quinta-feira, 10 de março de 2011

Democracia

Os limites da democracia
Por Lev Grinberg*
Beer-Sheva, Israel, 2/3/2011 (IPS/Al Jazeera) – O povo egípcio tem muitas razões para estar orgulhoso. Deu ao mundo uma brilhante lição sobre como derrubar um ditador em três semanas e quase sem violência. Sua mensagem de liberdade e solidariedade permanecerá por muito tempo na memória coletiva do Oriente Médio e do mundo. Contudo, o caminho para a democracia é muito mais longo. Porém, a sabedoria política até agora demonstrada pelos manifestantes egípcios é uma boa razão para crer que superarão os duros obstáculos que os esperam.

No entanto, é necessário alertar os democratas do Egito, e, sobretudo, os que os seguem no Oriente Médio, que a democracia não é a solução para todos os problemas. A democracia não necessariamente resolve os problemas da pobreza e da desigualdade econômica, nem os conflitos culturais vinculados à identidade comum dos cidadãos de uma nação. O motivo essencial pelo qual a democracia carece de respostas para tais assuntos é que seus princípios foram formulados em sociedades capitalistas industriais, caracterizadas por uma considerável homogeneidade cultural e por brechas econômicas relativamente pequenas.

A democracia é um conjunto de princípios formais desenvolvidos na Europa ocidental para facilitar a representação e a articulação das classes média e trabalhadora e concebida para conter de forma pacífica os conflitos entre estas e a classe alta. Quando não há um equilíbrio de poder entre as classes, nem uma identidade nacional única e consensual, a instalação automática dos princípios democráticos formais pode, inclusive, piorar as coisas.

Para impedir que isso ocorra é preciso entender as condições sociais e econômicas peculiares de cada país e colocar em jogo não só os princípios democráticos, como também outros fatores constitucionais, institucionais e políticos. Se existe um vínculo sistemático entre a identidade cultural e o status econômico, a democracia se converte em problema, mais do que em solução, pois exacerba os conflitos culturais até o ponto da violência ao criar uma oportunidade formal para que a maioria exerça a vontade da minoria.

O sociólogo político Michael Mann demonstrou que, nesses casos, a democracia só serve para intensificar as tensões entre grupos raciais e étnicos, ao que eu acrescentaria – no contexto do Oriente Médio – o conflito entre grupos religiosos e entre setores religiosos e laicos. O exemplo mais recente foi a democratização da ex-federação da Iugoslávia, que levou a dez anos de guerras e à divisão em sete Estados, acompanhadas de genocídio e limpeza étnica.

O caso mais antigo é, nada menos, que o dos Estados Unidos. O berço da constituição democrática, que anunciava um “governo do povo”, começou com o massacre dos povos indígenas americanos porque eles não estavam incluídos no “nós, o povo” dos Estados Unidos. Esta advertência pode ser irrelevante para o Egito, que goza de um excepcional patrimônio nacional, homogeneidade cultural e tradição de tolerância com as minorias religiosas, como os cristãos coptos e os judeus, bem como de mútuo respeito entre crentes devotos e não praticantes.

Entretanto, a adoção da fórmula egípcia por outros países da região, como Irã, Bahrein e Líbia, já indica outras possibilidades, e o mesmo se pode esperar de processos semelhantes que começaram na Jordânia – com conflitos entre suas populações beduína e palestina – bem como na Síria (entre muçulmanos sunitas e os alawis) e que constituem o contexto de tensões sociais em países com democracias formais como Iraque e Líbano.

Em Israel, a violenta repressão à Intifada (levante palestino) de Al-Aqsa, em 2000, demonstrou que o grupo étnico que exerce o poder não cede controle político e econômico nem mediante a democratização nem concedendo a independência, a menos que os poderes das duas partes se equilibrem, como no caso da secessão entre Sul e Norte do Sudão.

Quem busca a democracia nessas condições deve, primeiro, encontrar fórmulas originais e consensuais, sob as quais cada grupo cultural seja livre para seguir sua própria cultura sem tentar impor sua identidade e seus costumes ao resto da cidadania. Em outras palavras, protestar e se manifestar pela democracia não basta. O que os países do Oriente Médio precisam é de um consenso político sobre o reconhecimento recíproco de direitos e a coexistência, garantidos mediante uma constituição e institucionalizados por processos eleitorais e instituições representativas.

O Egito deve se preocupar pela desigualdade econômica e com as penúrias sofridas pela maioria de sua população. Sem soluções para esses problemas, até o regime mais democrático pode se ver às voltas com novos protestos populares e dar lugar inclusive a novas formas de autoritarismo. Um bom exemplo desses fracassos da democracia se materializou em dezembro de 2001, na Argentina, quando as massas inundaram as ruas reclamando “que saiam todos” os políticos e derrubando cinco presidentes em poucos dias.

Isto ocorreu apenas dois anos após eleições democráticas que levaram ao poder uma ampla coalizão de partidos de centro-esquerda, que prometia superar uma profunda crise econômica e não o fez. O governo eleito inclinou-se por seguir as políticas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional, que protegia os interesses de investidores estrangeiros, contra os interesses das classes assalariada e média. A crise fez com que todos os que tinham depósitos bancários perdessem 70% de seus ativos com a benção do FMI.

Por isso, o Egito deve entender que embora a democracia seja essencial, nenhuma constituição ou sistema de governo resolverá seus problemas econômicos. Logo após as eleições, as novas autoridades devem passar do discurso liberal da democracia para a discussão de questões fundamentais da estrutura econômica do país. Nesse processo, descobrirão que é muito mais difícil arrancar pela raiz um sistema econômico corrupto do que derrubar um ditador. Envolverde/IPS

*Publicado em acordo com a Al Jazeera. Lev Grinberg é professor de Economia Política e Sociologia na Universidade Ben-Gurion do Negev, Israel, e autor de Politics and Violence in Israel/Palestine: Democracy versus Military Rule (Política e Violência em Israel/Palestina: a Democracia versus o Regime Militar).

(IPS/Envolverde)

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