quinta-feira, 10 de março de 2011

Urariano

Entrevista Urariano Mota
Um pouco do universo do escritor de “Soledad no Recife”, Urariano Mota – o livro foi discutido até na Universidade de Bolonha.
Por Revista Žena

Ivana Jinkings, Urariano, Rose Nogueira

Como disse meu amigo Wagner Beethoven: “O acaso me mata de felicidade”. Tive o prazer de conhecer, pessoalmente, o jornalista e escritor Urariano Mota durante o Alt Fest Fliporto. Uma semana antes ele havia respondido minhas perguntas por email, mas não há nada como a presença, olhos nos olhos. Urariano tem uma interessante simplicidade viva, sabe ouvir, refletir, ponderar. Conheçam também um pouco do universo do escritor de “Soledad no Recife”, o livro foi discutido até na Universidade de Bolonha.
[Belisa] Você se considera um escritor marginal?
Não, de maneira mais ampla. Depois de publicar um livro pela Boitempo, editora reconhecida nacionalmente, eu não posso vestir a pele de “escritor marginal”. Mas se você diminui o universo da pergunta para a cena cultural e literária de Pernambuco, direi, sim, sou “escritor marginal”, porque estou à margem dos jornais, da mídia e do mundo acadêmico das universidades e academias de letras do estado. Pra você ter uma ideia, o meu livro mais recente, “Soledad no Recife”, foi discutido na Universidade de Bolonha (a mais antiga da Europa); com ele abri um seminário na USP; com ele fui convidado para a Universidade Federal de Uberlândia…. mas na UFPE, UFRPE, Unicap, UPE, todas as universidades do meu estado, só o silêncio. Nos jornais locais, os jornalistas de livros (que existem, creia) do segundo caderno, o desconheceram. Nos congressos de literatura de minha cidade, do estado, nada. E olhe que o título é Soledad no Recife. Na minha aldeia, portanto, estou marginal. Mas se esse é o preço para a qualidade do que escrevo, está barato.
[Belisa] Como é o seu relacionamento com os escritores contemporâneos?
Tenho bom trânsito com os chamados “poetas marginais” do Recife, talvez porque sobre eles tenha escrito textos para revistas de circulação nacional e sites na Europa. Sou companheiro de geração e de luta do contista e jornalista Marco Albertim. E aí ficam os meus contatos com os “escritores contemporâneos” de Pernambuco. Fora do estado, mantenho relações cordiais com alguns escritores do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Mas sei que os escritores raro se unem pela literatura. Os vínculos e companheirismo entre literatos se dão por outros valores, que moram e vivem longe dos livros. No cotidiano mesmo, no embate de todos os dias, os escritores são muito ariscos, egoístas, em permanente estado de competição. Para quê? Para a glória. Que glória? Restos de pudor me impedem esclarecer o que é a glória.
[Belisa] Com quem convivia quando escreveu “Os Corações Futuristas”?
São momentos bem diferentes, distintos (até no sentido de ilustres): viver a história e escrever um livro sobre ela. Dito assim, até parece óbvio. Mas o que não é óbvio é o pensamento de que escrever um romance é voltar os olhos para trás, para o vivido, que pode estar há 20, 30, 40 ou 50 anos. Assim, vivi Os Corações Futuristas durante a ditadura Médici, quando conheci a mais bela juventude brasileira. Bela pela generosidade e valores estéticos, aquela estética que é ao mesmo tempo justiça e arte. É interessante notar que sempre ameacei amigos mais próximos, ao fim de noites de álcool em Olinda, quando vinha o dia, eu ameaçava: “no dia em que escrever um romance sobre nós, todos vão ter raiva de mim, vou ficar sozinho, sem nenhuma amizade”. Ameaça fraterna, que se queria durona, falsamente durona, agora vejo. Eu tenho muita ternura e afeto por toda aquela gente. No segundo momento, tão ou mais difícil quanto o primeiro, escrevi Os Corações Futuristas como burocrata do Banco do Brasil. Mas vamos pular essa parte.
[Belisa] Quanto de político partidário há em Urariano? Ainda és um entusiasta?
Eu não sei quanto. Talvez, muito talvez, eu possa dizer como. Ora, a minha identidade cresceu com os comunistas, com a esquerda de Água Fria, o meu subúrbio recifense de infância e juventude. Eu nada seria sem as pessoas de esquerda que conheci. Nada, nada vezes nada. Foi com eles que descobri o valor da fraternidade. Foi com eles que o mundo das ideias se abriu para mim. Foi com eles que descobri o cinema de arte, no cine Coliseu. (Não à toa, a abertura de Soledad no Recife se dá com uma sessão no Cine Coliseu, depois de um filme de Buñuel, O Anjo Exterminador.) Então como ser eu sem eles? Não sei se sou “político partidário”, porque não sou filiado a qualquer partido. Mas sou um homem de esquerda, quero viver e morrer como homem de esquerda.
[Belisa] Como você enxerga o espaço para a cultura artística no Brasil?
Existe? Pelo menos em relação à literatura, não há qualquer, qualquer um espaço. Mesmo no Ministério da Cultura, onde trabalhei, é ridículo o espaço para a literatura. Na Fudarpe, muito menos. “Cultura artística” no Brasil quer sempre dizer cinema e música. Depois, vem o resto. E no resto do resto do resto a literatura, quando aparece. Para os escritores há sempre um recomeço de Sísifo – é como se para eles não houvesse uma história cultural.
[Belisa] Porque é difícil sair dos literatos clássicos?
Por mil e um motivos, por mil e uma noites. Sabe aquela namorada da infância, sabe aquela primeira namorada que se reencontra 40 anos depois? Pois então, os clássicos são essa namorada SEM ENVELHECIMENTO. Não é mágico mesmo? Não é um feitiço maior que o sofrido por Dulcineia de Toboso, que, depois de ser a musa e dama pretendida pelo cavaleiro Dom Quixote, foi vista como uma prostituta decadente em um dos piores puteiros da Espanha? Pois o fildago, deprimidíssimo, ameaçou acabar com a própria vida até o momento em que Sancho Pança lhe revelou o segredo e a fórmula da visão daquela mulher naquele estado: aquilo era feitiço. Ah, Sancho, como és sábio!
Os escritores clássicos têm esse feitiço. Como se pode viver sem Cervantes, Machado, Tolstoi, Baudelaire? Só mesmo o compositor Antonio Maria, que melancólico, bêbado, cantarolava: “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire…”.
[Belisa] Imagino Cazuza, ainda criança, saindo bêbado da casa de Drummond depois de uma entrevista. É uma interação fundamental entre as partes, concorda? O clássico e o moderno devem andar de mãos dadas?
Sim, claro, o clássico e o moderno devem andar de mãos dadas. Ou melhor, o clássico e a criação dos últimos dias, porque todo clássico é moderno. Assim, é perdido todo esforço, é estéril toda pretensão que se deseja apenas atual sem o conhecimento desses gigantes. Imagine, falar português somente com as palavras da última gíria! Que pobreza e miséria seria, não? Os clássicos não tinham site, internet, telefone, ou o pulha de George W. Bush. Cabe a nós falar o português das ruas, das casas, mas sem esquecer o português de Camões, que é moderno que só, e às vezes amarga que nem jiló. Entre os escritores pernambucanos, por exemplo, o mais recente exemplo de mãos dadas entre a tradição e o contemporâneo foi o poeta Alberto da Cunha Melo.
[Belisa] O que a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) significa para você enquanto escritor?
Para mim, como escritor, enquanto escritor, nada. O que escrevo passaria e passa sem ela. Por email, eu já lhe disse que, em Pernambuco, para os pernambucanos, os bons escritores moram longe ou já morreram. Como por enquanto, estou fora de uma ou de outra condição, paciência.
Mas entendo, claro, que a Feira tem um significado imenso para a rede hoteleira, para os empresários do turismo, e para um certo ar basbaque diante do alienígena.
[Belisa] Qual é a maior dificuldade encontrada para publicar um livro?
Publicá-lo. Publicar um livro exige mais sorte, resistência e talento que o ato de escrevê-lo.
[Belisa] “Soledad no Recife” foi um fruto feliz apesar da tragicidade da história? Qual é o sentimento de Urariano hoje pelo livro?
Sim, é o meu fruto mais feliz. Na verdade, Soledad no Recife é um acerto de contas com um trauma de nossa juventude. Em palestras, digo sempre que senti um novo tempo no dia em que vi a Rede Globo anunciar o lançamento do livro em sua agenda cultural, antes das 7 da manhã. Quando vi o retrato de Soledad na tela, eu me disse, em silêncio, “aquilo que foi o nosso terror, aquilo que foi o nosso terror, agora aparece na televisão com o seu rosto de musa”. É claro, todas as vezes em que falo sobre isso tenho que me socorrer de um copo d’água, pra engolir o nó na garganta.
Penso que Soledad é meu melhor livro. Um ou outro amigo discorda. Mas eu sei o que me custou, o filtro, o cadinho pelo qual passei, os fracassos que tive antes de achar o seu ponto, o seu lugar de Arquimedes na minha narração.
Todas as vezes em que estou no avião, lá em cima nas nuvens, passando por zonas de turbulência, eu, que sou covarde além da conta, que tenho pavor de avião, me digo, nessas horas, apertando o braço do assento: “literatura, a quanto me obrigas. Só você me faria passar por este momento”.
Repito aqui o que disse ao escritor Marco Albertim:
A densidade, a precisão em Soledad, vem da escolha, da economia de espaço e duração. Em qualquer obra, há um tempo dramático, onde não há cirurgia ou reparo de remédio de salvação. No tempo dramático há uma exigência fuderosa que não perdoa nem dá segunda chance. Os personagens, nesse tempo, crescem, crescem e somem. E somam por isso. É claro, fracassei muitas vezes para construir esse livro, que Os corações futuristas já anunciava naquele clímax do ano de 1973, no amor por Cíntia. Mas onde eu batia antes nas paredes, como um morcego nas cavernas à procura de saída, Soledad me deu. De fato, em “Soledad no Recife” sei e sinto que estou mais maduro e exigente com minhas próprias possibilidades de escritor. É verdade, ainda, que nele eu amei com todas as minhas forças essa heroína de 4 povos, de que falava Mário Benedetti. É como se fosse possível salvá-la do cabo Anselmo. É como se o amor que não pudemos antes falar, agora falasse, livre. E o que é o amor se não a expressão mais alta de liberdade?
[Belisa] Acredita na magia da palavra empatia?
Sim, até por experiência. Não acredito em escritor que não tenha essa característica psicológica de sair da própria pele, de se pôr no lugar de outro, de outra, de outros, como se fosse ele próprio. Não acredito tampouco em leitor que não tenha essa capacidade. É magia? É humano.
[Belisa] Um sonho?
Escrever mais e melhor. Esse é o meu prêmio máximo de loteria. A única riqueza que ambiciono.
[Belisa] Um amor vão?
Não sei se existem amores vãos. Existem amores que não terminaram bem, que foram frustrados ou infelizes. Mas vão, inútil, não. Amores vão, mas nunca são vãos.
(Revista Zena)

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