sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Betto

Ele que venha amado
Frei Betto - 21/12/2010

Se Deus quiser entrar na minha vida, que venha amado, disposto a conter as iras do velho Javé e, surrupiado de fadigas, derrame diluvianamente sua misericórdia sobre todos nós, praticantes de pecados inconclusos. Venha patinando pela Via Láctea, sorriso cósmico estampado no rosto, despido como o Menino na manjedoura, mãos livres de cajado e barba feita, a pedir colo a Maria e afago a José.

Traga consigo os eflúvios das bodas de Caná e, a apetitar nossos olhos famintos, guisados de ovelhas e cordeiros acebolados, sêmola com açafrão e ovos batidos com mel e canela. Repita o milagre do vinho a embriagar-nos de mistério, porque núpcias com Deus presente, assim de se deixar até fotografar, anuviam a razão e comovem o coração.

Venha o Deus jardineiro do Éden, babelicamente plural, disposto a fazer de Ló uma estátua de açúcar. E com a harpa de Davi em mãos, salmodie em nossas janelas as saudades da Babilônia e faça correr leite e mel nos regatos de nosso afeto.

Mas saiba ele que repudio o Javé da vingança e não permito que o peso das minhas culpas sirva de pedra angular aos alicerces do inferno. Quero Deus porta-estandarte, Pelé divino driblando as artimanhas do demo, acrobata do grande circo místico. Venha Deus a cavalo, a pé ou andando sobre os mares, mas venha prevenido, arisco e trôpego e, sobretudo, desconfiado, à imagem e semelhança de minha indigência. Então iremos os dois para um canto da esquina e, amigos, dividiremos o pão de nossas confidências. Deus será todos ouvidos e eu, de meus pecados, todo olvido.

Acolherei Deus no meu quintal. Lá onde cultivo hortaliças e hipocampos, darei a ele mudas de ora-pro-nóbis, coisa boa de se comer no ensopado de frango. (...) Se Maria vier junto, vou presenteá-la com rendas e bordados trazidos do sertão nordestino, porque isso de aparecer senhora de muitas devoções exige muda freqüente de trajes e mantos, além de muita beleza no trato.

Que venha Deus, mas venha amado, pois ando muito carente de dengos divinos. Não pedirei a ele os cedros do Líbano nem o maná do deserto. Quero apenas o pão ázimo, um copo de vinho e uma tigela de azeite de oliva para abrilhantar os cabelos. Entoarei para ele os cantos de Sião e também um samba-canção de Noel. Tocarei pandeiro e bandolim, porque sei das artes divinas: quem pontilha de dourado reluzente o chão escuro do céu e provoca o cintilar de tantas luzes faz mais que uma obra, promove um espetáculo.

* ‘A arte de semear estrelas’ (Ed. Rocco, 2007)
(Blogue do Chico Alencar)

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