quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Hipátia

Hipátia para sempre


A 15 séculos de distância, Hipátia ainda é uma ferida aberta. Depois do filme de Amenábar, "Agorà", que chegou na primavera passada também à Itália, vencendo tenazes e previsíveis vetos, a trágica heroína do pensamento livre, ícone da laicidade, está no centro do novo livro de Silvia Ronchey, "Ipazia. La vera storia" (Ed. Rizzoli, 319 páginas).

A reportagem é do jornal La Stampa, 15-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Filósofa, matemática e astrônoma, professora da Academia Platônica de Alexandria do Egito, onde viveu entre 370 e 415 d.C., Hipátia foi massacrada, literalmente feita em pedaços pelo fanatismo da primeira Igreja cristã local e marcadamente pelo seu patriarca Cirilo.

Era o cume de um crescendo de intolerância (é do ano 391 um outro célebre crime, a destruição do Serapeu [monumental santuário para o culto de Serápis]), depois que o edito de Constantino, no ano 313, parecia ter aberto as melhores esperanças, concedendo aos cristãos a liberdade de culto: mas agora as vítimas eram os pagãos.

Das obras de Hipátia, não restou nada, e, além do seu triste destino, sabemos bem pouco dela: que era aristocrata em tudo, e que era bela, e que os seus alunos se apaixonavam por ela, mas eram inexoravelmente rejeitados.

Silvia Ronchey busca reconstruir seu autêntico perfil, inserindo-a no contexto da época e dos eventos, em referência constante às fontes antigas (no apêndice ao texto, a "documentação debatida" ocupa uma centena de páginas) e colocando em confronto os diversos testemunhos de matriz cristã com os pagãos, em um relato não menos agradável do que erudito.

Publicamos aqui suas páginas conclusivas.

No século V, a morte de Hipátia não marca o fim de uma era, mas, como haviam intuído tanto Diderot quanto Chateaubriand, marca um início. Hipátia morre, mas passa a tocha. O núcleo intelectual do qual ela é vista erroneamente como a "última" expoente é, na realidade, aquilo do qual irá germinar por 11 séculos a floração mais vigorosa da cultura bizantina. Onde o paganismo sobreviverá não só no platonismo filosófico, na sua acepção mais alta, mas também no culto popular cristão. Onde o olimpo do antigo politeísmo será substituído pelo martirológio e pelo sinaxário; as narrações mitológicas, pelas lendas hagiográficas; a selva dos simulacros pagãos, pela multidão dos ícones.

O século V não é a beira de um abismo, como muitas vezes historiadores e literatos foram induzidos a acreditar pela errada percepção do milênio bizantino como "decadência infinitamente prorrogada", também esta amplamente ligada à propaganda papista. Ele é, ao invés, o início de uma inversão de tendência, a vigília de um renascimento da paideia antiga.

A condenação de Cirilo nas fontes bizantinas, contraposta à sua defesa na Roma dos papas, é o papel tornassol da persistente vontade de separação entre Estado e Igreja que em Bizâncio – Estado laico embora com religião de Estado – foi aplicada sem solução de continuidade. A existência no coração da Europa de um Estado da Igreja, cujo chefe espiritual é também detentor de um poder temporal, é um unicum histórico. Onde essa anomalia não se produziu, não se teve interrupção da cultura antiga. O estudo dos textos antigos continuou, junto com a tradição manuscrita e à transmissão das ideias, mesmo que estas pudessem às vezes aparecer em conflito com a ideologia cristã dominante. A tocha da qual Hipátia foi portadora não se apagou, mas muitos outros homens e mulheres continuaram passando-a adiante.

Por meio deles, a philosophia de Hipátia, de Sinésio e dos antigos – ecléticos ou não – philosophes de Alexandria irá chegar ao nosso Humanismo e Renascimento. E, por esse caminho, ao Iluminismo e àquelas correntes de opinião que despedaçaram a cumplicidade da Igreja ocidental e que fizeram de Hipátia o símbolo da liberdade de pensamento. Com distorções e deformações, porque, no mundo ocidental moderno, que não conheceu até agora o suficiente de Bizância, o evento-Hipátia dificilmente podia ser compreendido nos seus termos históricos corretos.

Ela foi, assim, atualizada e adaptada aos tempos, como, além disso, a história sempre faz, segundo o nunca suficientemente citado ditado de Croce, para o qual se faz história só do presente. Mas, em um ponto, não é possível não concordar: a qualquer coisa que Hipátia mais se assemelhe, a uma estudiosa ou a uma sacerdotisa, a uma ordenada professora ou a uma aristocrata excêntrica e transgressora; que tenha sido jovem ou não, que tenha feito com que os seus alunos se apaixonassem ou não, que tenha ou não encontrado alguma coisa nova – não está excluído; que o ensino iniciático por ela dado com tanto sucesso à inquieta aristocracia helênica já oferecia ou não a revelação de que, em um nível alto, a teologia platônica englobava a cristã e que os improváveis dogmas desta última deviam ser tolerados, praticando a arte platônica da "nobre mentira", porque eram úteis ao povo tanto quanto qualquer antiga superstição pagã; que tenha sido resoluta em barrar o passo da ingerência da Igreja no Estado e muito incômoda ao desconfiar da estratégia de Cirilo com a sua parrhesia, ou que a sua morte tenha sido só um incidente devido à súbita histeria de um influente prelado cristão ofuscado pela comparação e pela ambição, além da momentânea desorientação de um prefeito augustal romano posto em dificuldade por um vazio de poder imperial; em todo o caso, todas as vezes que é reproposto – e é reproposto com frequência – o conflito entre um Cirilo e uma Hipátia, uma coisa é certa: sempre estamos e sempre estaremos do lado de Hipátia.
Para ler mais:
• Síndrome de Hipátia: sexualidade, gênero e a Igreja do século XXI
• ''O martírio de Hipátia é uma acusação contra a intolerância''
• A mulher que desafiou a Igreja
• (Inst. Humanitas Unisinos)

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