Para apresentar o trabalho da artista visual Rebeca Rasel, sem que para isso tenhamos que invocar a plêiade de conceitos que evoca, talvez devamos tratar apenas da presença da exposição e da intimidade. Nesse sentido, a característica que julgo mais relevante para apresentá-la consiste no fato de que trabalha quase que exclusivamente com uma gramática de imagens íntimas (a intimidade dos outros, dos objetos, das palavras), mas que chega a essa lógica por momentos de extrema exposição. Pode até mesmo ser o caso de invocar a presença do forte estímulo criativo da arte intimista que de tempos em tempos se descobre exposta, não por vontade, mas por necessidade ambígua. Longos momentos de silêncio, para dar intensidade à expressão e descoberta.
A trajetória artística de Rebeca é iniciada no ano de 2007 com uma série de performances. Ela compõe uma espécie de paisagem doméstica, mas não completa. Um pouco feminina, poderíamos dizer. Mas é uma paisagem doméstica que leva trabalho para casa. Ou, numa outra forma de ver, um amor que acontece onde não deveria. A essa performance ela denomina Repartição. A sensibilidade é repartida. Mas também é uma divisão, do trabalho, dos momentos de vislumbre. Na cena, a artista, mais uma pessoa, um rapaz, uma mesa e duas máquinas de escrever Remington. Algo como a apresentação das armas: dos modos do duelo, uma vez que não pode deixar de ser notada a coincidência com o nome da espingarda. As duas máquinas de cor bege compartilham o mesmo papel, e deveriam se encontrar como quem compartilha romanticamente o macarrão. As impossibilidades se impõem e a performance Repartição é repartida em Dupla Repartição. Apenas uma máquina, onde havia duas, a mesa, agora maior pela ausência, e do lado da artista uma mala fechada, com objetos desconhecidos, deixados por quem com ela dividiu a performance na primeira vez, o papel branco se impõe por nova trajetória, não cabe mais trocar correspondência sob a pressão do papel de encontro, mas relatar sensações e sentimentos difusos encontráveis no ar e nos objetos descobertos na mala. A máquina, objeto antes de correspondência, torna-se a voz de um monólogo de ausência. O ritmo do diálogo cede aos pequenos rituais de resposta. A terceira performance, dessa série inaugural, chamou-se Na Primeira Ausência, e nela não restou personagem, ou dramaturgia, ficou o ritmo forte de um Ulisses (antigo e em francês), trançado com uma linha vermelha e colagens com bobinas de papel pelas paredes. Dois tempos: você partiu, você está aqui e as bobinas tomam conta, as folhas secas passam a outonar a alma da composição e os objeto instalados tomam alguma impessoalidade, aquela da espera, sai o Ulisses e entra uma cadeira de três pernas. Este grito marcador da gramática imagética de Rebeca encontra seu eixo final na afirmação completa da construção abstrata do mundo. Mas não de um mundo abstrato, porque ficam as folhas secas, a cadeira de três pernas e os três caixotes amarelos. Mas a colagem de bobinas, o diálogo, as mensagens, cedem lugar a colagem sonora como ambiente. Restam o outono e as colagens. As colagens sonoras ou o Ulisses. O restinho do mundo ou o início de um outro.
Desse grito e das repartições em vozes e abstrações, o trabalho de Rebeca passa a empreender milimétricas microrepartições do sensível. As performances cedem lugar a um dos elementos de sua gramática inicial, a colagem. E um novo apego dramatúrgico tem origem, os seus objetos se tornam personagens. Se antes Rebeca esperava e esperando se fazia esperar, agora ela intervém numa quase-melancolia de tons ferruginosos e numa forte ironia com a impossibilidade de compreensão dos diálogos. Em 2008 o pathos performático, por assim dizer, toma a praça, mais especificamente o Jardim do MAM e a Praça XV. Rebeca faz duas importantes fotografias nesse ano. A primeira com 30 metros de bobina estendida e a segunda com 70 metros. Cada qual com uma câmera distinta, a primeira feita com a Fisheye e a segunda com uma Olympus Trip. Assim ditas em letras maiúsculas, porque assumem a presença do Ulisses ou da cadeira de três pés. Sempre algo que aparece mais longe do que realmente está, ou que espera fazendo esperar. As fotografias contam com a dramaturgia da máquina de escrever, mas que não consiste mais num duelo entre Remingtons, mas a doçura mais chistosa e mais conformada da Olivetti. Seja pela deformação da Fisheye ou pelo hiper vazamento de luz da Olympus Trip, percebe-se que a dramaturgia aqui não possui vontade alegórica, mas algo como uma literalidade poética (o nascimento de um humor Cummings). Ora, não é preciso conferir voz a objetos que falam. Por isso, a escolha empreendida por Rebeca, por seus personagens, é bastante cuidadosa, e até mesmo um pouco lenta demais, lembra-me, mas de um jeito menos macabro, a escolha dos objetos feita por Farnese. Trata-se de não falar muito alto para identificar a doçura da Olivetti em detrimento da rivalidade da Remington.
Aquilo que estava fora, performado, passa a habitar dentro. Rebeca resolve nos dizer que dentro está tudo fora. As colagens de bobinas tomam o corpo de recorte de antigas revistas e da recolha de frases, montadas. O tempo do encontro de objetos, também se torna o tempo do encontro de imagens e livros. Rebeca passa a ver um princípio Ulisses para todos os lugares que olha. E neles acrescenta algo de um doce desterro. Os personagens de suas performances são encontrados em pedaços de papel, e muito embora soltos, são amarrados com a calma melancolia das paisagens desterradas. Não demoraria muito para que Rebeca levasse o desencontro às epístolas. Porque as cartas atualizam Cummings em ato. Isto de epistolar o tempo é uma passagem ao ato do desencontro. Primeiro, ainda em 2008, espalhando cartas pela cidade. Depois, numa série de dez imagens, amaro (amá-lo), explora a solidão dos rostos felizes e o modo pelo qual as frases são passíveis de atravessar os cenários. Uma certa insegurança nos faz ver uma fotonovela, onde há apenas a crueldade das imagens e dos casais, como quem diz com Eliot que “Abril é o mais cruel dos meses”.
As fotografias e as colagens, em 2009, foram os modos pelos quais Rebeca insistiu nesse espírito. Nas colagens ela colecionou os livros, suas páginas, como suportes para colagens de recortes, microrecortes, e colagens de poemas. Antigas páginas escritas à mão, antigas cartas, e sobre elas, rostos felizes e paisagens devastadas. E se antes a performance descobria os elementos, a gramática pictórica, agora, a instalação utiliza o descoberto, como na Retratos de uma Espera sem Título, montada no castelinho do Flamengo, onde se vê concentradas as páginas recortadas dos diários achados, que sobre, tem microrecortes e narrativa, e recebem uma bruma acrílica que sempre nos esconde algo, revelando pequenas sílabas. Com essas brumas, Rebeca forma pequenos painéis semelhantes às grandes formas de Kosuth, mas também faz entrever o trabalho que agora desenvolve. Suas kieferianas, por falta de nome melhor, porque não expostas, são impressionantemente belas, Rebeca diminui as proporções das brumas e dos galhos. Agora, matizes absolutos de azul, seqüências geométricas nos versos de cartões postais encontrados, e, sobretudo, aproveita a ferrugem dos objetos que permitem que o tempo passe sem passar, como na fita adesiva das páginas rasgadas. Imagino que a ferrugem do tempo também abrirá lugar às ironias ferrúgenas, pequenas e repartidas.
Cesar Kiraly
(O Pensador Selvagem)
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