o McDonalds da Praça Vermelha de Moscou pode atirar à nossa cara a dimensão simbólica da vitória do capitalismo – todo um século de desejos que adentra neste nosso século como um império calcado em caprichos e ilusões na medida da miopia de cada um de nós.
Em 1990, a Rússia comunista inaugurou a sua primeira loja da rede McDonalds, em plena Praça Vermelha! O desejo de experimentar pela primeira vez um BigMac era tão grande que as pessoas formaram uma imensa fila que dava voltas nos quarteirões, e esperavam mais de 8 horas para saborear o hambúrguer. (Clique aqui para acessar o vídeo no youtube).
Esses são alguns resultados de anos de morte e guerra por idéias, corações e mentes, em prol dos interesses daqueles que comandam o jogo com nosso ignorante respaldo democrático. O capitalismo e o consumismo – confundidos com Liberdade – venceram as sombras comunistas e, a custo de muito sangue e medo, nos garantiram uma vida e uma cultura cheias de privilégios – que nos esmagam. Uma espécie de Disney World televisisvo/midiático: o paroxismo das efervescências festivas ou dos rituais anódinos da vida sem qualidade. Vida de adesão: aos outros, a um território, a uma natureza, comportando boa parte de um imaginário publicitariamente reivindicado. Adesão que se consagra, que, não obstante as crises, as mudanças de valores, peripécias políticas ou econômicas faz com que nos acomodemos a suas diversas vicissitudes.
Qual a conexão entre a nossa cultura e as nossas vidas? Aceitamos passivamente as matanças em troca de supostos privilégios e valores que esmagam muito mais do que libertam – inclusive a nós, brasileiros pacíficos, que juntos com os pacatos cidadãos ocidentais – não obstante as matanças diárias mormente nas periferias e nas favelas – vivemos o cotidiano publicitário, nuclear, petroquímico, corrupto, sem imaginação, analfabeto, cinza e estressado, esforçando-nos para disfarçar nossas angústias e neuroses através de delírios mesquinhos e rococós debilmente luminosos, dos de tipo natalinos, que penduramos na superfície da gente.Tudo nos revela, se olharmos com coragem e atenção, a extrema fragilidade de tudo em nós que julgamos ser civilizado.
A esperança é que, embora tenhamos um gosto pela guerra, creio que temos também um gosto pelo infinito: pela arte, pela poesia, pelo mistério. Somos seres paradoxais, vivemos o afã de dominar a natureza, mas o maior desafio é dominar a nossa própria natureza - a natureza humana. É hora de unir os gostos - pela guerra e pelo infinito - e escolher lutar por um deles: por aquele que gostamos mais.
(O Pensador Selvagem)

Nenhum comentário:

Postar um comentário