sexta-feira, 4 de março de 2011

Pensamentando I

Film Socialisme ou da morte de qualquer coisa, e qualquer coisa era cinema
Ciência e Humanidades - Outros Critérios
Cesar Kiraly
Jan 25 |16:55


I

Há algum tempo uma amiga me emprestou uma fita. Nela estava gravado um documentário muito interessante, no qual, numa sala de hotel, um diretor de cinema, por vez, ficava fechado, durante certo tempo, não me lembro se sozinho, e deveria soltar o verbo. Alguns ficavam em silêncio, e balbuciavam algumas palavras, outros pareciam metralhadoras de falar, mas, de um modo ou de outro, todos passavam alguma sensação de conforto sobre o falar do ofício. Ah sim, todos deveriam falar sobre cinema. Mas como eram diretores relevantes, os escolhidos, cinema assumia uma dimensão fortemente visceral, e, sem grande constrangimento, falavam sobre qualquer coisa. E qualquer coisa era rigorosamente cinema.

Nesse documentário, quem mais me chamou atenção foi o Godard. Era o único que fumava charuto, e por isso produzia uma fumaça que bem se compunha com a imagem do quarto. Lembro de modo difuso que ele olha um pouco para a televisão desligada ou ligada, não sei bem. E, sobretudo, lembro que analiticamente falou bastante sobre o objeto cinema. Não me lembro sobre o que ele falou. Como também não me lembro do nome do documentário. Penso que talvez não tivesse bem um nome, mas tão somente um número. Por certo, o meu lapso poderia ser rapidamente resolvido. Mas de alguma forma me interessei por não resolver o esquecimento. E fazer alguma coisa com ele. Falar sobre as mentiras que invento para circunscrevê-lo. Pois bem, a sensação forte que tenho é que Godard, um pouco por ser francês, falara em tom cuidadoso sobre a morte de quase tudo quando existe.

II

Há algum tempo uma amiga, que não mais é amiga, mas que há época o era, emprestou-me uma fita de vídeo. Nela estava gravado um documentário muito interessante, feito por Wim Wenders em 1982. O título do trabalho, recordo-me bem, é Room 666. Nele, cineastas importantes como Fassbinder e Herzog deveriam falar sobre o futuro do cinema. Na verdade, eram seqüestrados, amigavelmente, do festival de Cannes, levados ao quarto, e, com um cartão da mão, deveriam ler questões sobre o cinema e sobre elas discorrer durante algum tempo. O fim do cinema era quase sempre colocado como questão, e também a sua possível nova vida. Na verdade, falavam sobre qualquer coisa e qualquer coisa era cinema, ainda vivo-morto.

Dos diretores levados a apertar o botão do gravador, quem mais me chamou atenção foi Godard. Um pouco porque sua voz é engraçada, e porque seu charuto compunha bem com a cena, por vezes com baforadas mais tênues, outras com fumaça excessiva escondendo o rosto. No fundo uma televisão ligada, na qual passa um jogo de tênis. Godard faz alguns comentários, que bem poderiam ser sobre a morte do tênis, ou sobre a morte do jogo ou sobre a morte da bola. Godard lê no cartão um grande contexto e sobre ele comenta, como que no ritmo da leitura, sem muito tirar os olhos do papel, depois, risca o isqueiro, (a música sobe um pouco), dobra o papel, e nele não mais olha, com o charuto reacendido, diz que filmes são feitos quando ninguém está vendo, isso é o invisível, quando ninguém está vendo.

III

Comecei a escrever um texto sobre a construção em Godard. Depois de ter assistido ao filme que nomeia esse escrito. Assisti mais de uma vez, porque o ritmo de começo de viagem, constantemente me levava ao sono. Mas foi difícil “parar” o filme por um argumento. Por isso, resolvi pensar um pouco no que me lembrava imediatamente Godard, e me veio à cabeça um documentário, cujo nome não conseguia recordar, muito embora soubesse que bastasse pouco para que dele tivesse todas as informações. Escrevi lembrando muito pouco, e completando os espaços vazios com excertos de imaginação. Achei que o não lembrar poderia fazer alguma coisa pela imagem, que talvez dela fizesse parte, e que o artificialismo seria pouco respeitoso com a idéia.

Depois busquei o vídeo para reescrever lembrando. Julgando que talvez fosse possível que o leitor acreditasse, ao mesmo tempo, que o primeiro parágrafo era uma exposição legítima, mas que também fosse uma dissimulação. E que pudesse ser levado a pensar que na montagem dos argumentos, a lembrança seria mais fácil de ser dissimulada do que o esquecimento. E que, por isso, eu teria escolhido o caminho mais difícil, sempre o mais difícil. Pois, se o invisível não é uma grande coisa, apenas o momento em que não há ninguém olhando, um avesso da crença, e disso seria feito o cinema, então, seria bom que tomássemos pela sua morte, e dele esquecêssemos. Ora, o cinema não passa de uma dissimulação de lembrança, num esquecimento que nunca aconteceu. Tal como o é a liberdade.

(Modos de Fazer o Mundo)

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