sexta-feira, 11 de março de 2011

Arte

O cachorro que comia dinheiro
publicado em artes e ideias por Isabella Kantek em 2 jan 2011 | 7 comentários
Formavam um par perfeito. Ele comia dinheiro e ela era garçonete, de modo que as suas gorjetas ficavam para ele sem sombra de dúvida. Tamanho é o amor e a cumplicidade entrelinhas.

Retirantes, Fulvio Pennacchi

Conheceram-se há mais ou menos dois anos na entrada da padaria São Francisco. Ela, como de costume, passava lá dia sim dia não para comprar pão doce com açúcar cristal, presunto e queijo fresco para o sanduíche na hora da novela. Ele... havia acabado de ser despejado e estava, como dizer, com uma pata na frente e a outra atrás, tendo o rabo no meio ventando moscas. Faminto e surpreso. Miserável mesmo com o seu final vira-lata.
O bairro já havia notado a presença ilustre de Leopoldo. Um cachorro daquela estirpe, por aquelas bandas, era assombração na certa. O louco Seu Velho sempre que topava com ele gritava "tá na história errada, cão burocrático". E a cachorrada seguidora de Seu Velho latia altos protestos. De família abastada, Leopoldo havia tido tudo do muito bom e do melhor ainda. Um cão playboy, mas veja, em crise. Porque a solidão não tem dinheiro que compre. E seria crime investir dinheiro em sentimentos, estados de espírito. Seria como perder a consciência intima das coisas.
Ela tinha no nome a sina de fazer o bem, de abraçar com o coração. Leah. E foi bem assim quando se olharam pela primeira vez. Eu conto. Leah sentiu um convívio forte, e ao mesmo tempo uma certa tristeza dessas que alongam o rosto da gente bem bastante. Quando se ajoelhou para senti-lo de perto, notou que uma das patas sangrava com receio e parcimônia. Leopoldo carecia de um alguém com quem pudesse estar alegre e triste, e ter sonhos. Sim, ter sonhos e algum dinheiro se viável.

Casario, Volpi (1952)
O vicio. Leah o trouxe pra casa naquele mesmo dia. Arrumou uma cesta de palha e um cobertor para que ele ficasse quente e macio. E Leopoldo quando viu se tremeu todo de tamanha caridade. Leah, vendo que ele não sorria todos os dentes, trouxe resto de comida e água. A água desceu goela abaixo feito cachoeirinha, mas a comida... Só mesmo por gratidão. Há dias sonhava com uma nota de cinco, um real faria as vezes também. Foi quando viu em cima da mesa a carteira de Leah. Então, andou até lá e sentadinho ficou por eternidades.
Ela, vendo tudo aquilo, abriu a carteira e puxou um trocado. Deixou de lado em silêncio. Fazia horas que ele não se mexia, chegou a pensar que o cão estava a ter sua hora com o Divino e, portanto, qualquer coisa valia. Leopoldo não queria estragar a amizade que estava no começo dos começos, e vendo o trocado, balançou o rabo duas vezes.
O amor carece de coragem. Leah suspirou aliviada e entregou a nota de um real ao cão, rompendo contra o pecado e a estranheza. Várias interrogações. Depois resolveu traçar um acordo: Leopoldo só comeria as suas gorjetas, e em época de vacas magras, seria papel ou o que tivesse. A lealdade acontecia.

Volpi
A cachorrada e o Seu Velho já não rosnavam mais. Foram se acostumando com o cão e o cão com eles. De vez em quando, quase nunca, o Velho gritava "encontrou o seu roteiro, cão safado". Todos riam e riam. Era a diversão da rua porque apesar da bebida ele não tropeçava nas palavras. Leopoldo ficava orgulhoso e latia de volta naquelas circunstâncias. Nos finais de semana Leah remendava umas roupas para ele, esperando o inverno que não chegava de jeito nenhum. E era tudo paisagem. De casa para a praça. Da praça para o rio. Do rio para o trabalho e assim sempre. Num redemoinho só. E iam felizes.
Todos os dias, durante uma boa meia-dúzia de meses, Leopoldo esperava por ela do lado da porta. E fazia aquela festa, quase quermesse, quando ela chegava com o dia escurecendo atrás. Algumas vezes não havia gorjeta e ele, nesses dias, dormia mais cedo. Sem nem comer. Leah ficava imaginando a vastidão dentro da barriga dele em noites como aquela, pois dava para ouvir ruídos de fome tamanho deserto.
Leopoldo largou do vicio quando Leah adoeceu. Não havia maior tristeza que aquela. Só mesmo os sinos da igreja anunciando tragédias. E já havia decidido que se o Divino viesse buscá-la, contra a sua vontade, ia se juntar ao bando do Seu Velho, uivando para ela em noites estreladas.

Grande Fachada Festiva, Alfredo Volpi.
Fontes das imagens: 1, 2, 3.
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Sobre a autora: Isabella Kantek nasceu em Lorena, mas atualmente vive em Astoria. Faz barquinhos de papel e deposita santinhos na lagoa onde a água flutua sobre as folhas, sujeiras diversas e constelações. Saiba como fazer parte do obvious.


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(Obvious)

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