sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Negritude

Boa noite, Zumbi

Troféu Raça Negra homenageia Milton Nascimento e premia personalidades que combatem o racismo. Mas o caminho para combater o preconceito ainda é longo

Por Pedro Alexandre Sanches

“Boa noite, Zumbi!” É com essa exclamação que o ex-boia-fria e ex-delegado de polícia José Vicente costuma saudar os alunos da universidade da qual é reitor, a Faculdade de Cidadania Zumbi dos Palmares. Nesta noite, este homem negro usa novamente a saudação, mas não são seus alunos que estão ali para receber a saudação.

“Boa noite!”, responde a plateia da corriqueiramente esnobe Sala São Paulo, a principal casa de concertos da capital do estado natal de Vicente. À sua frente hoje estão homens e mulheres vestidos a rigor, com ternos black-tie e vestidos longos. Mas tampouco a plateia é exatamente aquela habitual do lugar. Há dezenas de cabelos afro espalhados pela sala, no melhor estilo “black is beautiful”, e a maioria absoluta dos presentes é de mulheres e homens negros.

O evento acontece já pelo oitavo novembro consecutivo, entre o feriado da proclamação da República e o aniversário da morte do líder rebelde Zumbi dos Palmares (1655-1695). Chama-se Troféu Raça Negra e premia, com uma estatueta negra que evoca o famigerado Oscar, personalidades afrodescendentes que se destacam num país que, até 202 anos atrás, escravizava oficialmente seus (não-) cidadãos de pele negra. Elegante, o conselho de fundadores da Afrobrás (Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sociocultural, mantenedora da Zumbi dos Palmares) estende a entrega de troféus a figuras de quaisquer tonalidades de pele, desde que tenham colaborado de algum modo com o combate ao racismo no país.

O grande homenageado foi um dos mais importantes cantores e compositores de nossa história, Milton Nascimento, o primeiro a chegar (numa limusine cedida pela Mercedes-Benz) e a atravessar o tapete vermelho que separa o centro degradado de São Paulo e a vizinha Cracolândia da atmosfera de luxo e riqueza devotada a agradar, nos outros 364 dias do ano, à elite local, predominante e brutalmente branca.

Nos banners espalhados pela casa e nas propagandas institucionais exibidas no início da cerimônia, a Afrobrás ostenta com justificável orgulho o rol de apoiadores e patrocinadores do evento, do qual constam governos e estatais (Governo Federal, Petrobrás, Caixa, Ministério da Cultura, Prefeitura de São Paulo), bancos (Itaú, Santander, Bradesco, Safra), empresas de telecomunicações (Telefônica), automotivas (Ford, Mercedes-Benz), de energia elétrica (TBE), jornalísticas (Estadão, Caras) e de refrigerantes (Coca-Cola).

Sempre haverá quem ainda se recuse a encarar as diversas modalidades de preconceito institucionalizado nesta sociedade, mas, para provar o contrário basta acompanhar o que as marcas e agências publicitárias prepararam para esta noite. A Ford apresenta uma peça que dialoga diretamente com o assunto, propondo o slogan “viva o novo” e exibindo cidadãos negros nesse novo e possível mundo. Mas comerciais de Bradesco, Santander e Coca-Cola nos devolvem ao lugar de sempre: não há negros no ideário de Brasil “feliz” dessas instituições. Talvez politicamente adestrado, o Itaú exibe um reclame no qual o Brasil media o conflito entre israelenses e palestinos – é comercial conhecido e datado, preparado para a Copa do Mundo que já se foi.

“Esse prêmio tem grande valor pra mim. É a primeira vez que ganho um troféu”, afirma a atriz Marina Miranda, conhecida pelos frequentadores da tela da Rede Globo como a “crioula difícil” do desdentado (e negro) comediante Tião Macalé, e hoje contratada da Rede Record. A constatação é compartilhada por outro homenageado, esse branco e ministro do Supremo Tribunal Federal. “O primeiro troféu da minha vida é negro”, emociona-se José Antônio Dias Toffoli.

Política, mídia e o capital

O Executivo paulista envia, como representante, o prefeito da capital, Gilberto Kassab (DEM). Ele não faz qualquer menção aos atos e ataques racistas e homofóbicos que têm feito a cidade ferver nestes dias pós-eleição da primeira mulher presidente de República. Algum mestre-de-cerimônia chama ao palco figuras do establishment local para entregar troféus, entre eles o secretário de Cultura do estado, Andrea Matarazzo, e o fundador da Unip, Universidade (privada) Paulista, João Carlos di Genio. Nenhum dos dois está presente.

O esforço diplomático é mote de honra do Raça Negra, conduzido com habilidade por José Vicente. Ironicamente, é ele quem protagoniza um primeiro momento ideologizado na noite. Chamado a se pronunciar, o representante (branco) da Ford conta do orgulho de ter morado (a trabalho) na África do Sul e ter conhecido a “figura ilustre” de Nelson Mandela, e pontua a experiência e o elogio com surrado discurso de negação. “Ficou muito claro para mim que as grandes mentes não têm raça, nem cor, nem idade”.

De volta ao microfone, José Vicente o retruca, com sutileza, mas também com precisão: “Nossos jovens negros da Afrobrás já estão estagiando na Ford. Queremos mais negros trabalhando na Ford. E na direção da Ford”. Entre as falas de ambos, surge a do representante da indústria jornalística. “O Estado de São Paulo luta há 135 anos por democracia, liberdade, igualdade, fraternidade”. Sobre lutar contra racismo, preconceito, discriminação, não emite um pio.

A cerimônia é entremeada por apresentações emocionadas das canções de Milton, nas vozes coloridas de Margareth Menezes, Altay Velloso, Fafá de Belém, Lenine, Izzy Gordon e outros. O segmento batizado de “in memoriam” reverencia vultos históricos do Brasil, e é desconfortável perceber como nem sempre a negritude sobressaiu como identidade primeira de tais personalidades. A projeção logo vira um verdadeiro quem é quem da cultura brasileira: Zumbi dos Palmares, Anastácia, José do Patrocínio, Cruz e Souza, Lima Barreto, Machado de Assis, Castro Alves, Juliano Moreira, Benjamim de Oliveira, Jacira Sampaio, Mãe Menininha do Gantois, Didi, Garrincha, Milton Santos, João do Pulo, Carolina de Jesus, Jorge Lafond, Tião Macalé, Haroldo de Oliveira, Adhemar Ferreira, Jacira Silva, Leônidas, Tim Lopes.

A lista é maior, impressionante, no idioma a que pertence o homenageado da noite, a música: Chiquinha Gonzaga, Tia Ciata, Donga, Sinhô, Ataulfo Alves, Blecaute, Moreira da Silva, Dolores Duran, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Agostinho dos Santos, Cartola, Jackson do Pandeiro, Jorge Veiga, Pastinha, Cyro Monteiro, Luiz Gonzaga, Jovelina Pérola Negra, Candeia, Wilson Simonal, Baden Powell, Clementina de Jesus, Tim Maia, Mussum, Elizeth Cardoso, João Nogueira, João do Vale, Dorival Caymmi, João Paulo (da dupla com Leonardo), Carmen Costa, Claudinho (da dupla com Buchecha), Luiz Carlos da Vila, Ismael Silva, Roberto Ribeiro, Pena Branca, Xavantinho, Noite Ilustrada, Chocolate, Walter Alfaiate, Jamelão, Zé Keti, Moacir Santos, Dona Zica, Dona Neuma, Johnny Alf, Bezerra da Silva, Xangô da Mangueira, Nenê de Vila Matilde, Paulo Moura.

Levado pelo coral da Afrobrás, o réquiem Sentinela, lançado por Milton em 1969, emoldura o “in memoriam”: “Morte vela, sentinela sou/ do corpo desse meu irmão que já se vai/ revejo nessa hora tudo que ocorreu/ memória não morrerá/ vulto negro em meu rumo vem/ mostrar a sua dor plantada nesse chão/ seu rosto brilha em reza, brilha em faca e flor/ histórias vem me contar/ longe, longe, ouço essa voz/ que o tempo não levará”.

A poeta, jornalista, cantora e atriz Elisa Lucinda vem receber seu prêmio, e é a próxima a cutucar tabus. Fala da alegria de ver tantos colegas juntos naquele espaço, citando as emissoras de TV sem citá-las. “Geralmente é um negro por elenco, né? Aqui, não, é uma nave negreira”. Elisa se despede cantando (e chorando) à capela o afoxé sincrético e multiétnico Filhos de Gandhi, lançado em 1975 por Gilberto Gil e Jorge Ben (ambos ausentes nesta noite): “Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré, todo pessoal/ manda descer pra ver Filhos de Gandhi/ Iansã, Iemanjá, chama Xangô, Oxóssi também/ manda descer pra ver Filhos de Gandhi/ mercador, cavaleiro de Bagdá, ó, filho de Obá/ manda descer pra ver Filhos de Gandhi/ Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim, chama o pessoal/ manda descer pra ver Filhos de Gandhi”.

Cinco anos atrás, naquele mesmo palco, Toni Tornado prestou depoimento pungente sobre como é, para um homem como ele, pertencer aos quadros da Rede Globo (“vocês não têm ideia do que é ser negro e trabalhar naquele lugar”, disse). Hoje, cinco anos a mais de autoconfiança transparecem em todos os semblantes. “Muitíssimo emocionado”, o ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Elói Ferreira, enumera os não poucos acontecimentos que 2010 terá deixado nesse setor, como a primeira Copa do Mundo realizada no continente africano, a aprovação no Brasil do Estatuto da Igualdade Racial (“com atraso de 126 anos”) e os cem anos de abolição dos castigos com chibata, graças à rebelião liderada por João Cândido, o “almirante negro” cantado por João Bosco e Elis Regina em O Mestre-Sala dos Mares (1975).

Tempos depois do desabafo de Tornado, a denúncia sobre a desigualdade racial na TV aparece mais discreta – mas ainda aparece, em falas como a de Elisa e a do diretor global (negro) Luiz Antônio Pilar: “Ainda não conseguimos cumprir nossa meta de visibilidade nos maiores meios de comunicação”. Também da Globo, Maria Júlia Coutinho recebe troféu pelo desempenho jornalístico, e o dedica ao protagonista de reportagem que fez na tarde desta mesma noite, um bancário negro de 30 anos que foi ao Itaú Cultural, na avenida Paulista e no metrô ouviu que “negro tem que morrer”, antes de ser golpeado na cabeça.

A paz racial é reivindicada pelo cineasta Jeferson De, que reporta conversa com um amigo produtor que, um dia, lhe mostrou uma capa de disco na qual um menino branco e um menino negro contemplavam o mundo lado a lado. Amor e fraternidade entre negros e brancos, era o que pregava o autor do disco, amigo da mãe do produtor. O produtor era João Marcello Bôscoli, filho de Elis Regina (e parente distante de Chiquinha Gonzaga). O disco era Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento, a quem Jeferson dirige o olhar e o afeto.

E chega a hora de Milton, sentinela deste Raça Negra, subir ao palco. Ele aparece arisco, como sempre cuidadoso com as palavras. “Não dá pra aguentar. Esta noite é muito importante pra mim”. Profere frase semelhante à do diretor da Ford (“não existe cor, existe ser humano”), mas a explica de imediato, ecoando Jeferson De. “Sou filho adotivo de uma família branca, que teve que lutar mais que eu para que ninguém chegasse perto de mim e me ofendesse pela minha cor”. E chora, em gesto mudo (nesta noite ele não vai cantar) que soma um milhão de palavras.

Para que a festa acabe, falta a interpretação coletiva de Maria, Maria, esta emoldurada no telão por imagens de mulheres de todas as cores: Elis Regina, Elza Soares, Glória Maria, Bibi Ferreira, Benedita da Silva, Ruth de Souza, Dilma Rousseff, Deyze Nunes, Maria Bonita, Cacilda Becker, Leila Diniz, Clementina de Jesus, Carmen Miranda, Sonia Braga...

O que reverbera, agora, é o discurso anterior da jovem atriz Cris Viana, ao receber seu “Oscar negro”, sob gracejos de “gostosa!” e “não precisa falar nada!”. Mas ela não abre mão de seu discurso. “É um orgulho estar aqui, numa festa da minha raça”. E oferece seu “Oscar negro” a quatro mulheres negras (e ausentes nesta noite): Ruth de Souza, Lea Garcia, Chica Xavier e Zezé Motta. Cerimônias como a desta noite costumam ser enfadonhas, mas um fato é incontestável: ninguém sai do Troféu Raça Negra igual ao que era antes de chegar.
(Blog do Rovai)

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