sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Muniz Sodré

O terror nosso de cada dia
Muniz Sodré (*)
Ainda está por surgir o tipo de texto jornalístico – notícia, reportagem, artigo, qualquer que seja o gênero – em que se exercite a aproximação entre fatos à primeira vista diversos e no entanto interligados por uma lógica de integração que se faz cada vez mais forte em nosso mundo globalizado. Assim é que, ao mesmo tempo em que leio Power Inferno, um opúsculo de Jean Baudrillard recém-publicado em Paris, deparo com relatos jornalísticos de acontecimentos brasileiros que podem tornar-se mais inteligíveis à luz da realidade estrangeira.
Baudrillard, bem o sabem Academia e jornalismo cultural, é um niilista contumaz, apenas dotado de uma lucidez intelectual que muitas vezes o leva à beira da profecia verificável. Power Inferno é obviamente um jogo de palavras com Towering Inferno, antigo filme-catástrofe sobre o incêndio num gigantesco edifício-torre. A partir do trocadilho, Baudrillard deleita-se com especulações sobre terrorismo e a desaparição catastrófica das torres gêmeas do World Trade Center, tida por ele como uma performance absoluta, um acontecimento simbólico maior, que aponta para a presença do apocalipse entre nós, "sob a forma de liquidação inexorável de toda civilização, talvez mesmo da espécie".
Exagero? Paranóia? Bem, essa é a retórica costumeira do pensador pós-modernista. Sobretudo interessa a passagem em que ele, perguntando-se sobre a mensagem secreta dos terroristas, narra uma velha fábula de Nasreddin, o contrabandista. Todos os dias os guardas vêem-no atravessar a fronteira com mulas carregadas de sacos. Inspecionam os sacos, mas nada encontram. E Nasreddin continua a passar a fronteira com suas mulas. Muito tempo depois, quando alguém lhe pergunta o que afinal contrabandeava, ele responde: mulas.
Assim, pode Baudrillard perguntar-se, por trás de todos os motivos aparentes do ato terrorista – religião, martírio, vingança ou estratégia –, qual é o verdadeiro objeto do "contrabando". E responde: "É simplesmente, através do que nos aparece como um suicídio, a troca impossível da morte, o desafio ao sistema pela doação simbólica da morte, que se torna uma arma absoluta". Mais adiante: "A hipótese soberana é que o terrorismo no fundo não tem sentido, não tem objetivo, e não se mede por suas conseqüências ‘reais’, políticas e históricas. E é paradoxalmente porque não tem sentido que se torna acontecimento num mundo cada vez mais saturado de sentido e de eficácia".
Jornalismo comprometido
Resta agora saber o que tem tudo isso a ver com relatos de acontecimentos brasileiros. São fatos miúdos e grandes. Quanto aos primeiros, trata-se do recrudescimento, no espaço urbano do Rio e São Paulo, de uma delinqüência cada vez mais próxima da lógica do terror. Assim como para o terrorismo internacional o que parece estar em jogo é a ruína do sistema dominante por meio de uma estratégia de reversão do poder, na atual criminalidade brasileira, potencializada pelo tráfico de drogas, está em questão um desregramento interpretável como uma não-aceitação pura e simples do poder de Estado tal como hoje se constitui. Diferentemente da velha delinqüência, cujo sentido era buscado na marginalização e na conquista de butins, a atual imiscui-se com setores ponderáveis do próprio Estado e da própria sociedade global, comprometida pela cumplicidade no narcoconsumo, e resvala em atos de forte carga simbólica.
Exemplos claros desses atos, no Rio de Janeiro, são os metralhamentos de prédios públicos, os ataques a patrulhas policiais em pleno perímetro urbano, os arrastões por bandos de dezenas de homens fortemente armados, os assassinatos gratuitos de cidadãos no instante do assalto etc.
A imprensa já não dá conta da variedade dos atos. No final de semana pré-natalino, sabia-se em todo o bairro do Rio Comprido que o tráfico de drogas no Morro do Turano, ali localizado, estava acéfalo. Logo, tudo era virtualmente permitido nas ruas do bairro: a impunidade estava à solta e à espera de vítimas. Isto sabia a comunidade aterrorizada, mas não sabia, ou não soube, a mídia. Qual a "mensagem secreta"? Talvez a de que o Estado não mais exista, para além da mera exação fiscal.
Por outro lado, há os fatos grandes: exposição pela imprensa de altas figuras do sistema comprometidas com a delinqüência. Vale qualificativo, porque são acontecimentos que lançam uma suspeição perigosa e grave sobre o núcleo funcional do Estado de direito. Estados menores da Federação vivem uma realidade mafializada, à beira da colombianização. Ao mesmo tempo, passa-se de um governo para outro, federal ou não, sem que a questão seja de fato encarada como prioritária e crucial.
Nesse quadro sombrio, parece-me de fato haver espaço para um tipo de texto jornalístico que ultrapasse o mero registro das ocorrências perturbadoras do cotidiano e passe a fazer as conexões locais e internacionais com fenômenos epidêmicos, como o da violência social com a sua nova face do terror. Uma nova configuração social demanda um novo tipo de jornalismo – aquele capaz de flagrar e analisar o real-histórico em sua integralidade. Senão, como diz o pensador pós-modernista, "a denegação da realidade será, em si mesma, terrorista".
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ
(Observ. Da Imprensa)

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