sábado, 25 de dezembro de 2010

Pensamentando

O Redentor esboça um sorriso

Facções do crime organizado que cresceram à sombra do cenário de exclusão social no Rio de Janeiro sofreram um duro golpe. Mas ainda há muito por fazer.

Por Miguel do Rosário

“Se houver tristeza, que seja bonita”, dizia Candeias, um sambista que – assim como tantos outros – conseguiu extrair do ambiente miserável das favelas cariocas uma poesia de alcance universal, capaz de atingir a massa, a intelectualidade, e se tornar um dos símbolos mais representativos da cultura brasileira. Mas foi-se o tempo em que a classe média subia os morros para conhecer o berço do samba. Nem os bailes funks, moda entre a juventude no final dos anos 90, atraem mais a burguesia cult da zona sul. Em tempos de globalização e interatividade, muitas favelas seguiram o caminho inverso e fecharam-se em si mesmas, tristes, abandonadas, violentas. Continuaram crescendo, no entanto, silenciosamente, rapidamente, aproveitando-se da generosidade verde das intermináveis encostas de uma cidade coalhada de montanhas.

A tristeza da favela deixou de ser bonita (se é que foi algum dia). Com a abertura política e a volta da liberdade de imprensa pode-se conhecer o que havia acontecido durante os anos negros da ditadura: o município havia deixado crescer, sob suas barbas, imensas comunidades totalmente desprovidas dos serviços mais básicos. Há favelas no Rio desde o final do século XIX, mas é a partir dos anos 1970 que elas ganham a dimensão monstruosa que têm hoje.

Nesse ambiente caótico e sem esperança, aterrissa na favela, como que de paraquedas, a economia da droga. O resto da história é conhecido. A quantidade enorme de dinheiro que passou a circular no coração das comunidades mais carentes do Rio, impactando profundamente o imaginário do jovem favelado. Uma geração inteira cresceu venerando as lideranças do crime.

Consumo nas próprias comunidades

Com a popularização da cocaína, o tráfico passa a tirar fortes lucros do consumo das próprias comunidades, cuja falta de opções de lazer, aliada ao baixo custo da droga e à facilidade de comprá-la quase à porta de casa, leva muitos jovens a se tornarem usuários. O escritor Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus), em depoimento ao documentário de João Salles e Katia Lund, Notícias de uma Guerra Particular, observa que o consumo local (nas favelas) tornou-se uma das principais fontes de renda do tráfico. O crescimento demográfico e, após a estabilização econômica, a melhora no poder aquisitivo da população, fazem das comunidades um poderoso mercado consumidor.

A partir dos anos 90, as principais organizações criminosas do Rio iniciam um sangrento processo de autofagia, que irá minar a hegemonia do Comando Vermelho. Dentro dos presídios, onde ficam os “intelectuais” do crime, nascem a Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando, que se aliam num primeiro momento para combater o CV. Deflagra-se uma guerra pelo controle dos “territórios”, que se estende até os dias de hoje.

Controlada há anos pelo Comando Vermelho, a Rocinha sofre, em 2004, após meses de intensas e sangrentas escaramuças, um “golpe de Estado”, passando a pertencer à facção rival, Amigos dos Amigos (ADA). Com a perda da Rocinha, o Complexo do Alemão torna-se o quartel-general do Comando Vermelho. A prova disso está no volume de apreensões feitas pelas forças de segurança durante a operação de tomada do complexo no final de novembro último: 33 toneladas de maconha, 235 quilos de cocaína, 30 quilos de crack, 135 armas de fogo, bombas, munições, centenas de motos, totalizando um prejuízo para o tráfico da ordem de R$ 100 milhões, segundo estimativa do comando geral da PM.

Inspiração para futuros filmes

O Complexo do Alemão viveu histórias de guerra entre facções que encheriam roteiros de muitos filmes. Orlando da Conceição Filho, o Orlando Jogador, após derrubar o próprio chefe, assume o comando do tráfico no complexo, um mini-mundo cuja população até hoje as autoridades não conseguem contabilizar com exatidão – o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, tem falado em 350 a 400 mil pessoas. Em 1994, Orlando foi, por sua vez, traído por seu principal parceiro, o Uê, apelido de Ernaldo Pinto de Medeiros, que o matou durante um churrasco. A traição racha o Comando Vermelho e serve de pretexto para Uê criar a Amigos dos Amigos. Uê será mais tarde morto em Bangu I, onde estava preso, a mando de Fernandinho Beira-Mar. Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, assume o comando do Alemão, exercendo influência mesmo depois de sua prisão, entregando a chefia operacional para Luciano Martiniano da Silva, o Pezão, que conseguiu fugir ao cerco da polícia e está foragido.

Aproveitando-se da guerra entre as facções, veremos crescer o poder das milícias, formadas por policiais e ex-policiais. Bastante ativas na comunidade Rio das Pedras desde os anos 1970, as milícias experimentaram um boom a partir dos anos 90. Segundo pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), das 1.006 favelas do Rio, as milícias dominam 41,5%; o tráfico, 55,9%; e as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), 2,6%.

O deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), especialista no assunto desde que presidiu a CPI das Milícias, em 2008, e Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança Pública do Rio, alertam que as milícias têm rentabilidade superior à do tráfico, porque ganham não apenas com drogas, mas com muitas outras atividades, como distribuição de gás, venda de pontos ilegais de TV a cabo e “segurança”.

Vitória contra o tráfico

A tomada do Complexo do Alemão pelas forças de segurança figura como a maior vitória do governo contra o tráfico de drogas nas últimas décadas. Apesar da prisão de pouco mais de 30 pessoas, de um total estimado de mais de 500 criminosos em todo o complexo, a secretaria de Segurança Pública comemora o feito como um grande sucesso, pelo volume de drogas e armas apreendidas e, sobretudo, pelo controle do território. O fato de não ter havido quase nenhum “efeito colateral”, ou seja, morte de inocentes, também derrubou muitas resistências à política de segurança do governo, sobretudo junto à esquerda.

O governo do Estado do Rio inaugurou, no dia 30 de novembro, a 13ª Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), no Morro dos Macacos, Vila Isabel, outrora também palco de violentas guerras entre facções. As próximas UPPs serão instaladas nas favelas recém-ocupadas, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. Em debate via Twitcam realizado também no dia 30, Beltrame explicou que o governo irá construir um cinturão de UPPs em todo o município, preparando a cidade para receber os grandes eventos esportivos. O secretário também negou que o governo tenha optado por atacar apenas favelas controladas pelo Comando Vermelho, e afirmou que outras organizações, inclusive as milícias, também estão na mira da polícia.

Vozes críticas alegam que o tráfico nunca será eliminado enquanto houver consumo, mas o secretário de Segurança conseguiu dar uma boa resposta inclusive para esse questionamento, ao declarar com franqueza que as drogas são uma questão secundária. Há combate ao narcotráfico, sim, declarou Beltrame, mas a prioridade é restituir o controle do território à soberania do Estado.

Moradores de áreas próximas às UPPs revelam que o tráfico, na verdade, não desapareceu; antes, converteu-se numa atividade reservada, bem diferente do exibicionismo agressivo que caracterizava as bocas de fumo controladas pelas organizações.

A estratégia de dar prioridade ao controle dos territórios vem do próprio governador, que tem ideias bastante liberais. Em suas entrevistas, Cabral sempre defende a liberação do consumo de drogas, apenas condicionando isso a um debate nos fóruns internacionais, como Nações Unidas e Organização Mundial de Saúde. Filho de um grande crítico musical, o jornalista Sérgio Cabral, o governador sempre conviveu com pessoas do meio artístico e sabe, portanto, o quanto de hipocrisia existe nas políticas antidrogas conduzidas atualmente na maior parte do mundo.

Há outros fatores que contribuíram para o sucesso (pelo menos no que tange à ocupação de territórios antes dominados pelo tráfico) da política de segurança pública de Cabral. Nas UPPs trabalham policiais treinados especialmente para isso, recebendo adicional de R$ 500 da prefeitura. Outros recebem bolsa de R$ 400 para participarem de cursos de capacitação realizados pelo Ministério da Justiça. O próprio salário-base dos policiais do Rio, apesar de ainda ser um dos menores do país, aumentou 20% nos últimos quatro anos, segundo Beltrame, e deverá ser reajustado em mais de 70% nos próximos quatro. O apoio do governo federal à política de segurança de Cabral é absoluto, tanto que a presidente eleita, Dilma Rousseff, prometeu replicá-la em todo país.

Esperanças renovadas

A reativação da economia nacional beneficiou muito o Rio, fazendo o índice de desemprego na região metropolitana atingir 5,7% em outubro – segundo o IBGE, o menor nível em décadas, configurando quase emprego pleno. O cenário otimista, com a descoberta de gigantescas jazidas de petróleo e a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas na cidade, ajudou a alavancar a popularidade de Cabral e Lula, mexendo com o imaginário das comunidades. As lideranças do tráfico perderam prestígio. Eles não são mais os “caras”: isso ficou evidente nas últimas operações, em que, pela primeira vez, a população auxiliou a polícia. O disque-denúncia recebeu volume recorde de ligações e os agentes mostraram aos repórteres, com orgulho, os inúmeros bilhetes que recebiam de cidadãos aliviados com sua nova “liberdade”.

Naturalmente que os problemas sociais do Rio de Janeiro ainda estão longe de ser resolvidos. Mas se antes não havia perspectivas econômicas nem vontade política para resolvê-los, hoje elas parecem existir. Cabem as palavras de outro grande poeta da favela, Nelson Cavaquinho, que expressam a infinita esperança do carioca em um futuro melhor: “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / Do mal será queimada a semente / O amor será eterno novamente”.

* Miguel do Rosário nasceu e vive no Rio de Janeiro. É responsável pelo blog Gonzum.com (ex-Óleo do Diabo).
(Blog do Rovai)

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